- Tamara Castro
Como a discussão sobre currículo escolar pode ser orientada no sentido de uma educação voltada à formação de cidadãos participativos, críticos e emancipados e afinada um regime democrático pluralista?
Em “Currículo de arquitetura aberta: rumo a uma educação comprometida com a democracia pluralista” (“Open architecture curriculum: Towards an education committed to pluralist democracy”), os pesquisadores Rodrigo Travitzki e Lilian L’Abbate Kelian apresentam uma discussão inovadora de currículo escolar.
O objetivo deste artigo, recém-publicado na revista científica australiana The International Education Journal: Comparative Perspectives, é refletir sobre questões curriculares das escolas públicas brasileiras em direção a uma educação voltada à democracia pluralista. Para isso, os pesquisadores baseiam-se em uma ferramenta conceitual que denominam currículo de arquitetura aberta.
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Em sintonia com uma perspectiva mais afinada à educação e à cultura, e menos orientada pelos interesses do mercado, essa ferramenta tem origem na ciência da computação, relacionada ao movimento do software livre. Aplicado à educação, esse conceito pode estruturar ações interativas e colaborativas, dando espaço para a liberdade e a criatividade no ensino-aprendizagem, sem comprometer a eficiência das metodologias pedagógicas e das organizações curriculares.
Os professores devem ser intelectuais transformadores, com a responsabilidade […] de ouvir de fato os estudantes, abrindo-se a seus conhecimentos prévios, interesses, desejos e questões.
Calcada na pedagogia popular e democrática de Paulo Freire, nessa proposta a escuta e o dialogismo são fundamentais. Nesse sentido, a base de um currículo de arquitetura aberta seriam as comunidades de professores para criação colaborativa e compartilhamento de experiências práticas e reflexões sobre o fazer docente.
Na visão dos autores, os professores devem ser intelectuais transformadores, com a responsabilidade, entre outras tantas atribuições e habilidades, de ouvir de fato os estudantes, abrindo-se a seus conhecimentos prévios, interesses, desejos e questões.
A discussão e a definição de um currículo envolvem pensar sobre algumas perguntas:
O que as pessoas deveriam aprender? O que as novas gerações precisam saber antes de serem plenamente ativas na sociedade? Como podemos emancipar as pessoas ou ajudá-las a se emanciparem? Ou talvez, mais importante, quem é esse ‘nós’? Quem é a entidade que está tentando determinar as respostas a essas perguntas em nome de todas as outras?”
(TRAVITZKI, KELIAN, 2019, p. 93.)
Essas reflexões são centrais quando se trata de currículo escolar, segundo uma educação de fato comprometida com uma democracia pluralista, ou seja, que busque algum consenso, mas sem desconsiderar as diferenças, os conflitos, as vozes dissonantes, especialmente em uma sociedade multifacetada e desigual como é a brasileira.
De acordo com essa visão, uma base curricular não deveria impor conteúdos e estratégias gerais e padronizadoras, baseados em uma suposta “razão única e universal” (nos termos de HABERMAS, 1992), e que acabam resultando em um ensino em massa e em conhecimentos, competências e habilidades mensurados por avaliações padrão.
A forma como os países lidam como as questões curriculares varia. Alguns adotam um currículo mais centralizador e detalhado, outros, uma abordagem mais flexível e generalista. Segundo os autores, a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), homologada em 2017, segue um modelo de currículo nacional inspirado no Common Core dos EUA. Seu papel é orientar as atividades educacionais, como as práticas em sala de aula, a produção de livros didáticos e as avaliações padronizadas. A ideia que fundamenta a Base Curricular é a de que os educadores precisam de orientações sobre o que e como ensinar, assim como de “incentivos” (ou pressão) para desenvolver um bom trabalho.
Os pesquisadores ressaltam a dimensão política das questões curriculares. Para além de seus aspectos técnicos educacionais, elas configuram campos de luta social e política.
Teoricamente, essa política de padronização seria uma ferramenta para reduzir as desigualdades socioeducativas, tendo como meta que todos os estudantes aprendam conteúdos mínimos que os habilitem a exercer sua cidadania e desenvolver-se pessoal, social e profissionalmente. No entanto, ponderam os autores, a eficiência dessa política permanece incerta e alguns de seus antigos defensores são agora duros críticos. É o caso do educador escocês Terry Wrigley (2005), que aponta como efeitos a intensificação da escolarização e do ensino baseado na transmissão de conteúdos, em vez da abertura a pedagogias sociais inovadoras e transformadoras.
Com base em Freire (1987) e Arroyo (2014), os pesquisadores ressaltam a dimensão política das questões curriculares. Para além dos aspectos técnicos educacionais, elas configuram campos de luta social e política. Para desenvolver essa reflexão, o artigo recorre a dois autores que pensam a democracia em busca de processos decisórios que levem em conta a diversidade cultural e evitem a desigualdade econômica: Jürgen Habermas (1992) e Chantal Mouffe (1996).
Enquanto o primeiro defende a possibilidade de um consenso sem exclusão, com base na ideia de uma razão universal que transcenderia as “condições particulares de enunciação” (MOUFFE, 1996, p. 1), a última nega essa possibilidade, entendendo “todo consenso […] como um resultado temporário de uma hegemonia provisória, como uma estabilização do poder, e […] isso sempre implica alguma forma de exclusão”(1996, p. 11). Para essa autora, a perspectiva contemporânea de democracia reconhece e legitima o conflito, em vez de, autoritariamente, recusá-lo. Nesse sentido, seria possível chegar-se a um “consenso conflitante”.
Relacionando essas reflexões ao tema do currículo escolar, a presença de determinado conteúdo em detrimento de outro implica escolhas que revelam (ou ocultam) intenções ideológicas. Em contraponto a uma visão do currículo como fruto de decisões científicas, ideologicamente neutras e isentas de conflitos, essa perspectiva valoriza a presença de olhares e posições diversas e muitas vezes divergentes, entendendo a definição dos conteúdos a serem ensinados “como parte de uma luta mais ampla sobre diferentes ordens de representação, formas conflitantes de experiência cultural e visões diversas do futuro” (ARONOWITZ e GIROUX, 2003, p. 141).
Não se trata de afirmar os professores como doutrinadores ou ativistas políticos. Ao contrário do que representa uma doutrinação ideológica […], aqui se ressalta o papel da escuta dos diferentes sujeitos envolvidos no ensino-aprendizagem.
Essa discussão teórica importa para o cenário em que nos encontramos por se tratar de dois caminhos distintos na definição de currículos. Em um caminho mais alinhado às políticas neoliberais, em ascensão no campo educativo desde a década de 1980, os professores têm pouca margem de criação e escolha dos conteúdos curriculares, que ficam principalmente a cargo de especialistas administrativos. Os conteúdos seriam aplicáveis e reproduzíveis em qualquer sala de aula, independentemente do público envolvido e do contexto sociocultural.
Em outra trilha, em que se alinha a proposta de currículo de arquitetura aberta, os professores, considerados agentes e pesquisadores da própria prática educativa, têm espaço para criar, pensar e reformular o currículo e suas estratégias pedagógicas. Nessa linha, é evidente o papel político da educação e dos educadores, cabendo-lhes a importante tarefa de mediar a formação crítica e cidadã dos estudantes, promovendo sua emancipação.
Ressaltar a dimensão política da educação implica evidenciar que a escola e a busca de conhecimento como campos de disputa social. Como ponderam os autores, não se trata de afirmar os professores como doutrinadores ou ativistas políticos. Ao contrário do que representa uma doutrinação ideológica, ou seja, a imposição de uma visão de mundo a alguém (no caso os estudantes), aqui se ressalta o papel da escuta dos diferentes sujeitos envolvidos no ensino-aprendizagem.
Nesse sentido, com base em Giroux e Mclaren (1986, p. 215), apontam a importância de integrar nos currículos e práticas pedagógicas o repertório cultural da comunidade a que pertencem os estudantes, conteúdos muitas vezes ignorados pela cultura erudita a que a escola se filia. Como afirmam os pesquisadores: “O ponto central é como conceber a participação democrática no campo educacional. Conceber professores como intelectuais com papéis políticos não significa corromper a educação, mas levá-la a sério em contextos democráticos contemporâneos” (TRAVITZKI, KELIAN, 2019, p. 96).
Para criar um espaço de escuta real e profunda, alertam os autores, não basta perguntar e seguir o que os estudantes querem fazer ou estudar fazer. É necessário criar
um estado de escuta permanente que mobilize muitas formas de expressão dos sujeitos (sua história de vida, sua cultura familiar, sua visão política, sua organização corporal, sua linguagem através do desenho, narrativas orais / escritas / tecnológico, etc.)”
(TRAVITZKI, KELIAN, 2019, p. 97).
Essas são reflexões fundamentais em uma proposta curricular que vise uma aprendizagem significativa.
A partir desse ponto, o artigo passa a discutir o conceito de arquitetura aberta. Expressão importada da ciência da computação, relaciona-se à ideia de projetos colaborativos e interativos em um contexto caracterizado pela pluralidade e diversidade. Segundo os pesquisadores, já existem várias estruturas tecnológicas que permitem a criação colaborativa e o compartilhamento de programações e produtos, de forma transparente, flexível e eficaz, integrando recursos locais e globais. Um exemplo é a comunidade Linux, composta por usuários que se beneficiam dos softwares criados e compartilhados pelo pequeno grupo de programadores, que, por sua vez, utilizam esse espaço para testar suas criações.
Um currículo de arquitetura aberta pode promover um ambiente onde cada professor encontre conteúdos e estratégias interessantes para seu cotidiano na escola, adapte de acordo com o perfil dos estudantes e, eventualmente, crie recursos educacionais, métodos pedagógicos, desenvolva reflexões e compartilhe tudo isso na comunidade docente.
Com essa inspiração, os autores nos provocam a pensar em possibilidades para se construírem currículos de arquitetura aberta. O sucesso dessa proposta depende de comunidades curriculares formadas por professores que se dediquem a interagir e colaborar entre si para promover pesquisas e diálogos críticos sobre suas práticas.
Essa comunidade de professores se aproxima do que Dewey (1970) imaginou em relação a um laboratório para escolas e talvez se assemelhe às escolas de aplicação, vinculadas a faculdades de Pedagogia, que surgiram com o objetivo de aproximar o ensino básico às pesquisas sobre educação desenvolvidas nas universidades e, dessa forma, fomentar novas tecnologias e experiências educacionais, bem como aprimorar a prática docente nos níveis individual e coletivo.
Para os autores, um currículo de arquitetura aberta pode promover um ambiente onde cada professor encontre conteúdos e estratégias interessantes para seu cotidiano na escola, adapte de acordo com o perfil dos estudantes e, eventualmente, crie recursos educacionais, métodos pedagógicos, desenvolva reflexões e compartilhe tudo isso na comunidade docente.
Trata-se de uma mudança qualitativa profunda no cenário educacional, que envolve mudanças de valores e prioridades. Nesse cenário, a relação ensino-aprendizagem e os sujeitos diretamente envolvidos passam a ter papel central e protagonismo, sendo que o mercado em torno da educação, como os produtores de livros didático e sistemas de ensino, deixariam de reger o que e como ensinar.
Para compreender um pouco de como funcionariam essas comunidades, os autores citam os estudos do britânico William von Hippel (2001), que descreve dois exemplos de exemplos bem-sucedidos presentes na rede: o equipamento Windsurf e o software Apache. Entre as características de ambas, o pesquisador destaca: a participação voluntária de muitas pessoas com interesses em comum; espaços (físicos e/ou virtuais) de interação e compartilhamento; a maioria dos participantes não cria, apenas utiliza as inovações criadas por uma minoria que as compartilha gratuitamente.
Essa flexibilização do currículo promoveria o diálogo (e muitas vezes o confronto) entre múltiplos olhares e formas de vida, ao encontro de uma educação que ofereça caminhos para a construção de uma democracia pluralista.
Com base nessas experiências, os autores se questionam: o currículo educacional poderia ser um campo fértil para experiências como essas? Segundo eles, sim, considerando que boa parte dos conteúdos e das estratégias pedagógicas que compõem o que denominamos currículo pode ser transformada em objetos virtuais, com custos muito mais baixos de reprodução, adaptação e distribuição. Em termos pedagógicos, isso seria muito benéfico, tendo em vista que possibilitaria a personalização das tecnologias educacionais de acordo com os interesses e as necessidades dos sujeitos envolvidos, em vez de um ensino regido por métodos e conteúdos padronizados.
Além disso, nessa proposta fica clara a importância da atividade intelectual do professor, que, por meio do sistema de arquitetura aberta, pode ter acesso a novas ideias e práticas, buscando sua formação contínua. Pode ainda modificar, criar e compartilhar estratégias, conteúdos e valores, participando de forma ativa da construção do conhecimento científico sobre educação.
Por fim, retomando a discussão política proposta inicialmente no artigo, que os autores consideram como um “pequeno exercício de imaginação”, essa flexibilização do currículo promoveria o diálogo (e muitas vezes o confronto) entre múltiplos olhares e formas de vida, ao encontro de uma educação que ofereça caminhos para a construção de uma democracia pluralista.
TRAVITZKI, Rodrigo; KELIAN, Lilian L’Abbate. Open architecture curriculum: Towards an education committed to pluralist democracy. The International Education Journal: Comparative Perspectives v. 18, n. 1, 2019, p. 93-110. Disponível em: <https://openjournals.library.sydney.edu.au/index.php/IEJ/article/view/13359/12075. Acesso em: 23 maio 2019.
Sobre os autores
Historiadora formada pela Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora de projetos no CENPEC Educação. Tem experiência em formação de professores, educação integral e juventudes.
Contato: lilianlkelian@gmail.com
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) com pós-doutorado em estatística aplicada à educação. Desenvolve pesquisas sobre avaliação educacional, políticas públicas, qualidade e equidade.
Contato: r.travitzki@gmail.com
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