- Tamara Castro
Em continuidade ao debate sobre políticas, programas, sistemas e metodologias de alfabetização, conversamos agora com o pesquisador Artur Gomes de Morais. Professor titular do Centro de Educação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), atua também no CEEL – Centro de Estudos em Educação e Linguagem e na Pós-Graduação em Educação, na mesma instituição.
Nesta entrevista, Morais discute quais seriam as principais diretrizes para uma política nacional de alfabetização, o que é necessário garantir para uma boa formação de professoras/es alfabetizadoras/es, além de questões conceituais e metodológicas ligadas à prática docente.
Defendendo a necessidade de garantir amplo debate sobre questões fundamentais ligadas à educação, o pesquisador destaca a importância de se pensar a imersão no mundo letrado desde a educação infantil:
Em todos os países com melhor educação, a tendência é iniciar a imersão no mundo da escrita por volta dos 4 anos, mas com clareza de que não se trata de um ensino sistemático de relações entre letras e seus valores sonoros.”
Artur Gomes de Morais
Portal CENPEC Educação: Em sua visão como pesquisador da academia e profundo conhecedor dos trabalhos que têm sido desenvolvidos nas redes públicas de ensino, quais seriam as principais diretrizes para uma política nacional de alfabetização?
Artur Gomes de Morais: Essa é uma pergunta bastante complexa. Penso que a definição dessas diretrizes, num país minimamente democrático, tem que ser negociada. Sempre ouvindo os educadores, os responsáveis pelos alunos, além dos gestores de cada rede de ensino e dos técnicos de carreira que estão em cada secretaria e no MEC.
Em primeiro lugar, uma política nacional de alfabetização deve pensar o que fazer com as crianças já no final da educação infantil, isto é, desde os 4 anos de idade, até a consolidação da alfabetização, por volta dos 8 anos (3o ano do fundamental).
Em todos os países com melhor educação, a tendência é iniciar a imersão no mundo da escrita por volta dos 4 anos, mas com clareza de que não se trata de um ensino sistemático de relações entre letras e seus valores sonoros.
Em segundo lugar, como já antecipei, é preciso debater e definir currículos (nacional e municipais), com ampla participação dos educadores e de outros atores implicados.
Sem currículos definidos com base no debate e em algum consenso, não há trabalho coletivo compartilhado, não se assegura a progressão das aprendizagens e se comete a perversão de aplicar avaliações em larga escala, sem que os docentes tenham clareza do que se esperava que seus alunos tivessem aprendido.
Um terceiro fator que me parece fundamental é assegurar um conjunto de condições para o bom exercício da ação de alfabetizar. Aí entram como ingredientes:
- concursos e contratação de docentes estáveis, porque não adianta falar em qualidade da alfabetização (ou de qualquer modalidade de ensino) enquanto tivermos professores com contratos precarizados, sem nenhuma segurança de que continuarão prestando serviços naquela rede escolar, no semestre seguinte. Temos que lutar, radicalmente, contra a “uberização” da profissão;
- direito à formação continuada em serviço, com periodicidade ao menos mensal, feita por formadores de cada rede, com ajuda das universidades públicas (tal como aconteceu no PNAIC);
- melhoria das condições de trabalho e de salário dos alfabetizadores (e de todos os docentes, é óbvio!), de modo que possam ter tempo real para, dentro da jornada semanal, se reunir e discutir a prática, planejar, corrigir e estudar, tal como ocorre em países como a França e a Espanha;
- diversidade de metodologias de alfabetização, desde que conciliem, por um lado, os direitos de plena apropriação do sistema de escrita alfabética (SEA) e avanços no aprendizado da ortografia e, por outro lado, um ensino voltado ao letramento, isto é, para as práticas de leitura, compreensão e produção de textos escritos. Nada de impor métodos fônicos ou outros autoritarismos que ferem a autonomia docente e o direito de liberdade de cátedra.
Portal CENPEC Educação: Há uma contradição entre diferentes documentos oficiais vigentes em relação à idade ideal para se alfabetizar. O Plano Nacional de Educação (PNE), em sua meta 5, recomenda: “Alfabetizar todas as crianças, no máximo, até o final do 3o (terceiro) ano do ensino fundamental”. A BNCC propõe que a alfabetização ocorra ao final do 2o ano. E o decreto n. 9.765/19, que institui a Política Nacional de Alfabetização (PNA), determina, no art. 5o: “Constituem diretrizes para a implementação da Política Nacional de Alfabetização: I – priorização da alfabetização no 1o ano do ensino fundamental.”
Em sua opinião, qual é a melhor idade para se alfabetizar?
AGM: Como mencionei na resposta anterior, penso que um processo não sistemático tem que começar no final da educação infantil, quando as crianças completam 4 anos. Não se trata de alfabetizar precocemente. Nada de transmitir informações sistemáticas sobre relações entre grafemas e fonemas, nada de treinar caligrafia.
Ao lado de rodas de leitura, onde já são promovidas diferentes estratégias de compreensão leitora, é preciso aproveitar as oportunidades para escrever com as crianças textos do universo infantil.
Trabalhos como os de Lúcia Rego (1988) e Maria José Fontes e Cláudia Cardoso-Martins (2004) atestam que, bem antes de alcançarem uma hipótese alfabética, as crianças podem aprender sobre os gêneros textuais escritos e usar esses conhecimentos para compreender e escrever textos reais (e não amontoados de frases cartilhadas) assim que vão ganhando domínio no emprego das relações entre grafemas e fonemas.
É papel da educação infantil assegurar às crianças da rede pública o direito de avançar na compreensão do sistema de escrita alfabética antes do ensino fundamental. É preciso promover a reflexão sobre as palavras, sobre os nomes próprios, e desenvolver a consciência fonológica. Isso é meta nacional nos currículos de final da educação infantil em países como a França, a Espanha e Portugal.
No Brasil, a maioria das crianças de classe média entra no 1o ano do fundamental com uma hipótese alfabética de escrita e no mínimo com uma hipótese silábica. Enquanto isso, nas redes públicas, nossas pesquisas, desde a década de 1980, atestam que cerca de 2/3 dos aprendizes entram no 1o ano ainda com uma hipótese pré-silábica, sem entender que as letras substituem as partes sonoras das palavras que pronunciamos. Portanto a melhor idade para iniciar as crianças no mundo da escrita começa antes da entrada no 1o ano e se conclui até o 3o ano, tal como defendíamos no Pnaic. Nesse ponto faz-se necessário esclarecer várias coisas.
Em primeiro lugar, o que chamamos de criança alfabetizada é um aprendiz que já domina as relações grafema-fonema (leitura) e fonema-grafema (escrita) de palavras, de modo a ler com desenvoltura palavras com todas as sílabas complexas do português (por exemplo, nas palavras “transporte” e “briguento”).
Crianças que viveram boas situações de prática de leitura e escrita de gêneros textuais reais conseguem escrever com autonomia textos pequenos do universo infantil como historinhas, poemas, convites e outros aos 8 anos. Dizer que isso é possível com um ano ou dois é falso.
Mesmo filhos da classe média, que muitas vezes entram no 1o ano lendo e escrevendo palavrinhas simples, com sílabas compostas por consoante e vogal, precisam de bons dois anos para ter os automatismos e autonomia de produção e leitura de textos que mencionamos acima.
A BNCC foi irresponsável ao não assegurar aos filhos das camadas pobres o direito de iniciar, seriamente,o aprendizado da notação escrita e da leitura de textos no final da educação infantil, e ao reduzir o ciclo de alfabetização a dois anos.
Portal CENPEC Educação: O que os cursos de pedagogia precisariam garantir a fim de que os professores recebam bons subsídios para alfabetizar as crianças na idade certa?
AGM: A maioria dos cursos de pedagogia habilita educadores que podem ser docentes, coordenadores pedagógicos, supervisores educacionais etc. Ao lado disso, lembremos que os que serão docentes estarão habilitados como professoras e professores polivalentes, que devem dar conta de todas as áreas do currículo e cobrir uma faixa etária que vai da creche ao final do 5o ano, além da EJA, que correspondem aos cinco primeiros anos do fundamental. Ora, com tanta diversidade de conhecimentos em jogo, não me parece possível fazer milagres na graduação em pedagogia para termos bons alfabetizadores.
Parece-me muito mais viável pensar que, ao lado de especializações ao final do curso de graduação, é a formação em serviço real que tem que ser priorizada.
Tal formação deve implicar tempo semanal para estudar, planejar, tematizar a prática, de modo a assegurar esse aperfeiçoamento, que é urgente.
Nas escolas privadas, a tendência são docentes que se especializam em alfabetizar. Reconhecidos como bons alfabetizadores, esses professores costumam assumir as turmas desse ciclo. Enquanto outros são bons professores de outros grupos e etapas.
Nas redes públicas, isso só pode ser garantido com políticas de valorização do alfabetizador, não só assegurando boa formação continuada, que deve ser direito de todos os docentes da educação básica, mas investindo em algum tipo de reconhecimento financeiro, mesmo que tenha mais valor simbólico (como no Pnaic) e em apoios para atenderem os alunos com mais dificuldades.
A questão me parece ser mais de política pública de cada rede que de buscar solução na formação inicial pelas universidades. Hoje, nenhuma graduação, seja em saúde, engenharia ou pedagogia, por si só assegura que o recém-formado se torne bom profissional num subcampo especializado da graduação que fez.
Portal CENPEC Educação: Na PNA, proposta pelo MEC, fala-se em instrução fonêmica sistemática. Você pode nos esclarecer se há diferenças entre essa proposta e uma abordagem que proponha o desenvolvimento da consciência fonológica?
AGM: Sim, há enormes diferenças e elas precisam ser esclarecidas. Desde 1986, quando comecei a assessorar o Ciclo de Alfabetização da rede municipal de Recife (PE), defendo a promoção da consciência fonológica como uma condição necessária para a escola ajudar os aprendizes a compreenderem como a notação alfabética funciona.
Sempre defendi que as crianças que já alcançaram uma hipótese silábico-alfabética recebam ensino sistemático das relações fonema-grafema e grafema-fonema, porque nunca embarcamos na ideia de um aprendizado espontâneo do sistema alfabético. No entanto, desde o final dos anos 1980, nossas pesquisas já mostravam que:
- não adianta dar aulas de famílias silábicas ou de relações entre letras e fonemas para alunos que ainda não entenderam que a escrita nota as partes sonoras das palavras que pronunciamos;
- a consciência fonológica é uma condição necessária, mas não suficiente para as crianças compreenderem o SEA; e
- certas habilidades de consciência fonêmica treinadas pelos pacotes fônicos não são necessárias para uma criança se alfabetizar.
A tal “instrução fônica sistemática” é um nome novo para travestir a velha didática associacionista dos métodos sintéticos que conhecemos tão bem e de que temos tão triste memória.
Os primeiros métodos utilizados no ensino da escrita foram os sintéticos. O mais antigo deles, o alfabético, trabalhava com a unidade letra do alfabeto. Esse método partia da ideia de que antes se deveria aprender as letras em grupos de minúsculas e maiúsculas, depois algumas de suas combinações em várias tipos de estruturas silábicas que eram decoradas -, daí o termo silabários –, para depois encontrá-las em palavras monossílabas, dissílabas…”
Isabel Frade, Disputa ou diálogo entre métodos de alfabetização?
Ora, o que a PNA chama de “instrução fonêmica sistemática” tem dois problemas que é preciso denunciar. Por um lado, reduz a consciência fonológica a habilidades de consciência fonêmica, como se as crianças pudessem pensar sobre fonemas isolados, sem terem antes se tornado capazes de pensar no tamanho das palavras, sem terem observado que certas palavras começam com sílabas parecidas ou que rimam.
Por outro lado, nessa “instrução” está a obsessão de transmitir, desde o primeiro dia do ano letivo, informações prontas sobre o valor sonoro das letras. Mesmo sem entender que as letras substituem partes sonoras das palavras orais, os aprendizes são obrigados a, mecânica e repetitivamente, pronunciar fonemas soltos, em voz alta, e a escrever e ler letras soltas ou palavras tresloucadas, que não existem no mundo real.
Portal CENPEC Educação: Qual seria a melhor forma de acompanhar e avaliar as crianças ao longo de sua alfabetização?
AGM: É preciso ter diagnósticos periódicos, baseados em metas definidas, coletivamente, e que constituem os direitos de aprendizagem do currículo de cada rede. Ao lado dos diagnósticos que cada docente faz no dia a dia e registra, defendo bastante que cada rede tenha avaliações em rede, comuns a cada série ou ano, da educação infantil ao final do 5º ano.
Essas avaliações devem ser aplicadas no início, no meio e no final do ano letivo. Os resultados precisam ser apurados pelos próprios alfabetizadores, juntamente com os formadores/coordenadores pedagógicos que trabalham com eles.
É fundamental que esses resultados sejam debatidos no coletivo de cada escola e da rede como um todo. E que a reflexão sobre os resultados encontrados sirva de ponto de partida para definir:
- o planejamento do que se vai ensinar e do que se vai fazer com os estudantes com níveis diferentes;
- o que se vai priorizar na formação em serviço, de modo a apoiar os professores para eles poderem ajustar o ensino ao que é prioritário; e
- o que precisa ser revisto e modificado no currículo, de modo a ajustar as metas aos progressos e lacunas que os alunos demonstram serem capazes de aprender.
É assim que Magda Soares tem praticado com os educadores de Lagoa Santa (MG) e os resultados obtidos são muito bons, atestando que esse tipo de política séria é consequente.
Portal CENPEC Educação: Qual é o papel das famílias na alfabetização e no letramento das crianças? Qual é a sua opinião sobre o programa Conta pra Mim, recentemente lançado pelo MEC?
AGM: A PNA e o programa Conta pra Mim adotam uma perspectiva de letramento bastante limitada, que ignora as condicionantes sociais que definem por que famílias de diferentes grupos ou de um mesmo grupo social valorizam ou não certas práticas letradas.
É uma visão reducionista, que limita o conceito de letramento a um “conjunto de habilidades”, fora de contexto. As contradições ficam ainda mais evidentes quando a PNA prioriza a transmissão de informações prontas para as crianças decorarem as relações grafema-fonema, lendo listas de palavras loucas e lendo péssimos somatórios de palavras que não podem ser chamados de textos.
Claro que as famílias precisam ser envolvidas na escolarização das crianças. Os pais ou responsáveis têm o direito de saber o que a escola faz com seus filhos, que ensino recebem a ano escolar, e precisam ser orientados sobre como contribuir para motivar e ajudar seus filhos a ler e escrever melhor e com autonomia. Mas é a escola que deve assegurar as oportunidades sociais de efetivo acesso ao mundo letrado.
Isso requer colocar o letramento no centro das práticas cotidianas desde o final da educação infantil. Isso requer prover a escola de bons livros e outros recursos (inclusive digitais) que tragam os bons autores e os textos do universo infantil para a sala de aula e para serem emprestados, para as crianças lerem com os adultos em casa, nos fins de semana, por exemplo.
Não é apagando toda a discussão que temos feito há décadas sobre as relações entre letramento e alfabetização que o MEC vai avançar na redução de nossas desigualdades sociais, quando o tema é o acesso ao mundo da escrita.
Sobre o entrevistado
Artur Gomes de Moraes
Com graduação e mestrado em Psicologia pela UFPE, doutorado em Psicologia pela Universidad de Barcelona, fez pós-doutorado na mesma universidade, no Institut National de la Recherche Pédagogique, na Université Paris XII e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Colaborou com o Ministério da Educação (MEC) em diferentes programas: Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), PCN em Ação, Profa, Pró-Letramento, Plano Nacional do Livro Didático (PNLD), Provinha Brasil, Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (Pnaic) e Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA).
Seus trabalhos são referência importante a pesquisadores e educadores na área da alfabetização, do ensino e aprendizagem da língua portuguesa e da formação de professores. Entre suas mais de 80 publicações, destacamos os livros: Consciência fonológica na educação infantil e no ciclo de alfabetização (2019), Sistema de escrita alfabética (2012) e A argumentação em textos escritos: a criança e a escola (em coautoria com Telma Ferraz Leal, 2007).
Referências citadas ao longo da entrevista
FONTES, M. J.; CARDOSO-MARTINS, C. Efeitos da leitura de histórias no desenvolvimento da linguagem de crianças de nível socioeconômico baixo. Psicologia: Reflexão e Crítica. 2004, v. 17, n. 1: 83-94, 2004.
MORAIS, A. G. Análise crítica da PNA (Política Nacional de Alfabetização) imposta pelo MEC através de decreto EM 2019. Revista Brasileira de Alfabetização, v. 1, p. 66-75, 2019.
REGO, L. L. B. Descobrindo a língua escrita antes de aprender a ler: algumas implicações pedagógicas. In KATO, M. (org.) A concepção de escrita pela criança. Campinas: Pontes, 1988. (pp. 105-135).
SOARES, M. B. Alfabetização: a questão dos métodos. São Paulo: Contexto, 2016.
#CENPECexplica: Alfabetização em foco
Clecio Bunzen: Letramento e/ou literacia?
Sônia Madi: Alfabetizar letrando é o caminho do meio
Isabel Frade: Disputa ou diálogo entre métodos de alfabetização?
Carlota Boto: entre o político e o pedagógico
Antonio Batista: múltiplos saberes em torno da alfabetização
Magda Soares e Maria Alice Junqueira (CENPEC Educação) comentam cartilha da Política Nacional de Alfabetização
Liane Araújo (UFBA): fala e escrita em diálogo na alfabetização
Veja também
Métodos de alfabetização no Brasil (artigo de Marlene Alexandroff)
Conta pra mim: programa pode não atingir mais pobres
Literacia familiar: a voz de especialistas
CONTEÚDOS RELACIONADOS