Efetivar o direito à educação de qualidade para todos e todas é ainda um objetivo a ser alcançado em nosso país, apesar dos avanços nas últimas décadas, com a universalização das matrículas na educação básica. Desafio ainda maior é garantir condições adequadas à participação efetiva de pessoas com deficiência nos espaços escolares e processos pedagógicos. A meta 4 do Plano Nacional de Educação (PNE), que contempla a educação inclusiva como modalidade transversal a todos os níveis de ensino, estabelece:
Universalizar, para a população de 4 a 17 anos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, o acesso à educação básica e ao atendimento educacional especializado (AEE), preferencialmente na rede regular de ensino.”
PNE (MEC, Lei 13.005/2014)
Quais são as condições necessárias para se efetivar a educação inclusiva em contexto remoto, como tem acontecido em diversas redes de ensino? Com a discussão sobre os próximos passos – seja o retorno às aulas presenciais e o ensino híbrido, seja a continuidade exclusiva do ensino a distância, ou ainda o cancelamento do ano letivo – o planejamento é fundamental tanto para garantir o direito à educação de todos e todas, como para defender a segurança e a saúde de estudantes, professores e demais envolvidos.
Em relação ao público de inclusão, o Instituto Rodrigo Mendes (IRM) tem desenvolvido e disponibilizado inúmeras informações, materiais formativos e pesquisas com o objetivo de orientar redes, escolas e profissionais neste momento complexo.
Entre as ações necessárias no caso de continuidade do ensino a distância, o IRM aponta o acesso a equipamentos, à internet e a materiais didáticos, assim como conteúdos audiovisuais com legendas, janela de Libras e audiodescrição. Além disso, é fundamental a participação de professores do Atendimento Educacional Especializado (AEE) no planejamento, para que a inclusão de todos os estudantes seja pensada desde o início.
… é evidente que o desafio de não deixar ninguém para trás ganha outra dimensão diante das óbvias limitações desse modelo quanto à interação social e a construção de vínculos afetivos. Simplesmente disponibilizar uma série de aulas em vídeo na internet e esperar que todos aprendam é o caminho certo para a exclusão de muitos. Quer dizer, o ensino a distância não pode ser visto como uma resposta definitiva, mas como um complemento ao conjunto de experiências presenciais desfrutadas pelo aluno no cotidiano escolar.”
Protocolos sobre educação inclusiva na pandemia: experiências internacionais
A fim de contribuir para a implementação de políticas públicas voltadas à garantia do direito à educação das pessoas com deficiência, o IRM disponibilizou um relatório de pesquisa com base em consulta a especialistas de diversos países e em documentos de organismos internacionais e governos de países que já elaboraram protocolos voltados à educação nesse período.
Intitulado Protocolos sobre educação inclusiva durante a pandemia da Covid-19: um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais, o relatório apresenta diretrizes, protocolos e práticas que podem ser usados com exemplos para gestores, professores e demais profissionais e instituições relacionados à educação.
Para falar sobre o tema, conversamos com três profissionais do Instituto: Luiza Correa, coordenadora de advocacy, Lailla Micas, coordenadora do DIVERSA (plataforma de construção de conhecimentos em inclusão criada pela organização em 2011) e Luiz Conceição, coordenador de formação. Confira:
Portal CENPEC: Neste momento de pandemia, que diretrizes devem ser tomadas pelos governos a fim de desenvolver políticas públicas que minimizem os danos do distanciamento social e garantam o direito à inclusão na educação?
Lailla Micas e Luiza Correa: A primeira e principal medida para minimizar os danos do isolamento social é que seja mantido o vínculo e a comunicação com a escola, os professores e os colegas. A comunicação da escola com os alunos deve ser atenciosa, abrangente e consistente.
Também é necessário um esforço para garantir que todos tenham acesso à infraestrutura, o que inclui muitas vezes computador, internet e outras ferramentas, como softwares de leitura para pessoas com deficiência visual. Algumas experiências abordadas na pesquisa Protocolos para educação inclusiva durante a pandemia da Covid-19 mostraram estratégias diferentes para possibilitar este acesso, como empréstimo de computadores pelas escolas, parcerias com empresas privadas e fornecimento pelo Estado.
As aulas e os materiais didáticos devem ser acessíveis e construídos em parceria entre o professor da classe e o professor de Atendimento Educacional Especializado, buscando considerar as especificidades e potencialidades de cada estudante. No caso de conteúdos audiovisuais, são necessários os seguintes recursos de acessibilidade: janela com intérprete de sinais; legendas; e audiodescrição.
Portal CENPEC: É possível estabelecer um protocolo comum para a educação inclusiva neste período, tendo em vista o cenário complexo e diverso como o brasileiro? Como contemplar as diferentes realidades e seus desafios para a garantia do direito à educação das pessoas com deficiência?
Lailla Micas e Luiza Correa: De fato, há localidades no Brasil que estão ensinando por meio de televisão ou rádio, que tornam o desafio da inclusão de estudantes com deficiência mais complexo, mas não impossível de ser atingido. Muitos alunos não têm um lugar tranquilo para estudar, outros estão sob cuidados de familiares que estão trabalhando e podem não conseguir apoiá-los.
Estamos cientes do desafio colossal que é ensinar em um contexto de isolamento social. Em um contexto de ensino on-line, além de acesso à infraestrutura de computadores, é importante que as atividades sejam desenvolvidas em conjunto pelo professor da classe e o professor do AEE, garantindo que o material seja acessível e adequado às potencialidades de cada estudante.
Também é importante acompanhar o desenvolvimento e contexto de cada estudante, e endereçar as possíveis dificuldades encontradas durante o percurso. Mesmo no período de ensino à distância, é importante acompanhar os alunos e, caso eles não enviem as atividades, entrar em contato com as famílias, fazendo uma busca ativa para tentar ajudá-los a dar continuidade ao estudo, ainda que remoto.
Portal CENPEC: Citando Rodrigo Mendes “para que todos tenham acesso ao conhecimento precisamos considerar diferentes formas de ensinar”. Para isso, ele defende a necessidade de diversificar materiais, metodologias e interlocução com os estudantes também no ensino remoto. O que os professores e gestores devem observar em suas práticas e ao selecionarem recursos educacionais tendo em vista a efetiva inclusão de todos os estudantes?
Lailla Micas e Luiza Correa: Cada pessoa aprende de um jeito, seja ela com ou sem tenha ou não deficiência. O desafio é criar estratégias pedagógicas que contemplem as peculiaridades de cada um e atenda às suas especificidades. Inspirando-se nos princípios do desenho universal para aprendizagem, educadores podem elaborar estratégias e materiais pedagógicos que possuam recursos visuais, sonoros e táteis, possibilitando assim diferentes estímulos e formas de aprendizado dos estudantes. Todos os sites, aplicativos, recursos educacionais utilizados devem ser acessíveis. Outra maneira de considerar a todos é oferecer alternativas para que uma mesma atividade seja realizada por escrito, vídeo, desenho, áudio, entre outras possibilidades, ou até mesmo flexibilizar sua entrega.
É necessário também garantir que as tecnologias assistivas usadas pelos estudantes na escola sejam disponibilizadas para uso domiciliar, por meio de empréstimo da escola ou outras maneiras já citadas para as demais tecnologias.
Portal CENPEC: A interação entre estudantes e professores é um elemento importante para o desenvolvimento de pessoas com determinados transtornos, como o autismo. De que forma essa interação pode ser promovida no ambiente remoto?
Luiz Conceição: A interação entre estudantes e professores é importante para TODOS os estudantes. Sem dúvida, uma questão-chave dos estudantes com Transtorno do Espectro Autista ou Autismo (TEA) é a interação, sendo inclusive esse um dos principais pontos observados no diagnóstico diferencial dos indivíduos que têm o transtorno. Porém, novamente, devemos salientar que cada estudante tem sua história, trajetória e preferências.
Durante a pandemia é crucial que os professores das classes comuns tenham contato com todos os estudantes. À medida que essa comunicação não se mostrar efetiva, devem-se buscar novos meios.
Por exemplo: uma rede que utiliza a comunicação por meio de aplicativos de mensagem instantânea, ou seja, utilizando internet, deverá encontrar uma solução para as famílias e estudantes que não possuem tal ferramenta para que as desigualdades não se ampliem e todos continuem tendo o direito à educação garantido. O mesmo vale para os estudantes com TEA, caso as ferramentas não se mostrem efetivas para sustentar a relação pedagógica, deve-se buscar meios para garantir o mesmo direito a esse segmento.
Portal CENPEC: Vocês podem indicar redes que estão desenvolvendo práticas exemplares nesse sentido?
Lailla Micas e Luiza Correa: Em tempos de isolamento social, escolas e redes de ensino no mundo inteiro têm enfrentado os desafios das atividades remotas emergenciais para crianças e adolescentes. Quando esses estudantes apresentam deficiências, o desafio pode ser ainda maior. Assim como no ensino presencial, para manter virtualmente a qualidade da educação inclusiva, são fundamentais monitoramento e avaliação constantes nos planejamentos estratégico e pedagógico realizados.
No Brasil, no que se refere à educação inclusiva, a rede pública de ensino pode ser considerada mais inclusiva que a rede privada, por abarcar maior diversidade social e racial e ter o maior número de alunos com deficiência. Contudo, após o início da pandemia, iniciativas educacionais da rede privada acabam por se destacar com recursos materiais assegurados e rapidez no estabelecimento de novas diretrizes e estratégias.
Um exemplo na rede privada é o Colégio Santa Cruz, em São Paulo (SP), que por meio do núcleo de inclusão tem planejado diferentes estratégias para garantir a participação de estudantes com deficiência nas atividades remotas oferecidas a toda a turma
Indicamos também duas redes públicas de ensino que estão demonstrando bastante reflexão e empenho para estabelecer vínculo com estudantes e seus familiares, diminuir a evasão e garantir o acesso de todos aos recursos disponibilizados pelas escolas e a participação de todos às atividades remotas: as secretarias municipais de educação de São Paulo e de Cruzeiro, ambas no estado de São Paulo.
No município de Cruzeiro, no interior do estado de São Paulo, a estratégia para garantir o aprendizado nesse momento foi a elaboração de planos de ensino remoto postados nos canais oficiais e nas redes sociais da SME, além de envio desses materiais e orientações para as famílias por meio de grupos de WhatsApp das escolas. Considerando a diversidade de perfis e possíveis restrições de acesso à internet, a secretaria optou por não utilizar uma plataforma ou sistema de aulas on-line. No caso de muitos estudantes da área rural, por exemplo, as famílias que manifestarem dificuldades recebem os materiais em casa.
Já na capital paulista, uma das providências da Secretaria Municipal de Educação foi estabelecer um canal de comunicação frequente entre as famílias e professoras(es) de AEE, equipe gestora e demais educadores. Além disso, a equipe de AEE passou a trabalhar em articulação com educadores da sala comum e todas as atividades devem basear-se no Currículo da Cidade de São Paulo. Em entrevista ao DIVERSA publicada em junho deste ano, Mônica Leone Garcia, diretora da Divisão de Educação Especial da SME, comenta as orientações às equipes de AEE buscando desenvolver espaços e momentos de acolhimento e escuta de estudantes e suas famílias, a fim de que nenhum aluno fique para trás durante a suspensão das aulas presenciais.
Portal CENPEC: Em médio prazo, a pandemia pode levar ao aumento da busca por educação especial?
Luiza Correa e Lailla Micas: A pandemia não pode ser pretexto para excluir estudantes com deficiência da escola comum. Conforme indicado na conclusão da pesquisa dos protocolos, o Brasil é um país com dimensões continentais, historicamente marcado por graves níveis de desigualdade social. Ainda assim, a inclusão escolar dos estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/ superdotação atingiu um patamar histórico nas redes de ensino do país.
De acordo com oCenso escolar(Inep/MEC) dos últimos dois anos, mais de 90% de alunas e alunos desse segmento, matriculados na Educação Básica, estavam estudando em salas de aula inclusivas, desfrutando do convívio com o restante dos estudantes. Essa estatística é considerada extremamente avançada, mesmo quando comparada às redes de ensino de países que se destacam mundialmente no campo da equidade.
Portanto, no contexto da pandemia, é importante assegurarmos a manutenção desses índices de inclusão e buscarmos estratégias para seguir avançando na construção de uma educação para todos.
Os conteúdos sobre boas práticas de educação inclusiva produzidos pelo IRM estão disponíveis no Portal DIVERSA. Acesse.
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