A edição 23 da Revista Crioula (USP) tem como tema a experiência étnico-racial nas literaturas de língua portuguesa
Está disponível o número 23 da Revista Crioula, publicação científica dos estudantes de pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
A edição traz o dossiê “A experiência étnico-racial nas Literaturas de Língua Portuguesa”. Nele, pesquisadores brasileiros e estrangeiros contribuem com estudos relacionados à temática racial ou étnica, nas diversas literaturas produzidas em países de língua oficial portuguesa, como Brasil, Angola, Moçambique e Portugal. Os textos que compõem a revista são de diversos gêneros: artigos, ensaios, entrevistas, resenhas e poemas.
Outras vozes na cena literária
Recentemente, escritoras e escritores negras e negros têm marcado forte presença tanto na produção como nos estudos e na crítica literária. Essa presença se dá por meio de publicações. saraus, slams e outras formas e canais de divulgação da cultura letrada.
Há até pouco tempo, a maioria absoluta dos nomes que compunham o cânone literário era quase exclusivamente branca e representante de uma visão eurocêntrica. A experiência étnico-racial, quando abordada, era expressa segundo essa ótica. Hoje ecoam vozes de sujeitos à margem do que se considerava padrão cultural exclusivo, a ser seguido sem contestações.
Ainda se trata de um espaço de luta e resistência. No entanto, já não se podem ignorar dessas vozes o “grito negro” que clama:
Eu sou carvão! Tenho que arder E queimar tudo com o fogo da minha combustão.
Sim! Eu serei o teu carvão Patrão!”
Estrofes finais do poema “Grito negro”, do moçambicano José Craveirinha, de 1964, poema que abre esta edição da revista
Entrevista com Esdras Soares
Para contar um pouco das propostas e temáticas desta publicação, conversamos com Esdras Soares, mestrando na área de estudos comparados em literatura de língua portuguesa e um dos responsáveis pela editoria da revista. Esdras também é técnico do programa Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (CENPEC/MEC).
Portal CENPEC: A Revista Crioula é organizada por estudantes de pós-graduação da área de literatura comparada da USP. Qual o enfoque dado aos estudos da literatura nessa perspectiva?
Esdras Soares: O corpo editorial da revista é composto por estudantes de pós-graduação da área de estudos comparados de literaturas de língua portuguesa. No entanto, qualquer estudante de pós-graduação pode submeter seus textos, não somente estudantes da USP.
A área de estudos comparados de literaturas de língua portuguesa nasce nos anos 1990, como uma espécie de “resposta à crise da literatura comparada”. Ela se insere no campo da literatura comparada, mas tem suas especificidades . A área é inovadora na medida em que traz à pesquisa brasileira a atenção à produção cultural dos países de língua oficial portuguesa, no Brasil, em Portugal, no continente africano e, recentemente, na Ásia (Timor Leste e Macau). Os estudos levam em conta as dinâmicas históricas e sociais desses países, refletindo sobre suas relações, a partir de uma abordagem comparatista. É também inovador o seu caráter interdisciplinar, que aborda a relação entre literatura e outras artes, como o cinema, a música e as artes visuais, por exemplo.
É interessante, ainda, retomar as reflexões do professor Benjamin Abdala Jr., um dos fundadores dessa área de estudo na USP, que fala de uma comunidade ibero-afro-americana, imbricada na ideia de comunitarismo e solidariedade. Para o autor, no nascimento dos estudos comparados de literaturas de língua portuguesa está a necessidade da criação de um modelo próprio de estudos e de apreciação crítica para abordagem dessas produções.
Portal CENPEC: Como os estudos comparados de língua portuguesa podem colaborar com o ensino-aprendizagem de literatura na escola e sua inserção na sociedade?
Esdras Soares: Por abranger países de língua oficial portuguesa, como Brasil, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau e Portugal, a área possibilita leituras e exercícios comparativos entre a produção cultural de diferentes países, o que pode favorecer a reflexão sobre história, identidade, língua, entre outros aspectos. Além disso, a área é estratégica no cumprimento das leis 10.639/03 e 11.645/08 – que estabelecem a obrigatoriedade do ensino das histórias e culturas africanas, afro-brasileira e indígena – uma vez que uma das possibilidades de cumprimento da lei é o estudo dos diálogos literários entre Brasil e o continente africano.
Portal CENPEC: A última edição da revista aborda relações étnico-raciais nas literaturas de língua portuguesa e a próxima tratará de questões de gênero. Como se dá a seleção de temas e textos para a composição da revista?
Esdras Soares:Um dos objetivos do programa é inovar no campo teórico, o que significa a consideração de novos estudos, problemas e objetos, criando uma abertura para debates contemporâneos. Dessa forma, categorias como colonialismo, estudos feministas, relações étnico-raciais, masculinidades, sexualidades e Teoria Queer, entre outras, têm sido apropriadas enquanto conceitos crítico-analíticos nos estudos literários. O próprio corpo docente e discente é proveniente de diversas perspectivas teórico-críticas, o que é muito enriquecedor. Aliado a isso, está o olhar muito atento dos(as) editores(as), que tentam capturar, na medida do possível, o que se tem estudado nas universidades brasileiras e estrangeiras.
A proposta de um novo paradigma cultural se apresenta não só nos temas e na expressão literária. Ela se percebe também nas escolhas estéticas. Desde na imagem da capa, ilustrada pelo perfil de uma mulher negra, de turbante, tendo no pescoço o símbolo de origem africana (adinkra) AYA, que representa a ideia de “resistência e perseverança”. O símbolo remete à imagem da folha de samambaia, planta delicada, mas capaz de vingar em ambientes adversos.
Adinkra: sistema de símbolos que representam ideias expressas em provérbios. O adinkra faz parte da cultura dos povos acã da África ocidental (notadamente os axante, de Gana). Os símbolos são estampados em tecidos e adereços, esculpidos em madeira ou em peças de metal. Muitos deles eram usados para identificar linhagens da nobreza. Veja outros símbolos adinkra.
A experiência étnico-racial entre clássicos e contemporâneos
O artigo mestre, que abre a edição, apresenta “Novas perspectivas para Comparatismo Literário de Língua Portuguesa: as séries afrodescendentes”, de Emerson da Cruz Inácio. Nesse texto, o professor da USP reflete sobre o os estudos comparados em literaturas de língua portuguesa e discute a recente entrada das literaturas afroidentificadas e LGBTTTQ+.
… as pessoas negras, ao se quererem e se verem representadas, querem ver-se para além dos espaços da grande cultura de massa, do show bussiness ou do campo esportivo, demandando, portanto, uma expressão estética mais elaborada, mormente enfatizada pela produção literária. O passo seguinte dirá respeito ao fato de que a essa demanda por literatura produzida por pessoas negras infere e corresponde à existência de um leitor literário negro, com alguma formação acadêmica e intelectual e que de certa maneira busca no processo representacional proporcionado pela e na literatura ecos de sua pertença étnico-racial e cultural.”
Emerson da Cruz Inácio
Ao lado de estudos sobre clássicos, como a leitura ensaística de “Navio negreiro”, de Castro Alves, ou de ícones da literatura dita periférica, como Capão pecado, de Ferréz, emergem análises de obras contemporâneas como o livro de crônicas #Paremdenosmatar!, de Cidinha da Silva, que se utiliza da linguagem contemporânea da cibercultura para denunciar o genocídio contra a população negra, especialmente jovens do sexo masculino, no Brasil. O livro é discutido no artigo “Gritos insurgentes em carne viva e hashtag: #Paremdenosmatar! e o escrever contra o genocídio do negro brasileiro”, de Jânderson Albino Coswosk.
Já “Experiências transversais: formação, pesquisa e docência vistas de dentro”, de Lara Santos Rocha, traz questões muito pertinentes para quem trabalha com literatura na escola. Nesse artigo, a mestranda em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa na USP, também professora da rede pública de ensino e militante antirracista, trata das dores e delícias de ser “professora acadêmica e acadêmica professora”, dividida entre funções e papéis com tempo de produção reduzida, mas com terreno largo à reflexão e brechas férteis a práticas docentes dialógicas e inovadoras. No entanto, como ela alerta:
Na academia, precisamos estar presentes para voltarmos todo o tempo para o chão da sala de aula, para a realidade de professores e estudantes das escolas públicas, e não nos deixarmos iludir pela teoria.”
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