- Tamara Castro
Alexandre Barbosa Pereira
Quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem.
Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém
Racionais Mc’s, “Da ponte pra cá”
A cena é cada vez mais comum nas mais diferentes modalidades e instituições de ensino: o professor escreve na lousa a lição que deveria ser copiada por seus estudantes, que, em vez disso, preferem fotografar a lousa. Aplicam, assim, as inovações tecnológicas ao seu favor para tentar minimizar o monótono esforço de copiar a lição e, desse modo, ganhar mais tempo livre para conversar, paquerar, zoar ou mesmo explorar algumas das múltiplas funções de seus smartphones. Cenas como essas revelam uma série de transformações que afetam direta ou indiretamente o cotidiano escolar e as suas práticas de letramento.
Uma primeira constatação a ser ressaltada refere-se às dissonâncias que as novas tecnologias geram ao entrar no cotidiano das escolas e, inevitavelmente, confrontar-se com essa realidade e com a prática docente. O ingresso das tecnologias, principalmente hoje com os smartphones e tablets contribuem, em primeiro lugar, para introduzir o mundo externo ou alheio à escola. Não são apenas os aparelhos de telefone com os múltiplos recursos que entram nas escolas, mas todo um universo multimidiático com o qual a escola sabe lidar muito pouco e quase sempre de forma desajeitada. Logo ela que se formou historicamente com base em um grande zelo em estabelecer fronteiras rígidas com o mundo exterior.
Pode parecer estranho que a prisão seja semelhante às fábricas, escolas, quartéis, hospitais; todos eles se parecem com prisões?” (FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 38 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.)
Em minha pesquisa de doutorado, realizada em escolas públicas de bairros das periferias de São Paulo (PEREIRA, 2010), procuro demonstrar como o fechamento atual das escolas, principalmente das públicas voltadas majoritariamente aos jovens pobres, revelam um grande descompasso com as realidades sociais dos jovens na contemporaneidade.
Em outra reflexão (PEREIRA, 2012), discuto como a escola – pensada como o rito de passagem prolongado de nossa sociedade, pois tenta preparar as crianças e jovens para se formarem adultos, cidadãos e/ou trabalhadores – tem cada vez mais falhado ou encontrado muitas dificuldades em cumprir essa tarefa, contentando-se com a proteção das passagens pela implementação de inúmeros e bem trancados portões, muros altos, grades, fechaduras e os mais diversos dispositivos de fechamento do prédio escolar à realidade exterior. Quase impossível adentrar um prédio desses fora do horário de entrada e saída.
As novas tecnologias da comunicação e da informação não apenas produzem novas formas de conhecimento, como também proporcionam novas formas de pensar e com as quais organizar o pensamento.
Contudo, apesar dos inúmeros dispositivos de trancamento, segurança e vigilância, os smartphones entram e não entram apenas fisicamente, mas embutidos ou adicionados nas novas formas de se compreender a sociedade atual e mesmo de relação com o conhecimento, a aprendizagem e o letramento. Os acessórios tecnológicos adentram as escolas incorporados aos modos dos jovens de ver e experimentar o mundo na contemporaneidade. Os itens tecnológicos tornam-se porção fundamental das técnicas corporais juvenis, das formas de disporem seus corpos e sentidos.
As novas tecnologias da comunicação e da informação não apenas produzem novas formas de conhecimento, como também proporcionam novas formas de pensar e com as quais organizar o pensamento. Trata-se de novas formas de letramento. Muitos professores têm refletido sobre a possibilidade de incorporar essas novas tecnologias no cotidiano escolar, como forma de obter conhecimento e mesmo de organizar as tarefas escolares. Entretanto, lembrou-me recentemente um professor, em curso de formação para professores de uma escola pública de um bairro a periferia de São Paulo, que a controvérsia do telefone celular nas salas de aula foi tão grande que se criou, em 2007, uma lei estadual proibindo o uso de tais aparelhos nas escolas. Tramitava, ainda em 2012, um projeto de lei federal visando proibir o uso de telefones celulares em todas as escolas do país. Essa proibição revela um aspecto mais profundo da desestabilização que os telefones celulares, mas também as diversas outras tecnologias da informação, do entretenimento e da comunicação, provocam nas relações educativas. Essas tecnologias alteram substancialmente as relações de autoridade de nossa sociedade.
Nos anos 1980, Neil Postman (1999), por exemplo, já defendia, em O desaparecimento da infância, a televisão como um elemento desestabilizador da autoridade adulta, na medida em que tal tecnologia de comunicação revelaria segredos antes restritos aos adultos, por um lado, e desvalorizaria a importância da escrita, por outro. O fato é que não apenas os telefones celulares, mas também os jogos eletrônicos, a internet e suas infinitas possibilidades, a produção cultural de massa, as expressões culturais juvenis e mesmo a televisão afetam profundamente as relações dos estudantes com a escola, em seu modo tradicional de organizar-se e organizar o conhecimento.
Autores como Bill Green e Chris Bigum (1998) discutem as novas formas de inserção dos jovens no ambiente de ensino e os denominam como “alienígenas na sala de aula”. Eles defendem o surgimento uma nova geração com uma constituição radicalmente diferente: “o sujeito-estudante pós-moderno”.
A construção social e discursiva da juventude envolve um complexo de forças que inclui a experiência da escolarização, mas que, de forma alguma, está limitada a ela. Entre essas forças e fatores estão os meios de comunicação de massa, o rock e a cultura da droga, assim como várias outras formações subculturais. Até o momento, entretanto, educadores/as, professores/as, pesquisadores/as e elaboradores/as de políticas não têm considerado essas perspectivas e questões como sendo dignas de atenção” (GREEN, BIGUM, 1998, p. 210).
A influência dos produtos tecnológicos na conformação do que Green e Bigum denominaram como juventude pós-moderna seria tão grande que os autores se servem da metáfora do ciborgue para designá-la. Eles sugerem, com essa metáfora, uma relação de forte continuidade entre os jovens e sua porção máquina representada pelos aparelhos de comunicação e entretenimento. Em resumo, Green e Bigum expõem que “a partir do nexo entre a cultura juvenil e o complexo crescentemente global da mídia está emergindo uma formação de identidade inteiramente nova.” (GREEN & BIGUM, 1998, p. 214.)
Ciborgue: é um híbrido entre o ser humano e a máquina, pessoa que tem sua existência constituída pela tecnologia digital. O conceito de uma mistura “homem-máquina” foi difundido na ficção científica antes da Segunda Guerra Mundial. Em 1843, no conto “O homem que foi usado”, o escritor estadunidense Edgar Allan Poe narra a história de um personagem, herói de guerra, composto por próteses mecânicas. (Na imagem ao lado, perna robótica criada pela Air Muscles e construída pela The Shadow Robot Company Ltda. )
Carles Feixa (2004), estudioso das práticas culturais juvenis, trará como denominação para a juventude contemporânea, a noção de “geração @”. O termo diz respeito, segundo ele, a três tendências das relações culturais juvenis na atualidade: certa universalização do acesso às tecnologias do conhecimento e da informação; o esmorecimento das divisões tradicionais entre os sexos e os gêneros; e um processo de globalização cultural, que teria como consequência novas formas de exclusão social em escala planetária. Já para outra autora, Regina Novaes, o ciberespaço seria mais uma agência de socialização dos jovens que ultrapassa os domínios das instituições tradicionais de socialização dos jovens.
Claro que esse tipo de reflexão não faz sentido apenas para os jovens, pois, nos últimos tempos, os indivíduos das mais diferentes idades apresentam-se cada vez mais atrelados as suas porções máquina. Cabe ressalvar também que essa relação homem/máquina também não é nada nova. Não podemos nos esquecer da intrincada e íntima relação que a sociedade ocidental industrializada estabeleceu com o automóvel. Contudo, não é possível desconsiderar também as reflexões de Pierre Lévy (1999), importante estudioso da internet e da cibercultura, sobre as relações desses novos equipamentos com a juventude e vice-versa. Esse autor evidencia o protagonismo da juventude metropolitana escolarizada na emergência do ciberespaço, demonstrando como pela primeira vez na história são os mais jovens quem detêm, de um modo geral, maior conhecimento de uma importante inovação tecnológica.
Houve uma ampliação das agências socializadoras da juventude que extrapolam o âmbito da família e da escola, implicam o aumento do espaço de influência dos meios de comunicação e a presença da internet. A inovação tecnológica tem aproximado jovens de mundos diferentes.” (NOVAES, 2006, p. 119.)
A relação entre juventude e tecnologias da informação, comunicação e entretenimento não pode ser vista nem de um ponto de vista absolutamente pessimista, nem como a salvação da educação. Mais do que endeusar ou condenar as tecnologias, é cada vez mais necessário refletir sobre tais elementos, pois é fato que os jovens já formam suas subjetividades em constante interação com as novas tecnologias, conforme destacam autores como Paula Sibilia (2004) e Davi Le Breton (2003).
Desse modo, temos de atentar para a questão de que se, por um lado, há esse repertório de comunicação e atuação que as tecnologias propiciam aos jovens na atualidade, por outro, devemos também abordar o que os jovens fazem com os novos conteúdos e formas propiciados pela inovação tecnológica no campo da informação, comunicação e entretenimento. Trata-se de pensar as diferentes formas de letramento que os jovens elaboram com a escola, sem a escola e para muito além da escola. Letramento aqui entendido muito mais como prática social e leitura do mundo, do que apenas como alfabetização, conforme a discussão feita por Angela Kleiman (1995).
Cabe à escola propiciar aos jovens a possibilidade de experimentarem diferentes formas de ser jovem e estudante, que estão profundamente atreladas às chamadas culturas juvenis…
Parece-me cada vez mais fundamental que a escola desenvolva um efetivo olhar antropológico para os modos de vida dos jovens contemporâneos, que permita entender que as formas de ser jovem são inúmeras e as mais variadas possíveis, diversificadas conforme: gênero, raça/cor/etnia, classe social, território, religião, geração etc., da mesma forma como não há um único modo de ser aluno. A condição de aluno não é dada previamente, mas construída, ou inventada, como afirma José Gimeno Sacristán (2005), pela relação escola e aluno, como também pelas múltiplas interações com família, bairro, cultura de massa, religião etc. Assim, cabe à escola propiciar aos jovens a possibilidade de experimentarem diferentes formas de ser jovem e estudante, que estão profundamente atreladas às chamadas culturas juvenis: articulações que os jovens estabelecem com base na produção cultural de massa, com a elaboração de estilos distintivos e a articulação de práticas sociais em grupo ou em rede que se expande pelo espaço urbano.
Essa inter-relação entre os diferentes modos de ser jovem e os diferentes modos de ser estudante mostra-se ainda mais necessário entre os jovens das camadas populares, que já são marginalizados por sua origem socioeconômica e que estabelecem práticas culturais muitas vezes também marginalizadas. Atividades culturais como o RAP, o grafite, o “pixo” (assim mesmo com “x” conforme os próprios jovens escrevem) – elementos originários do hip-hop – e o contemporâneo e famigerado funk têm propiciado aos jovens espaços que, na maioria dos casos, a escola não consegue oferecer: 1) um espaço para que os jovens expressem o que pensam, sentem e desejam e 2) um espaço de reconhecimento, visibilidade e afirmação. No funk, no RAP e mesmo em práticas criminalizadas como a pichação, aquele que se envolve mais na atividade juvenil da qual faz parte é reconhecido e reverenciado pelos colegas como alguém de respeito, destaque e compromisso.
A escola conseguiria proporcionar tais espaços de expressão e reconhecimento? Espaços os quais são ainda mais fundamentais para os jovens das classes populares, que são constantemente subalternizados e possuem poucas oportunidades de dizer o que pensam e sentem, e de envolver-se em atividades nas quais se sintam valorizados. Não se trata, entretanto, de imitar ou encenar as práticas culturais juvenis de forma empobrecida e controlada na escola, nem de criar cópias baratas e chatas de jogos eletrônicos ou grupos sociais na internet, mas de atentar para essas diferenças, não as desmerecendo e descartando de antemão, mas procurando estabelecer algum tipo de comunicação com elas, para enriquecê-las e permitir aos jovens ampliarem seus repertórios culturais. Somente quando a escola for capaz de entender e respeitar as múltiplas alteridades que os jovens trazem é que ela será capaz de estabelecer uma autoridade legítima.
Referências bibliográficas
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Professor Adjunto do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Graduado (Bacharelado e Licenciatura) em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre (2005) e Doutor (2010) em Antropologia Social pela USP. Desenvolve pesquisas nas áreas de Antropologia Urbana, Antropologia da Educação e Antropologia da Juventude. Autor de A maior zoeira na escola: experiências juvenis na periferia de São Paulo. Contato: alebp1979@gmail.com.
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