- Tamara Castro
Por Stephanie Kim Abe
Sabia que apenas 5% da população brasileira tem letramento científico proficiente? E que 48% dos brasileiros tem um nível rudimentar? Isso significa que quase metade da população não consegue, por exemplo, estabelecer propostas de resolução de problemas a partir de evidências científicas em textos técnicos (como manuais e tabelas) ou avaliar afirmações que exigem o domínio de conceitos e termos científicos e elaborar argumentos sobre a veracidade de alguma hipótese.
Esses são os resultados do Indicador de Letramento Científico (ILC), elaborado em 2014 com o objetivo de determinar os diferentes níveis de domínio das habilidades de letramento no uso da linguagem e dos conceitos do campo da ciência no dia a dia dos(das) brasileiros(as).
Segundo Lucineia Alves, bióloga, pós-doutora em Neurociências pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professora no Centro de Educação Superior a Distância do Estado do Rio de Janeiro (CEDERJ) da UERJ e da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro:
Letramento científico ou alfabetização científica são os conhecimentos básicos que possibilitam a um indivíduo compreender acontecimentos de seu cotidiano e, de forma mais ampla, acontecimentos do mundo em que vive. Ele é importante porque possibilita ao indivíduo se tornar uma pessoa capaz de desenvolver habilidades como o espírito crítico/questionador e lhe confere a capacidade de investigar, buscar soluções e resolver problemas.”
Lucineia Alves
No Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa), realizado a cada 3 anos pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em vários países, os(as) estudantes brasileiros(as) também aparecem com baixo desempenho em ciências e matemática. Em 2018, 55% dos alunos, com 15 anos de idade, não possuíam nível básico de ciências, e o número chegava a 68,1% em matemática, o mínimo para o exercício pleno da cidadania.
Ciências para explicar o mundo
Uma das inferições do ILC é a existência de um buraco no que diz respeito à contextualização dos aprendizados científicos dentro da escola, o que levaria à dificuldade da população em aplicar os conhecimentos abstratos nos problemas cotidianos.
Marcela Babini, licenciada em Física pelo Instituto Federal do Ceará e editora da página Mulheres na Ciência, também enxerga essa como a principal barreira para que os(as) estudantes se interessem pelas ciências da natureza:
Existe uma preocupação muito grande com a alfabetização e a matemática. Nessa educação, a relação da criança com o mundo, nas idades mais jovens, é muitas vezes deixada de lado – e ela é super importante. Enquanto o conteúdo é só uma fórmula, não desperta interesse. Mas quando passa a explicar, por exemplo, como eu consigo escutar as pessoas, o que faz com que o som chegue em mim, esse conteúdo se torna fascinante.
Marcela Babini
A principal função de estudar ciências na escola é fazer com que as pessoas tenham uma vida melhor, aproveitando o seu conhecimento científico pra utilizar melhor os recursos, ficar menos doentes, correr menos riscos. É uma fina arte, que eu chamo, de fazer a ciência parecer uma história que se está contando sobre como as coisas funcionam, trazendo o mundo pra dentro da sala de aula.”
Além de fazer essa correlação da realidade com o conteúdo da aula, a escola deve estimular o pensamento científico. Para Mariana Inglez, bioantropóloga e doutoranda no Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva da Universidade de São Paulo (LAAAE-USP), isso significa:
Estimular a curiosidade, a criatividade e o questionamento, a resolver problemas e a não aceitar qualquer resposta. Aliás, se questionar faz parte do que significa ser um ser humano. Perguntar por que eu estou aqui, de onde vim, por que o céu é azul. E muitas vezes a gente vai silenciando essas questões nas crianças. Pelo contrário, precisamos estimulá-las desde pequenas a desenvolver essas habilidades, que são características importantes para os(as) cientistas.”
Mariana Inglez
Para Lucineia Alves, a falta de investimento robusto na educação básica de modo geral e em especial na educação em ciências diz muito sobre a desvalorização dessa área, de modo geral, por parte dos governos:
Isso leva a poucos recursos financeiros dispensados a ações e aquisição de materiais pedagógicos que possam ser usados nas aprendizagens relacionadas à promoção do letramento científico dos estudantes, e à falta ou escassez de formação continuada para os professores de Ciências e Biologia.”
Lucineia Alves
Saiba mais sobre como aproveitar o tema da pandemia para o ensino de ciências biológicas.
Nada melhor para incentivar os(as) alunos(as) do que um desafio, certo? Como por exemplo quando eles(as) são instigados(as) a identificar problemas reais da comunidade para juntos(as) elaborar uma proposta de solução criativa e inovadora. É essa a proposta do Prêmio Respostas para o Amanhã (RPA), uma iniciativa global da Samsung com a coordenação técnica do CENPEC Educação.
O programa busca estimular e divulgar projetos de investigação e experimentação científica e/ou tecnológica desenvolvidos por estudantes do ensino médio de escolas públicas. O Prêmio enfatiza a abordagem STEM, em que o ensino de Ciências encontra suporte na Tecnologia, na Engenharia e na Matemática para soluções inovadoras de problemas reais em uma situação concreta.
Realizado no Brasil desde 2014, o RPA já envolveu 162.906 estudantes, 15.803 professores e 5.036 escolas públicas em 8.113 projetos inscritos. Em sua 7ª edição, ano passado, os projetos vencedores trataram do apoio à agricultura familiar, do combate à fome, do controle da poluição, do reflorestamento e do tratamento de água.
Saiba tudo sobre o Prêmio e conheça os vencedores da 7ª edição aqui!
Um olhar para a questão de gênero
Quando analisamos os dados do Pisa mais profundamente, identificamos um outro gargalo do ensino de ciências: as desigualdades de gênero. Na prova de 2015, por exemplo, a porcentagem de alunos brasileiros com rendimento mais elevado em ciências era o dobro em relação às meninas.
A professora Lucineia Alves desenvolve uma hipótese para esse resultado:
Os professores podem influenciar negativamente suas alunas quando apontam somente os obstáculos e desvantagens das mulheres na ciência e tecnologia, quando ressaltam somente os sucessos dos homens nessas áreas, e quando esquecem de valorizar a igualdade de gênero no dia a dia na sala de aula.”
Lucineia Alves
O estudo “O que está por trás da desigualdade de gênero na educação”, de 2015 da OCDE, aponta que a falta de confiança das garotas pode afetar o seu desempenho em ciências e matemática:
Quando os estudantes são mais autoconfiantes, eles se dão a liberdade de falhar, de se envolver nos processos de tentativa e erro que são fundamentais para a aquisição de conhecimentos em matemática e ciências.”
OCDE, 2015
Um dos estudos mais famosos que traz esse olhar para como a questão de gênero afeta o aprendizado nas ciências foi publicado na revista científica Science, em 2017, e revela que as meninas começam a dissociar a imagem de uma pessoa genial e inteligente do sexo feminino a partir dos seis anos. Até então, quando perguntadas sobre uma pessoa muito inteligente, as crianças (tanto meninas quanto meninos) se referiam a alguém do próprio sexo. Ou seja, elas se achavam tão inteligentes quanto eles.
Para Mariana Inglez:
Vemos estudos também que mostram que já na primeira infância, meninos são mais estimulados a brincadeiras com criatividade e exploração, enquanto as meninas acabam sendo mais estimuladas a brincadeiras relacionadas ao cuidado. Como consequência, nas diferentes áreas científicas, temos um protagonismo ainda bastante masculino.”
Mariana Inglez
De acordo com o Instituto de Estatísticas da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UIS-Unesco), menos de 30% dos pesquisadores(as) no mundo hoje são mulheres – sendo que elas compõem metade da população mundial.
Mulheres nas ciências sim!
Apesar desse cenário, há luz no fim do túnel. As mulheres não só têm estado mais presentes nas áreas de ciências da natureza, como têm se sentido mais representadas. De acordo com dados da revista Science, desde a década de 60, a porcentagem de mulheres que ocupam cargos científicos aumentou de 28% para 49% nas ciências biológicas, de 8% para 35% em química e de 3% para 11% em física e astronomia.
Iniciativas que buscam aumentar e dar visibilidade à representatividade nas carreiras científicas têm pipocado nos últimos anos – e contribuído muito para incentivar as novas gerações.
O site Mulheres nas Ciências, que começou como um grupo no Facebook em 2016, é uma delas. Como Marcela Babini, editora desde 2019, explica:
A gente quer divulgar o pensamento de mulheres para mulheres sobre mulheres, criando realmente uma rede de apoio, em que elas possam encontrar outras com a mesma história, encontrar histórias inspiradoras, ou ainda pesquisas que conversem com a sua, e buscar parcerias.”
Marcela Babini
Já Mariana Inglez é coordenadora de outra iniciativa bacana: o projeto Evolução para Todes, que busca divulgar o conteúdo acadêmico produzido por ela e outros(as) cientistas do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva (LAAAE-USP). Criado em parceria com Lisiane Müller e Eliane Chim, o projeto tem como público-alvo meninas, mulheres e pessoas negras, e traz essa preocupação com a inclusão de gênero já no nome (“todes”).
Como tornar essa área de conhecimento que estuda a diversidade da nossa espécie também mais diversa, do ponto de vista científico? Como a gente pode estudar o que é ser humano e ter só uma parcela dessa sociedade, homens e de maioria branca, estudando isso? Por isso essa necessidade de conversar, ampliar o diálogo para além dos muros da academia.”
Mariana Inglez
Além de conteúdos nas redes sociais, o projeto lançou duas animações, que buscam estimular as crianças e adolescentes a se interessarem pelo tema da evolução humana e do pensamento científico. Os episódios 1 e 2 estão disponíveis para download e compartilhamento via whatsapp.
A primeira animação traz uma família negra, em que a criança pergunta pra mãe de onde ela veio, e a mãe começa a explicar o método científico. É um vídeo que vai muito pelo lado afetivo, e que pode ser utilizado para abrir conteúdos de ciência em sala de aula, por exemplo, já no ensino fundamental. A segunda produção traz alguns esquemas que explicam o processo de origem da nossa espécie, as linhagens. É um conteúdo mais denso, e por isso pode ser utilizado como um material paradidático para o Ensino Médio ou mesmo para a graduação.”
Mariana Inglez
Para a bioantropóloga, a produção pode também ser usada para gerar discussão sobre o estereótipo de quem é cientista – já que o imaginário geral é de um homem velho, de cabelos brancos e jaleco, a la Albert Einstein.
Para usar na sua atividade pedagógica: 500 Mulheres Cientistas
Você sabia que existe uma base de dados enorme com contatos de mulheres e minorias de gênero cientistas das áreas de tecnologia, ciência, engenharia, matemática e medicina? E que ele é gratuito e de fácil acesso por qualquer um(a)?
O diretório é uma iniciativa do movimento 500 Mulheres Cientistas (“500 Women Scientists”, no seu nome original), criado por cientistas estadunidenses que busca garantir representatividade e visibilidade a milhares de mulheres cientistas do mundo.
Há mais de 700 cientistas brasileiras cadastradas na plataforma, que tem filtros por área de conhecimento e região geográfica, e está disponível em português. Uma boa ferramenta pra usar em atividades que requeiram pesquisa e fontes de mulheres cientistas dos mais diversos campos de atuação!
Acesse o site aqui.
Dicas para os(as) professores(as)
Pedir que os(as) estudantes desenhem como eles(as) imaginam o ser cientista pode ser o pontapé para uma prática pedagógica que traga essa discussão de gênero, partindo dos estereótipos que cada um(a) tem sobre essa figura. No final do guia Meninas na escola, mulheres na Ciência – ferramentas para professores da educação básica, há um molde que pode ser utilizado justamente para essa atividade.
A publicação busca ajudar professores(as), da educação básica ao ensino superior, a abordar em sala de aula a presença das mulheres nas ciências e estimulá-las a seguir carreiras científicas. O conteúdo é bastante rico, trazendo informações com pesquisas e dados sobre essa realidade, possibilidades de reflexão sobre as questões de gênero e como elas são trabalhadas na escola, e indicações de práticas pedagógicas realizadas por professores(as).
Infelizmente, o currículo escolar não abre um espaço legítimo e relevante para falar sobre mulheres na ciência. Ele abre, sim, ‘brechas’ para que o tema possa ser trabalhado. Então, urge a necessidade de que os professores se apropriem do tema e utilizem essas ‘brechas’ para que se efetivem as necessárias discussões, reflexões e ações com os alunos e também para que, futuramente, o currículo possa contemplar, a esse tema, um espaço devido.”
Lucineia Alves
A professora assina uma das dicas de atividades da publicação Meninas na escola, mulheres na Ciência – ferramentas para professores da educação básica. Ela revela como aproveita efemérides como o Dia Internacional da Mulher (8 de março), o Dia Internacional das Mulheres e Meninas na Ciência (11 de fevereiro) e o Dia da Consciência Negra (21 de novembro) em sua disciplina de Ciências e na eletiva “Meninas na Ciência”.
Além disso, os professores podem realizar fóruns de debates sobre o papel da mulher na ciência e tecnologia, e informar suas alunas em relação às instituições importantes na área, despertando-lhes o desejo de conhecerem tais instituições e, futuramente, estudarem ou pertencerem ao quadro destas.
Lucineia Alves
Já a gestão escolar tem o papel de apoiar e incentivar as ações dos docentes relacionadas ao tema, comprar materiais pedagógicos que estimulem a aprendizagem das meninas no campo da ciência e buscar parcerias e colaboradores externos para realizar ações e eventos. Mais do que isso, ela pode solicitar que se coloque em pauta o tema em reuniões de conselhos e planejamentos estratégicos realizadas pelas coordenadorias e secretarias de educação, sensibilizando superiores e, quem sabe, propondo a idealização de ações sistematizadas e mais amplas, em formato de programas, organizados e gerenciados pela própria coordenadoria ou secretaria.”
Confira dicas e materiais para desenvolver projetos científicos no ensino remoto
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