- Tamara Castro
Por Stephanie Kim Abe
No mês passado, a escritora negra Carolina Maria de Jesus ganhou o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). O título reconhece pessoas que tenham contribuído para o progresso das Ciências, das Letras, das Artes ou da Cultura em geral no país.
A escritora mineira ficou conhecida com a publicação da obra Quarto de despejo (1960), um diário do seu cotidiano como catadora de papel, mãe de três filhos e moradora da comunidade do Canindé, na capital paulista, na década de 1950. O livro é um best-seller, que chegou a vender cem mil exemplares à época, traduzido para diversos idiomas e distribuído em mais de 40 países.
Falecida em 1977, a escritora segue lida ainda hoje, com estudos que têm se aprofundado não somente na sua escrita, como na sua trajetória como mulher negra e marginalizada.
Foi justamente a morte de Carolina Maria de Jesus um dos pontos cruciais para a formação literária da escritora e socióloga Neide Almeida, que até então tinha como referência apenas escritores(as) não negros(as). Consultora na área de leitura, Neide faz parte da Secretaria Executiva da Rede LEQT (Leitura e Escrita de Qualidade para Todos). Em 2018, publicou seu livro autoral Nós – 20 poemas e uma Oferenda.
Nesta entrevista, a escritora fala sobre a importância de reconhecer a potência e as contribuições de autoras negras na literatura, detalhando um pouco do seu próprio processo de formação como leitora e escritora negra.
A autora também aborda os perigos da falta dessas referências nos currículos escolares e quais autores e autoras são essenciais, na sua opinião, para a formação continuada de professores(as) e profissionais mediadores(as) de leitura.
Portal CENPEC: Na sua visão, qual a importância dessa homenagem da UFRJ à Carolina Maria de Jesus?
Neide Almeida: Eu não sou daquelas pessoas mais românticas, achando que isso significa que tudo mudou, não. Mas esse reconhecimento do lugar da Carolina Maria de Jesus diz muita coisa.
Primeiro, coloca em xeque o próprio conceito que a gente tem em relação ao título de doutor. Esses títulos foram concebidos a partir de uma perspectiva absolutamente eurocentrada, pautada principalmente por um conhecimento acadêmico também orientado por esse olhar eurocêntrico. Ao reconhecer a Carolina como Doutora Honoris Causa, abre-se um espaço importante para o reconhecimento de que os saberes são construídos de formas diversas, vêm de fontes diversas, e podem se materializar na diversidade de possibilidades.
Da perspectiva da mulher negra, esse fato traz certa legitimidade. A mulher negra, que está na base das pirâmides sociais, é a mais estigmatizada, vê-se em situações de vulnerabilidade, em tantos sentidos, também deve ser vista como alguém que produz conhecimento e saberes – que, aliás, são tão importante quanto todos os outros e que não devem ser restritos apenas a ela e “suas iguais”. É um conhecimento universal.
Por fim, pensando no universo literário, o título concedido a Carolina abre brechas para questionar o próprio conceito de literatura que tem orientado a nossa formação. Durante muito tempo, a nossa literatura foi – e tem sido – organizada em torno de um um conceito que é extremamente pré-conceituoso. Ele é racista, porque não reconhece essas produções que estão ancoradas principalmente na oralidade e que vêm das pessoas que têm graus de letramento mais baixos.
Portal CENPEC: O que mais te chama atenção na obra de Carolina Maria de Jesus?
Neide Almeida: Várias coisas. Primeiro, a sua obra cumpre uma função importantíssima de, em um momento absolutamente impensável da história do Brasil, colocar em pauta as pessoas que são invisibilizadas. Ela traz para a dimensão da literatura essas pessoas que foram estrategicamente apagadas, como cidadãs e possíveis personagens – e que é tão fundamental, mas que não existe no nosso imaginário.
Nessa chave, muita gente questiona, por exemplo, se o Quarto de Despejo é literatura ou não. Mas não importa. A Carolina é – sempre será – uma mulher muito ousada. Ela se apropria de um modo de dizer que ela entende como legitimado de uma forma muito particular e singular, e faz um diálogo de fontes que aparentemente não dialogam: essa linguagem mais formal e rebuscada com essa outra fala, digamos, mais informal, cotidiana e do campo de uma oralidade, e que também não é acadêmica.
A partir dessa apropriação, ela constrói um estilo que a coloca nesse lugar de transição: é literatura ou não é? Eu sempre acho extraordinária essa poética que ela constrói, que é muito sofisticada e está presente em obras como Quarto de Despejo, Diário de Bitita, Pedaços da Fome. Ela faz isso de um jeito muito potente – tanto que estamos aqui, hoje, discutindo a sua obra.
Se a gente pensar na definição que se usa para dizer o que são os clássicos, como não admitir que a obra de Carolina é um clássico? Já que permanece, que volta, que inquieta e incomoda, que cada vez que você lê diz outras coisas? Acho que por isso que ela chega a tantas pessoas, dos diferentes segmentos, com diferentes perspectivas.
Portal CENPEC: Como você analisa a presença de mulheres negras na literatura? Qual o espaço que elas têm?
Neide Almeida: De uma forma bem relativa, hoje a gente tem uma presença “significativa”. Por exemplo, se a gente pedir pra algumas pessoas dizerem nomes de escritoras negras, hoje, elas vão dizer – ainda que seja a meia dúzia que aparece com mais frequência nas diferentes mídias.
Isso é fruto da luta imensa, sobretudo das próprias autoras negras, por reconhecimento – no sentido de “se dar a conhecer”. Na minha opinião, esse movimento tem a ver também com a possibilidade crescente nos últimos anos de homens e mulheres negras ocuparem espaços acadêmicos. Quando elas estão ali, elas incidem em vários outros espaços, e conseguem provocar deslocamentos. Pensemos as obras de Lélia Gonzalez e da Beatriz Nascimento, que foram produzidas há 30, 40 anos, mas que parecem terem surgido agora pois não se tinha acesso a elas e tampouco entravam nas pautas.
A gente não nasce negro, a gente se torna negro. É uma conquista dura, cruel e que se desenvolve pela vida da gente afora. Aí entra a questão da identidade que você vai construindo. Essa identidade negra não é uma coisa pronta, acabada. Então, para mim, uma pessoa negra que tem consciência de sua negritude está na luta contra o racismo.”
Lélia Gonzales
Mas esse acervo de mulheres negras, brasileiras e não brasileiras, ainda que importante, é muito pequeno. Principalmente se pensarmos na quantidade de mulheres que vêm escrevendo há tanto tempo e que não foram publicadas e não são conhecidas. Existe uma ausência, um silenciamento, uma invisibilidade que, invocando Angela Davis e a própria Lélia, tem a ver com questões de raça, gênero e classe. Se as mulheres foram durante muito tempo interditadas da literatura, que dirá as mulheres negras.
Portal CENPEC: A sua formação como leitora e escritora foi sempre regada por escritas de mulheres negras? Como que elas apareceram, entre todas as referências que você teve?
Neide Almeida: Na base da minha formação, e pensando tanto a poesia quanto a prosa, não estão autores negros. As minhas grandes referências foram Drummond, Fernando Pessoa, Adélia Prado e Cecília Meireles. Adélia eu continuo lendo muito, pois gosto muito da sua produção, Drummond e Pessoa também. A Cecília não tanto, ela marcou um tempo da minha vida. Na origem, a influência vem desses autores brancos.
Eu costumo falar de dois momentos que, pra mim, foram muito marcantes. O primeiro foi o dia que Carolina Maria de Jesus morreu. Eu ouvi pelo rádio que ela tinha morrido, e foi quando eu soube, na verdade, da sua existência. Fiquei absolutamente surpreendida e fascinada por saber que uma mulher negra, pobre, que morava em uma favela tinha publicado um livro.
Essa notícia inaugurou pra mim uma possibilidade que eu não imaginava, porque até então as mulheres negras eram minha mãe, minhas tias e pessoas que, no topo, da ascensão social das mulheres negras, eram costureiras e bordadeiras.
A primeira obra negra que eu li, sabendo que era uma autora negra, foi As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto, por volta dos 20 anos. Foi uma experiência muito transformadora, porque esse livro é muito potente e inaugural, mostrando outro olhar em relação ao mundo. Ali, pra mim, se abriu essa perspectiva da mulher negra podendo ocupar esse lugar de escritora.
Nessa cidade de onde saio, essa cidade tão enorme de prédios e pessoas e carros e lixo passando e vida de cidade, as pessoas são jeitos perdidos. As coisas acontecem, as histórias se fazem aos milhares, mas as histórias se perdem também aos milhares, morrem onde nascem. Cada pessoa é uma história perdida.”
Trecho As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto
Com a militância no movimento cultural, sindical e negro, passei a ter um contato mais intenso com essas autoras. Os Cadernos Negros, do Quilombhoje, por exemplo, foi um portal que deu acesso a essa produção.
Portal CENPEC: Como esse contato com as obras negras te influenciaram?
Neide Almeida: Elas trouxeram outra dimensão de linguagem e de metáforas que passaram a compor meu repertório. Aos poucos eu fui compreendendo que não se trata só do discurso na materialidade, e sim de uma forma de estar no mundo. É uma reflexão muito próxima daquela que a Chimamanda faz: a percepção de que minha história, minha forma de olhar para e representar o mundo é tão legítima quanto todas as outras.
Então se trata de como você olha pra sua história. Quando eu escrevo, me alimento de questões que me atravessam como sujeito, ligadas à memória, à ancestralidade, e à construção da identidade da mulher negra em uma sociedade racista e machista. Ao entrar em contato com essas autoras negras, eu passei a olhar para aquilo que até então parecia não fazer sentido ou parecia mais um recurso para desabafar como um material que tem potência literária e que, portanto, é uma prosa ou poesia a ser publicada.
Conheça a obra e a história de três jovens escritores(as) negros(as)
Portal CENPEC: Como a literatura negra, e principalmente autoras negras, aparece no currículo da escola brasileira? Você acha que há espaço e representatividade?
Neide Almeida: Lamentavelmente não. Há uma dissonância entre o discurso e a prática. Hoje vai ser muito difícil você conversar com alguém que não reconheça a importância de que as escritoras negras sejam lidas. Mas a ausência ainda é alimentada.
Eu dou cursos e oficinas de literatura, com esse recorte, e fico sempre muito incomodada e indignada de perceber que mesmo quando a gente fala da formação de professores muito jovens, eles, de modo geral, nem sabem da existência de alguns autores negros, e principalmente autoras negras.
Pra falar de duas, temos a Maria Firmina, que só recentemente foi publicada novamente, e a Ruth Guimarães, que sempre me espanta pensar que muita gente não leu essa autora. Como ela não aparece nos nossos livros, não é uma referência na nossa formação literária?
A maranhense Maria Firmina dos Reis (1825-1917) é considerada a primeira romancista brasileira. Filha de uma ex-escravizada, publicou, em 1859, a obra Úrsula, considerada o primeiro romance de autoria feminina no Brasil.
Em 1887, publicou na Revista Maranhense o conto “A Escrava”, no qual se descreve uma participante ativa da causa abolicionista.
A percepção da mulher negra em relação à organização e ao funcionamento da nossa sociedade e às questões que dizem respeito a todas as pessoas vem sobretudo do olhar, da perspectiva, e da representação das próprias mulheres negras. Se essas autoras não estão presentes no currículo, a gente tem uma lacuna muito grande e muito perigosa para os nossos currículos. É uma ausência gravíssima e um ponto importantíssimo de ser discutido.
Portal CENPEC: Como esse buraco influencia na formação de leitores(as), negros(as) e não negros(as)? Que leitores(as) estamos formando no Brasil hoje?
Neide Almeida: Vejo acontecendo algo muito semelhante ao que aconteceu comigo, no meu processo de formação: você não tem a referência, você não se vê representada. Se eu não me vejo representada, seja como personagem, seja como autora, eu tenho uma rachadura na construção da minha identidade. E a gente sabe e reconhece o poder da literatura e da arte no processo de formação de um sujeito, lembrando do que Antônio Cândido dizia, sobre a literatura como direito fundamental.
A ausência dessas autoras negras dá continuidade a uma formação defasada não só das mulheres negras, mas dos homens negros, e também das mulheres e homens brancos. Porque quando a gente fala do mundo a partir da nossa lente, do nosso olhar, a gente não está falando somente de nós. Estamos falando de uma perspectiva, e trazendo temas que tem sido insistentemente excluídos das pautas.
Saiba aqui por que estamos perdendo leitores(as) no Brasil
Portal CENPEC: Há perspectivas de mudanças nesse cenário? Como podemos garantir mais acesso a essa literatura negra?
Neide Almeida: Fora dos espaços oficiais de ensino, eu vejo movimentos culturais muito fortes e articulados, como os slams e os saraus, que fazem circular essa literatura. De alguma forma, eu acho que isso provoca essa tensão e, em alguma medida, incide inclusive na presença de algumas autoras negras nos currículos. Na minha visão, é o que acontece com o reconhecimento da Carolina Maria de Jesus e da Conceição Evaristo, por exemplo.
Certa vez, ao sair do local, esbarrou em uma senhora com formação de arquivista que reconheceu o rosto da autora de algum programa de entrevistas. Perguntou o que ela fazia. Conceição respondeu que era escritora e a mulher imediatamente perguntou se a romancista era autora de livros de receitas. ‘E não estamos falando de uma pessoa sem leitura! Essa até deu um salto adiante: mulher negra até pode escrever, mas tem que ser um livro de receita. Então, escrever e publicar são atos de rebeldia que nos colocam em outro lugar, contrariando o imaginário que a sociedade brasileira tem sobre nós’.”
Conceição Evaristo: “A literatura está nas mãos de homens brancos”
Mas é muito urgente e fundamental que a gente garanta uma presença mais sistemática, mais extensa e mais intensa na produção das autoras negras nos currículos escolares, nos acervos das bibliotecas, sobretudo das bibliotecas públicas comunitárias.
Outra ponta muito importante é pensar na formação universitária do pedagogo, do professor, de todos os profissionais que estão à frente das mediações de leitura. A presença da literatura negra, e de autoras negras em especial, na formação dessas pessoas é fundamental. E não apenas a produção literária, mas a teórica também, porque tem um número importante de pessoas pesquisando essa área. Essas obras não chegam às instituições de ensino, porque não estão na lista de referência das obras teóricas que todas as pessoas precisam ler.
Temos discussões importantíssimas que já colocam em xeque aquela noção de literatura que nos formou, de pessoas que pesquisam o conceito de literatura resignificado a partir dessas perspectivas afrodiaspóricas. É fundamental que essas obras estejam nas listas universais de literatura, em todos os nossos currículos, nas mídias e em todas as ações que a gente idealiza com todos os campos do conhecimento.
Portal CENPEC: Que obras e pesquisadores(as) fundamentais para a formação em literatura negra dos(as) professores(as) você indica?
Neide Almeida: Como obras imprescindíveis, indico Literatura e afrodescendência no Brasil: antologia crítica (UFMG, 2011, 4 vol.), do professor da UFMG Eduardo de Assis Duarte; O negro escrito, um livro de Oswaldo de Camargo que está esgotado mas em processo de reedição; e Silêncios prescritos: estudo de romances de autoras negras brasileiras (1859-2006), de Fernanda R. Miranda, que faz uma análise de um conjunto de romances.
Também indico Edmilson de Almeida Pereira, Leda Martins e as professoras baianas Hildália Fernandes e Lívia Natália. Temos também a obra toda de Lélia González, Beatriz Nascimento e da própria Conceição Evaristo.
Veja mais sobre esses(as) e outros(as) autores(as) negros(as) no Literafro
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Um pensamento em “Mulheres negras na literatura”
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