Novo Ensino Médio: integração do conhecimento, das juventudes e do território

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Novo Ensino Médio: integração do conhecimento, das juventudes e do território

Entenda as contribuições do CENPEC Educação para o debate sobre o Novo Ensino Médio, da construção de metodologias de escuta à formação sistêmica de rede de ensino

Por Stephanie Kim Abe

Há muito o Ensino Médio é visto como o gargalo da Educação brasileira. Apenas 68,7% dos jovens brasileiros de 15 a 17 anos cursavam o Ensino Médio em 2018 – percentual longe da taxa líquida de matrículas definida na meta 3 do Plano Nacional de Educação (PNE), de 85%.

Além da necessidade de universalizar o atendimento, precisamos garantir a permanência e as aprendizagens dos jovens no Ensino Médio. É pensando nessas questões que se faz tão importante o movimento que os estados estão fazendo de discussão e criação do Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/17), que aborda questões como o conceito de juventude, a reorganização curricular e a educação integral.


Muitas juventudes

Um dos motivos pelos quais a escola não é atraente para muitos jovens é o fato de que eles não se reconhecem nela. Isso porque ela parte de um conceito de juventude que não leva em consideração a sua multiplicidade.

“Assim como muitas outras organizações, nós do CENPEC Educação partimos de uma desconstrução de uma representação, que como diz Pierre Bourdieu, é uma representação que, no fundo, corresponde a um ideal de juventude. Que seria qual ideal? O de que a juventude é um tempo de estudar, de namorar, de acessar cultura, de investimento na formação escolar e profissional para uma inserção futura no mundo do trabalho ou para a continuidade dos estudos – e isso é uma representação de uma certa juventude, mais privilegiada”, explica Lilian L’ Abbate Kelian, técnica de projetos no CENPEC Educação.

Essa ideia de desconstrução passa a se refletir na política pública do Brasil no começo do século 21, quando passamos a reconhecer que as pessoas vivem a juventude de maneiras diversas.

Na educação, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (2012) explicitam a necessidade de rever o conceito de juventude. Os jovens possuem diferentes formas de ocupar o espaço escolar, circular pela cidade, comportar-se, pensar, experimentar sua sexualidade etc. Daí a importância de uma formação humana integral.


Reflexos no currículo

Assim, entender as juventudes como plurais deveria resultar em um processo permanente e constante de escuta e de diálogo com os jovens na escola, de forma que ela estivesse contemplada também no currículo escolar – já que isso não acontece atualmente.

“Um currículo que está preocupado com as questões da diversidade contextualiza muito bem o conhecimento. Nesse debate, feito no interior das teorias crítica e pós-crítica do currículo, pensamos que os conhecimentos não devem ser tidos como universais, mas que estão situados historicamente e que muitas vezes refletem relações de opressão. Assim, não se trata de dispensar tais conhecimentos, mas iluminá-los por uma perspectiva histórica e crítica. Uma das formas de superar esse problema é colocar as experiências das comunidades escolares em diálogo com o conhecimento. Portanto, escutar os alunos nos dá mais acesso à diversidade que constitui a cultura brasileira”, explica Lilian L’ Abbate.

Para o CENPEC Educação, uma saída positiva para esse dilema tem sido a criação de metodologias de escuta. O foco é a construção do conhecimento, indo além da também necessária escuta voltada para a gestão democrática.

Imagem de Lilian L’ Abbate Kelian, técnica de projetos no CENPEC Educação.

Na escola, a forma mais comum de escutar os jovens tem sido em relação às vivências, conflitos ou gestão. Por exemplo, quando some o material de alguém, como lidamos com isso juntos; ou ao realizar um campeonato de futebol; para decidir usar ou não uniforme na escola. Nós podemos continuar esse movimento de escuta dos jovens para nos relacionarmos com os conhecimentos, as inquietações, as ferramentas, as línguas que eles trazem e usam

Lilian L’ Abbate Kelian, técnica de projetos no CENPEC Educação

Uma delas é a estratégia Ambiências Criativas, desenvolvida pelo
CENPEC Educação, na experiência do Programa Jovens Urbanos, que aconteceu por quatro anos como uma assessoria à Secretaria de Educação de Minas Gerais.

As Ambiências Criativas são constituídas por três principais estratégias:

  • Levantamento e escuta das percepções, saberes e desejos juvenis;
  • Encontro entre essas percepções, saberes e desejos com as percepções, saberes e desejos dos(as) professores(as);
  • A eleição de problemáticas que podem ser organizadoras do planejamento curricular.
Conheça a estratégia Ambiências Criativas, desenvolvida pelo Programa Jovens Urbanos

Flexibilização curricular e Novo Ensino Médio

Ainda que tenha sido criada em um projeto com escolas de tempo integral, a estratégia de Ambiências Criativas e de outras metodologias de escuta podem ser utilizadas nas escolas regulares.

“Em muitos contextos, quando levantamos esse tema da escuta para as escolas, surge a questão: ‘tenho um currículo, não posso ficar escutando o jovem’. Sempre quisemos trabalhar em uma dimensão em que essas questões não estão opostas, em que é possível fazer uma construção do conhecimento, fazendo simultaneamente a escuta dos jovens e pensando o planejamento das aprendizagens”, explica Lilian.

A política do Novo Ensino Médio, que foi instituída pela Lei nº 13.415/17, pode trazer a oportunidade de pensar essas metodologias nesse novo currículo. De acordo com ela, o Ensino Médio passa a ser composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e por itinerários formativos.

Embora seja uma política que amplia a jornada escolar, ela tem foco na flexibilização do currículo, justamente para dar espaço às multiplicidades de interesses dos estudantes e estimular o protagonismo juvenil. Com essa flexibilização, vem a necessidade de pensar a integração curricular.

Os itinerários formativos podem trazer uma forma de conhecimento que não está ancorada nas disciplinas. À medida que podemos flexibilizar percursos diferentes para os estudantes, temos que entender como se dará a articulação entre eles, para garantir o direito de aprendizagem dos estudantes”, diz Lilian


Integração curricular

Na proposta do CENPEC Educação, a integração curricular pode ser pensada a partir de três possibilidades: a integração entre as disciplinas escolares, a integração com os saberes dos estudantes e a integração com os saberes e conhecimentos do território.

A integração do conhecimento refere-se à superação da atual fragmentação em disciplinas no currículo escolar. Ou seja, seria pensar o conhecimento por campos de saberes, por meio de experiências e práticas diversas e que ampliem o campo de experimentação do(a) professor(a).

A construção com os saberes do aluno recupera a ideia da importância de escutá-lo, de trazer para o planejamento curricular os seus conhecimentos, inquietações, formas de expressão etc. Integrar no currículo escolar o olhar para e dos jovens, pensar projetos de vida que dialoguem com as suas trajetórias e sua inserção comunitária.

Já a integração do território leva em consideração o espaço em que a instituição está localizada, e olha para ele como referencial de conhecimento relevante para a formação do estudante, seja como lugar de problematizações, de pesquisa ou de objeto de intervenção.

“O que conhecemos da escola está estruturado a partir de séries e disciplinas fragmentadas. Quando temos uma ampliação do tempo, organizada como itinerário formativo, podemos enxergar uma forma de superação desses limites, tanto para escutar o aluno, para circular ou se relacionar com o território, ou para integrar disciplinas. Isso não necessariamente vai acontecer, porque demanda uma construção. Mas é uma oportunidade”, explica Lilian.


A experiência do Pará na construção do Novo Ensino Médio

No estado do Pará, a construção da política do Novo Ensino Médio tem como base essa perspectiva da integração curricular e da formação humana integral. Desde 2018, o CENPEC Educação e a Fundação Carlos Alberto Vanzolini têm assessorado a Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc) nesse processo, por meio do Consórcio Desenvolvimento Integral no Pará.

O objetivo inicial do projeto era apoiar o aprimoramento e a consolidação das políticas e das práticas de Educação Integral para o Ensino Médio na rede estadual de ensino. Mas com advento do Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/17) e da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, aprovados no final de 2018, houve uma mudança no escopo.

“Fomos redesenhando o que já havíamos previsto em relação a esse projeto, que era para um grupo específico – as escolas de tempo integral -, para atender as escolas do Novo Ensino Médio”, explica Darcilena Correia, Coordenadora pedagógica do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc).

A Seduc, por meio da Comissão ProBNCC (Programa de Apoio à Implementação da Base Nacional Comum Curricular) etapa Ensino Médio, tem se debruçado na escrita de um documento curricular que reflita as diferentes influências culturais do estado e que dialogue com a perspectiva da formação humana integral das juventudes e suas diversidades.

É impossível pensar em integração curricular no Pará sem considerar a Amazônia e todos os saberes e singularidades que ela traz. É aí que se encontra o olhar para o território e como ele também é importante para construir o currículo. Nesse sentido, ela traz perspectivas e experiências diversas, dos mais diferentes campos de saberes, que versam sobre alguns dos temas mais contemporâneos e que podem influenciar a construção do documento – como aquecimento global, fluxos migratórios, preservação da biodiversidade etc.

Também é preciso pensar nas múltiplas juventudes, que trazem muitas possibilidades pedagógicas.

Imagem de Darcilena Correia, Coordenadora pedagógica do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc).

O Novo Ensino Médio tem como principal objetivo se adequar às necessidades de uma formação integral que contemple as competências essenciais do século XXI. Mas para isso, é preciso dialogar com as juventudes. Em relação à escrita do documento curricular para a etapa do Ensino Médio, o desafio é escrever um documento que considere as normativas legais, mas que tenha a cara do estado do Pará e sua diversidade – indígena, quilombola, das populações ribeirinhas, do campo e das florestas e dos jovens urbanos.

Darcilena Correia, Coordenadora pedagógica do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc)

Formação sistêmica

Dentre as atividades realizadas pelo Consórcio, estão o diagnóstico de implementação das escolas de tempo integral, o desenho de monitoramento da política a ser implementada nas escolas e a construção de plano de comunicação.

O projeto também prevê formações em rede – momento este que tem sido afetado pela pandemia. O objetivo é formar as pessoas envolvidas na implementação das mudanças trazidas pela Coordenadoria do Ensino Médio da SEDUC/PA, e tem como base o conceito de formação humana integral e os conceitos de flexibilização e de integração curricular.

Ela já estava em curso desde dezembro de 2019, quando houve um grande encontro formativo, e sua primeira etapa ocorreu em março, em Belém.

A formação da rede é sistêmica, ou seja, busca garantir o envolvimento e o alinhamento de diferentes atores participantes do processo. Em seu primeiro desenho, tinha sido pensada a partir da formação presencial de um núcleo multiplicador, composto de cinco membros da escola: um professor de Ciências Naturais, um de Ciências Humanas, um de Matemática, um de Linguagem e um coordenador pedagógico.

Esse grupo seria responsável por ir à campo e elaborar uma proposta de formação para a sua escola – o que garantiria o olhar para o território e as especificidades de cada instituição.

O desenho do núcleo multiplicador do CENPEC Educação surgiu do programa de alfabetização. Mas temos um desafio muito diferente, porque precisamos envolver os 12 professores das disciplinas, e trabalhar com eles metodologias de trabalho integradas – como aprender com projetos, com questão norteadora, com estudo de caso. Trabalhar vários elementos que ajudam a olhar para um objeto de uma maneira integrada. Por isso não bastaria formar um professor de cada escola”, explica Lilian, que também é coordenadora de formação do Consórcio.


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Menos interação, mais abrangência: mudanças com a pandemia

Com a pandemia, a formação precisou ser redesenhada para o ensino a distância.

“Agora nós temos todas as turmas no mesmo ambiente, não existe diferenciação entre núcleo e escola. Mas continuamos trabalhando com múltiplos públicos, em torno dos mesmos temas, porém em percursos diferenciados: quem é técnico da Secretaria tem um percurso, quem é coordenador pedagógico outro, e por aí vai”, explica Lilian.

Se em ambiente on-line perdeu-se um pouco da interação proporcionada pelo presencial, ganhou-se em escala e abrangência. Estão participando das formações 278 coordenadores(as) pedagógicos(as), além de técnicos(as) das Unidades Regionais de Educação (UREs) e Unidades Seduc na Escola (USEs), e equipes de 48 escolas de tempo integral. Ao abranger também os(as) formadores(as) do Centro de Formação dos Profissionais da Educação Básica do Estado do Pará (Cefor), o objetivo é transferir parte da tecnologia desenvolvida durante o projeto para a Secretaria.

Houve ainda uma preocupação com a qualidade da mediação, que é feita por formadores e formadoras que foram à campo no início do processo, para sustentar a interação no ambiente virtual de aprendizagem.

Para complementar, a Seduc tem promovido, desde o dia 07 de outubro, uma série de lives abertas para discutir o Ensino Médio no estado. As lives acontecem às quartas e sextas-feiras, das 10h às 12h, até o dia 23 de outubro, e trazem temas importantes para o debate, como a formação humana integral, a flexibilização curricular, as diferentes juventudes etc.


Saiba mais sobre as lives que abordam o Novo Ensino Médio e onde assisti-las


Como sustentar essa mudança na rede?

Os desafios para a implementação do Novo Ensino Médio são muitos. E é para que ele seja de fato colocado em prática que a Seduc/PA tem realizado esse trabalho de escuta, troca e participação de todos e todas os(as) envolvidos(as).

“Todo processo de mudança implica em mudança de postura, de pensar outras possibilidades. É um convite para pensar fora da caixinha, para todo mundo – gestor escolar, professor, coordenador pedagógico, técnicos de referência das regionais e unidades Seduc na escola, especialistas em educação da coordenação do Ensino Médio. Precisamos dar subsídios a esses profissionais para que consigamos efetivamente disseminar esses aprendizados e esses conhecimentos para toda a rede. A formação continuada pensada de forma sistêmica vai muito nesse sentido”, defende Darcilena Correia, coordenadora pedagógica do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral da Secretaria de Estado de Educação do Pará (Seduc).

Para Lilian L’ Abbate Kelian, técnica de projetos no CENPEC Educação, essa mobilização é o principal desafio de todos os estados que precisam pensar suas novas políticas de Ensino Médio. Para que ela se desdobre em um movimento dentro das escolas, as Secretarias devem realizar ações como essas que a Seduc/PA tem desenvolvido, promovendo discussões, espaços de formação, alinhamento em relação às transformações, e criando estratégias para novas didáticas e práticas educativas.

“Considerando tudo isso, a mudança leva tempo. A intenção é promover um certo alinhamento e uma mobilização desses grupos. A apropriação por toda a rede é uma mudança estrutural importante, para futuramente conseguir tirar esses planos do papel e virar uma transformação efetiva na escola”, diz.


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