- José Alves
Por Stephanie Kim Abe
Não há dúvidas que nos últimos 30 anos houve um avanço importante em relação ao direito à Educação – um dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA – Lei 8.069, de 13 de julho de 1990).
Especial CENPEC Explica: 30 anos do ECA
I. Conheça a história e a importância do Estatuto da Criança e do Adolescente
III. Por que devemos garantir os direitos dos jovens em conflito com a lei
IV. Como assegurar o direito à participação e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes
V. As ameaças aos direitos de crianças e adolescentes hoje – e como enfrentá-las
No relatório 30 anos da Convenção sobre os Direitos da Criança: avanços e desafios para meninas e meninos no Brasil, do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), temos que “de acordo com dados da Pnad, entre 1990 e 2017, o percentual de crianças e adolescentes fora da escola caiu, passando de 19,6% para 4,7%. Também houve uma queda significativa na taxa média de analfabetismo entre 10 e 18 anos de idade: de 12,5%, em 1990, para 1,4%, em 2013, uma redução de 88,8%. Entre os adolescentes negros a evolução foi ainda maior, de aproximadamente 91%”.
Porém, ainda há muito a avançar, tanto em infraestrutura das escolas, como qualidade da educação, valorização dos profissionais da educação etc. Nesse processo, vale ressaltar que o direito à Educação não caminha sozinho, está intrinsecamente relacionado a outros direitos previstos no ECA – como o direito ao lazer, à cultura, ao esporte etc.
Art. 53 – A criança e o adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-se-lhes:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – direito de ser respeitado por seus educadores;
III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias escolares superiores;
IV – direito de organização e participação em entidades estudantis;
V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência;
V – acesso à escola pública e gratuita, próxima de sua residência, garantindo-se vagas no mesmo estabelecimento a irmãos que frequentem a mesma etapa ou ciclo de ensino da educação básica. (Redação dada pela Lei nº 13.845, de 2019).
Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – ECA
“É importante compreender que há fenômenos ligados à privação do direito à educação que são endógenos da área, como a falta de interesse no currículo, nas oportunidades de aprender, infraestrutura da escola. Mas muitos deles estão relacionados a outras áreas, como o sistema de saúde, de transporte etc. Se as crianças estão privadas do seu direito à proteção contra a violência, por exemplo, isso afeta o seu acesso à educação formal”, explica Ítalo Dutra, chefe de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
Obviamente, a garantia do direito é indivisível, mas costumamos dizer que muitas vezes a educação representa uma porta para a garantia de outros direitos interseccionalmente alinhados, e que portanto a privação desses direitos implica na privação do direito à educação e vice-versa
Ítalo Dutra, chefe de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF)
Escola faz parte de uma rede de proteção
É por causa dessa relação direta entre os diferentes direitos que o ECA prevê um Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA). Esse sistema foi institucionalizado e fortalecido com a Resolução 113 de 19 de abril de 2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda).
A ideia do sistema é garantir a articulação intersetorial, que envolva diferentes instâncias públicas governamentais e sociedade civil no sentido de, como diz o seu art. 2º, “promover, defender e controlar a efetivação dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais, coletivos e difusos, em sua integralidade, em favor de todas as crianças e adolescentes”.
Veja como funciona o Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente neste vídeo produzido pelo Busca Ativa Escolar:
Assim, assistência social, secretarias de educação, órgãos de saúde, defensorias e conselhos tutelares são alguns dos organismos que devem trabalhar juntos em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes. Campanhas de vacinação, por exemplo, que são realizadas pelo sistema de saúde, podem fazer uso da escola como espaço para disseminar informação e chegar até a população. A merenda escolar também é um importante fator (quando não o único) na garantia da segurança alimentar dos estudantes.
“Às vezes, a escola é o único aparelho de estado disponível em muitas localidades do país, e acaba assumindo o lugar de outras redes, e essa é uma situação importante de se alertar. Mas a ideia do sistema de garantia de direitos é de articulação entre as diferentes áreas, e não de colocar tudo isso em um equipamento ou em uma área específica”, explica Ítalo Dutra.
Relação de parceria entre a escola e o Conselho Tutelar
Uma das parcerias previstas no ECA entre órgãos intersetoriais é a da escola e do Conselho Tutelar, órgão que deve zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e dos adolescentes.
ART. 56 – Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de:
I – maus-tratos envolvendo seus alunos;
II – reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares;
III – elevados níveis de repetência.
Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – ECA
O diretor Dreithe Thiago Ribeiro de Carvalho sabe bem a importância dessa parceria. Há 17 anos à frente do Centro de Ensino Médio Urso Branco (CEMUB), da rede pública de Brasília, ele está constantemente lidando com casos de abusos e violações de direitos relatados pelos seus estudantes de 14 a 17 anos – dos quais cerca de 30% trabalham.
“Tem professor que ouve de aluno que não conseguiu fazer o trabalho ou não conseguiu estudar para a prova porque no estágio eles não deixaram sair para estudar, por exemplo. E aí olhamos para o ECA e vemos que os adolescentes têm resguardados o direito à carga horária bem específica e assegurados os direitos de intervalo de estudo, na condição de menor aprendiz. Mas eles não sabem disso”, diz o diretor.
Art. 67 – Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não-governamental, é vedado trabalho:
I – noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia e as cinco horas do dia seguinte;
II – perigoso, insalubre ou penoso;
III – realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social;
IV – realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola.
Lei 8.069 de 13 de julho de 1990 – ECA
Ainda que alguns relatos venham dos professores, em reuniões pedagógicas, as denúncias de violações de direitos partem principalmente do grêmio estudantil – o que mostra a importância desse órgão participativo para ampliar e dar voz às crianças e adolescentes. Ao tratar desses casos, a escola conta com a parceira direta e fundamental do Conselho Tutelar.
“Quando o aluno atinge cinco faltas alternadas ou três faltas consecutivas, nós o chamamos para conversar, para entender o motivo de tanta falta ou atraso. Quando ele fala que o problema é da família ou do trabalho, rapidamente fazemos um relatório para que o Conselho Tutelar venha atender esse aluno aqui na escola, junto conosco. Eles vêm e já começam a marcar encontros com a família ou com o estágio, para poder conversar e explicar a importância de garantir os direitos dos alunos”, explica Dreithe Thiago Ribeiro de Carvalho.
A partir desse processo, eles vão caminhando juntos, quaisquer que sejam os direitos violados – seja uma questão de falta de acesso à saúde, de falta de segurança etc.
Trabalho de prevenção
O diretor chama atenção para o fato de que além das empresas que empregam os alunos, há também casos da própria família explorar esses adolescentes para trabalhar com ela. Por isso a preocupação da escola em fazer um trabalho de prevenção, como basear-se no ECA para a construção do Plano Político Pedagógico (PPP) e promover formações para os professores sobre o tema.
A cada semestre, a escola também marca um encontro com famílias e alunos em que traz um jurista ou especialista para falar sobre o ECA e explicar a importância de garantir os direitos das crianças e adolescentes.
Nosso trabalho é constante e suado, mas muito gratificante. Baseado no ECA, empoderamos os alunos para que possam se manifestar quando em situações em que seus direitos poderiam ser furtados. Isso impacta diretamente no nosso ambiente escolar, porque se torna um lugar em que eles são resguardados por seus direitos e no qual eles praticam a cidadania. É um ambiente completamente diferente, e fantástico
Dreithe Thiago Ribeiro de Carvalho, diretor do Centro de Ensino Médio Urso Branco (CEMUB), da rede pública de Brasília
Em 2017, o CEMUB foi a única escola brasileira visitada pelo indiano Kailash Satyarthi, vencedor do prêmio Nobel da Paz 2014 pelo seu ativismo no combate ao trabalho infantil em seu país. Ele veio ao Brasil lançar a campanha 100 Milhões por 100 Milhões, contra o trabalho infantil e toda forma de exclusão de crianças e adolescentes.
Trabalho infantil
Infelizmente, nem todas as escolas têm a preocupação e o trabalho similar ao do diretor Dreithe Carvalho, de olhar para os estudantes e as suas relações de trabalho.
O ECA, em seu art. 60, proíbe o trabalho a menores de 14 anos de idade. A Constituição Federal é clara, no seu art. 7º, inciso XXXIII, em proibir o trabalho de pessoas menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir dos 14 anos.
A Lei do Aprendiz (Lei 10.097, de 19 de dezembro de 2000) regulamenta essa questão e é um instrumento para combater o trabalho infantil. Para todas as situações que fogem desse cenário, há uma violação de direitos das crianças e adolescentes, e se configura o trabalho infantil.
Discutir o trabalho infantil é complexo, porque ele é uma consequência de uma série de problemas estruturais da nossa sociedade: a pobreza, a exclusão social, a concentração de renda, a exclusão escolar. Essas são as raízes do trabalho infantil
Tânia Dornellas, assessora do Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (FNPETI).
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), em 2016, havia 2,4 milhões de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em situação de trabalho infantil – cerca de 6% da população nesta faixa etária.
Ainda que a maior concentração esteja na faixa etária entre os 14 e 17 anos, existem mais de 104 mil crianças trabalhadoras na faixa de cinco a nove anos de idade. O trabalho infantil também é maior relativamente no meio rural, e entre crianças e adolescentes negros e pardos (1,4 milhão).
Além de ilegal, o trabalho afeta o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, em aspectos físicos, psicológicos e educacionais.
“O trabalho infantil é a causa e consequência do abandono escolar. A criança que trabalha fica mais cansada, mais distraída, tem sono, e isso afeta o seu desempenho na escola. Ela se torna a causa da exclusão escolar. Agora, quando você tem uma escola que considera todo mundo como números, que não olha para os sujeitos e os diferentes núcleos familiares que estão inseridos, que ignora suas necessidades e que espera o mesmo desempenho de todos, essa escola acaba afastando a criança – que opta pelo trabalho”, diz Tânia Dornellas.
Assim como o trabalho infantil tende a levar à distorção idade-série, ao baixo rendimento escolar e ao eventual abandono da escola, é importante que a escola também seja atrativa, tenha um currículo que considere as diversidades regionais e esteja presente em termos de acesso tanto na área urbana quanto na rural.
Abandono escolar e a importância da participação
Os mais vulneráveis à exclusão escolar são aqueles que estão em distorção idade-série, com dois ou mais anos de atraso. E, claro, os fatores que explicam isso estão relacionados não apenas à oferta dos serviços da escola, mas também ao setor de proteção, ao sistema de saúde, entre outros
Ítalo Dutra, chefe de educação do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF).
De acordo com os dados trazidos pelo Relatório Reprovação, Distorção Idade-série e abandono escolar, do UNICEF, metade dos mais de 910 mil estudantes que deixaram as escolas municipais e estaduais de todo o país em 2018 são pretos e pardos (453 mil).
Veja outros dados de fluxo escolar no site Trajetórias do Sucesso Escolar
“Esses meninos e meninas não podem mais esperar. Eles estão na iminência de serem excluídos do sistema, violados do seu direito à educação formal. Precisamos olhar para a escola e trabalhar para modificar aquilo que ela tem a oferecer, colocando os estudantes na centralidade desse projeto. Isso significa engajá-los com escuta e participação efetiva, inclusive no planejamento das ações pedagógicas”, defende Ítalo.
Para trazer as crianças de volta à escola: Busca Ativa Escolar
O direito à educação não significa apenas acesso, mas também qualidade e permanência, entre outros fatores. Mas para mais de 1,9 milhão de crianças e adolescentes (PNAD) que estão fora da escola, isso significa que elas não estão acessando o seu direito – e é preciso garantir que isso aconteça.
Nesse sentido, o UNICEF tem trabalhado estratégias para combater a exclusão e o abandono escolar. Uma delas, o Busca Ativa Escolar, foi pensada considerando as boas experiências de alguns municípios e a intersetorialidade como fator fundamental no combate à exclusão escolar. Tanto que requer a participação conjunta de representantes da área de educação, da saúde, da assistência social e de planejamento do município que adere à metodologia.
Conheça a estratégia e faça a adesão do seu município ao Busca Ativa Escolar
Cada um tem o seu papel no processo de identificação, controle e acompanhamento de crianças e adolescentes que estão fora da escola ou em risco de evasão. Esses dados e registros são agregados em uma única plataforma gratuita, que apoia e facilita o trabalho da gestão, garantindo não só a matrícula da criança mas também a sua permanência.
Cerca de 3,1 mil municípios já aderiram ao Busca Ativa Escolar, que foi desenvolvido em parceria com a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), o Colegiado Nacional de Gestores Municipais de Assistência Social (Congemas) e o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems).
O CENPEC Educação é responsável pela produção de materiais formativos para os itinerários de cada participante, além de organizar conteúdos entregues por outros produtores.
Consulte a página da Busca Ativa Escolar no Portal CENPEC Educação
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