Confira reflexões e dados de pesquisas sobre território e políticas para enfrentar desigualdades educacionais nas periferias
Por Stephanie Kim Abe
Você sabia que docentes das escolas públicas das periferias da capital paulista têm salários mais baixos em comparação aos que trabalham em escolas localizadas em áreas centrais do município? São também nessas regiões mais vulneráveis que se encontram as escolas com mais estudantes pretas(os), pardas(os) e indígenas. Dados como esses evidenciam o impacto do território no direito à educação de qualidade para todas e todos e a necessidade de levar em conta o aspecto geográfico nas políticas públicas.
Mas por que educadoras(es) mais bem remuneradas(es) estão nas escolas mais centrais? Isso ocorre porque profissionais mais antigas(os) costumam ter salários mais altos, como progresso da carreira docente, e o tempo de serviço tem grande peso no processo seletivo de remoção (transferência) de uma escola para outra. Assim, entre outros fatores que influenciam esses concursos, as(os) mais experientes acabam escolhendo as escolas mais centrais, dados os problemas conhecidos nos territórios vulneráveis: violência, insegurança pública, difícil acesso, precariedade de serviços públicos essenciais, entre outros.
De acordo com o estudo Professores e Territórios – Diferenças salariais e as desigualdades na educação, desenvolvido pela Fundação Tide Setubal em parceria com a Transparência Brasil e publicado em junho deste ano, escolas instaladas em lugares com diferença de dois pontos no Índice Paulista de Vulnerabilidade Social (IPVS) apresentam quase R$ 1 mil de média salarial a mais para docentes com carga horária de 30 horas semanais. O achado parte da análise de mais de 670 mil pagamentos feitos para profissionais de 1.479 escolas municipais paulistanas em 2019.
Esses dados são mostrados de forma georreferenciada, por meio de mapas (veja abaixo), entre outras ferramentas, que dão uma visão clara de como se distribuem educadoras(es) por média salarial por todo o território paulistano.
Para Pedro de Lima Marin, coordenador do Programa de Planejamento e Orçamento Público da Fundação Tide Setúbal, essa é a grande inovação da pesquisa, o que permite mostrar como é direcionada parte substancial dos recursos do orçamento de educação do município:
O que a gente quis demonstrar é a regionalização do orçamento. Da forma como a carreira docente está estruturada hoje, ela tem como consequência não intencional, não desejável, uma distribuição regressiva dos recursos públicos. Ou seja, uma distribuição que privilegia as áreas que precisam menos.”
Pedro de Lima Marin
Alta rotatividade
A pesquisa também concluiu que essa política de remoção tem como consequência “alto índice de rotatividade de pessoal nas escolas periféricas e uma dificuldade crônica de provisão de profissionais experientes nestas mesmas unidades de ensino”.
Para Vanda Mendes Ribeiro, professora do Programa de Pós-graduação em Educação e do Mestrado Profissional da Unicid e colaboradora do Cenpec, a rotatividade tem alto impacto na aprendizagem das(os) estudantes. Tem como efeitos a falta de construção de equipes fixas e duradouras, e isso afeta diretamente as ações das equipes e gestão para lidar com os problemas encontrados na escola:
A alta rotatividade indica que não estamos conseguindo manter pessoas que conhecem as crianças e as características daquela comunidade e que são capazes de dar respostas contextualizadas aos problemas escolares do dia a dia. E mais: aos problemas relacionados às dificuldades das(os) estudantes, porque elas(es) têm tempos de aprendizagem distintos, independentemente de onde moram.”
Vanda Mendes Ribeiro
Essa troca constante de profissionais também implica maior esforço da gestão escolar em questões organizacionais, como pensar em quem vai preencher o horário vago, como remanejar professoras(es) para cobrir esse período, formar novos(as) profissionais etc. Consequentemente, sobra menos tempo para se dedicar ao que deveria ser o foco principal da escola: a aprendizagem das(os) estudantes.
Quanto maior a rotatividade, menos chance de organizar de fato a escola com foco no ensino e aprendizagem, e na construção de uma equipe coesa, que dialoga, reflete e compreende a trajetória de cada estudante, solidarizando-se com e atendendo suas necessidades.”
Vanda Mendes Ribeiro
Sobreposição de desigualdades
Não é de hoje que o tema de como o território impacta a educação é estudado. Para quem trabalha na perspectiva da educação integral, como o Cenpec sempre trabalhou, é determinante entender essa questão. A pesquisa Remoção de professores e desigualdades em territórios vulneráveis, de 2015, também desenvolvida em parceria com a Tide Setubal, já revelava que:
a concorrência entre professores, organizada pelas regras dos concursos de remoção, agrava as desigualdades educacionais que se expressam territorialmente, haja vista a saída de professores mais bem posicionados na carreira e a atração daqueles de pior posição [dos territórios periféricos].”
CENPEC, 2015, p. 30
A escolha das(os) educadoras(es) pelas áreas centrais levam em conta os diferentes desafios que são encontrados nas periferias, como explica Vanda:
Os territórios vulneráveis têm problemas que decorrem de sobreposição de desigualdades: dificuldade de acesso à saúde e à moradia, trabalho precário, familiares com menor cultura escolar e escolaridade, menos recursos financeiros para investimento em educação etc.”
Vanda Mendes Ribeiro
Então, como atrair profissionais para as escolas em áreas vulneráveis? O estudo da Fundação Tide Setúbal com a Transparência Brasil também analisou a questão da gratificação, uma das políticas adotadas pelo governo para tentar compensar essa questão, e identificou que montante dedicado à estratégia não faz diferença significativa no salário-base das posições mais avançadas da carreira docente.
Pedro Marin explica que:
O problema é que, como a despesa de pessoal é muito importante – mais da metade do orçamento da educação – fica difícil encontrar os recursos em outro lugar para compensar esse efeito. O que deveria ser feito é olhar essa realidade, identificar as escolas mais vulneráveis e pensar: se a gente não consegue direcionar mais recursos via pessoal para essas regiões, a gente tem que compensar de outra forma.”
Pedro de Lima Marin
Liderança, planejamento e acompanhamento
Pedro Marin destaca que um dos dados que podem ser encontrados facilmente na pesquisa, por meio da análise dos mapas, são escolas com professoras(es) com bons salários em territórios vulneráveis ou o contrário. “Esses dados requerem mais investigação, que nos permitam entender porque essas unidades têm um comportamento diferente das outras”, diz.
Para Vanda, pensar a cultura institucional e a importância da liderança é muito mais importante que uma política de gratificação, por exemplo. Esses fatores são determinantes até mesmo quando se pensa na questão da experiência docente e os seus impactos na educação das(os) estudantes:
Não adianta ter professoras(es) mais experientes, mais bem formadas(os) entrando numa escola com uma cultura institucional que não é favorável, onde não tem diálogo e confiança, onde não há liderança de gestão. Porque essas(es) docentes não vão conseguir fazer nada do que acham que deve ser feito.”
Nesse sentido, a pesquisadora recupera achados dos pesquisadores Tiago Luis Corbisier Matheus e Letícia Daidone Oliveira da Fundação Getúlio Vargas, que analisaram o enfrentamento da vulnerabilidade social juvenil na região de M’Boi Mirim e proximidades pelas escolas da região. Vanda elenca alguns dos fatores apresentados nas instituições estudadas e que resultaram efeitos positivos na qualidade da educação ofertada, mesmo na periferia:
Estabilidade e compromisso de equipe, conhecimento da equipe do contexto, diálogo, construção de laços de confiança (entre a equipe e também com os alunos), crença nos estudantes, respeito. Ou seja, os resultados deles dialogam com as pesquisas quantitativas, como a do Cenpec.”
Vanda Mendes Ribeiro
Para enfrentar as desigualdades educacionais que se sobrepõem, Vanda acredita que é preciso olhar para a formação continuada das(os) docentes, apoiando de fato as(os) educadoras(es) em suas práticas e reflexões; gestoras(es) escolares que sejam de fato uma liderança, que saibam dar rumo claro e coerente com a política educacional estabelecida; e, principalmente, mudanças que comecem com a gestão educacional, no nível das políticas públicas voltadas para aquele território, com planejamento estratégico com estabelecimento e acompanhamento de metas e acompanhamento dessas mudanças.
A formulação dos programas educacionais é muito importante. Eles precisam ser formulados já pensando no enfrentamento das desigualdades, inclusive nos territórios vulneráveis. O que significa implementar um programa em um território vulnerável? Precisarei oferecer um pouco mais em termos de profissionais ou recursos financeiros? Quais os desafios específicos desse local?.”
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