Saraus remotos: o poder da palavra em contexto de privação de liberdade

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Saraus remotos: o poder da palavra em contexto de privação de liberdade

No Projeto Educação com Arte, os saraus on-line têm sido um momento de respiro e uma ferramenta para fortalecer a confiança e a autonomia dos adolescentes. Conheça a experiência

Por Stephanie Kim Abe

J.O., de 16 anos, é um adolescente que cumpre medida socioeducativa na Fundação Casa. Ano passado, durante as oficinas remotas de Artes da palavra, ministradas pela equipe do Projeto Educação com Arte do Cenpec Educação, ele produziu o seguinte texto:

Eu fui internado na pandemia já estava difícil lá fora, aí vim parar no sistema socioeducativo e não sei direito como vai lá fora, isso me deixa muito preocupado, isso às vezes me deixa pra baixo por estar difícil lá fora para minha família que precisa trabalhar por que necessitam de dinheiro pra comprar as coisas.

Chegando aqui foi difícil até por conta psicológica não fazia ideia como ia ser minha vida da li pra frente pois nunca passei por isso pensei que ia ser de varias formas e era de outra achei que era ruim e vi que não é. 

Mais a vida é dura por conta da desigualdade social que infelizmente existe fica difícil de lidar e viver a vida com essas coisas pois vemos isso no dia dia em todos os lugares se vai um negro e um branco no shopping quem o segurança vai ficar de olho?

Se você tem tatuagem eles dizem que é ladrão … se fala gíria é marginal.

Aonde vamos com essa desigualdade social? Até aqui mesmo dentro do sistema socioeducativo tem esses tipo de coisa. ‘ah ele já foi preso ele não é uma pessoa boa pra conviver, ele é um monstro sem recuperação, para que existe então esse sistema se não para ressocializar? Na minha opinião o sistema funciona sim para quem quer claro que isso aqui não vai reformar sua alma, porém se você quiser mudar você consegue.”

J.O. 16 anos

O texto acabou compondo o fanzine que a turma produziu com o tema “Como a pandemia afetou a sua vida”, proposto pelo arte-educador Fernando Konesuk. No final do ciclo de três meses, os meninos apresentaram a produção, durante um sarau remoto – evento que abarca apresentações livres de diferentes linguagens (música, poesia, leitura), que tem como foco a palavra. 

Ainda que já acontecessem antes, em formato presencial, os saraus on-line têm sido uma nova experiência tanto para educadores(as) quanto para os participantes. Para Marília Rovaron, coordenadora do projeto pelo CENPEC Educação, esses eventos tomaram um lugar ainda mais especial nesse contexto de pandemia, não só como espaço de visibilidade e protagonismo dos adolescentes, mas como importante momento de acolhimento:

Foto: arquivo pessoal

Os meninos estão vivendo algo muito novo, que é um isolamento dentro do isolamento. Eles estão privados de liberdade e ainda têm limites na comunicação e no diálogo com o outro. As oficinas e os saraus têm conseguido, de algum modo, minimizar esse sofrimento que eles estão sentindo, possibilitando que vivenciem algo prazeroso e que esqueçam, por alguns minutos, o medo que estão passando e a falta de notícias da família. São momentos de respiro que contribuem para a saúde mental dos meninos em meio a tanta angústia.”

Marília Rovaron

Veja mais sobre como foi a adaptação para oficinas remotas do Projeto Educação com Arte


Sarau como processo de autonomia

Quem deu a ideia e realizou o primeiro sarau remoto com a turma no ano passado foi o educador Fernando Konesuk, que, curiosamente, não costumava promover esse evento em suas práticas presenciais. Talvez por isso ele tenha conseguido vislumbrar a possibilidade de realizá-lo de forma remota:

Fernando Konesuk
Foto: arquivo pessoal

O sarau a distância foi uma sacada para garantir um momento de afeto e de vínculo para celebrar o fim do ciclo das oficinas e acolher as produções dos adolescentes. É um momento para que eles apresentem – ou não – o que querem. Só realizo o sarau se os meninos concordam, porque de punição já basta estarem dentro do sistema”.

Fernando Konesuk

Ele realizou cerca de seis saraus com as suas turmas, sobre diferentes temas, e buscou criar cartazes de divulgação para cada um deles – que serviram não só como convite para diferentes equipes internas da Fundação Casa, mas como memória do projeto e do percurso pedagógico percorrido.

Em um dos saraus, ocorrido com uma turma da unidade de Osasco, município da região metropolitana de São Paulo, o tema escolhido pelos meninos foi a sua vivência no sistema socioeducativo. Apesar das limitações e das possíveis tensões geradas pela temática, Fernando apoiou a decisão da turma e direcionou-os para produções que focassem o lado positivo de suas experiências. As oficinas deram tão certo que a turma produziu um fanzine fora do horário da oficina, com a ajuda do setor pedagógico, que também lhes deu autonomia no uso do computador – algo incomum nas unidades.

No mundo dos fanzines: que tal produzir artesanalmente com a turma textos e imagens para uma publicação alternativa? Confira a oficina.

A autonomia em realizar os saraus e as atividades também foi percebida pelo coordenador regional Tony Sagga, ao citar o caso de um sarau que aconteceu durante uma oficina gravada (assíncrona) no Complexo de Franco da Rocha:

Tony Sagga
Foto: arquivo pessoal

Em uma das turmas, a educadora mandou o vídeo gravado de uma oficina perguntando para os meninos se eles queriam realizar um sarau remoto. Nas atividades escritas, eles disseram que topavam e mandaram suas poesias. No dia, o coordenador pedagógico da unidade conseguiu filmar a apresentação dos meninos e nos enviar. Foi bem legal, porque eles assumiram a responsabilidade e tocaram o evento sozinhos, com o apoio do setor pedagógico.”

Tony Sagga

O educador Fernando destaca outro caso, que ocorreu com uma turma da unidade de São Bernardo do Campo, também na região metropolitana de São Paulo. O tema escolhido para o sarau foi funk. Eles decidiram que trabalhariam o assunto coletivamente, sendo que cada grupo de meninos focaria em um aspecto desse cenário: MCs (mestres de cerimônia), produtoras e festas e fluxos. As oficinas serviram para que eles conhecessem mais desses assuntos e pudessem sistematizar suas falas, como explica Fernando:

Convite para sarau virtual produzido pelos meninos da unidade de São Bernardo do Campo. Foto: Educação com Arte/Fundação Casa, 2021

Combinamos que em vez de eu trazer conteúdo, eles me diriam o que queriam que eu fornecesse a eles para que pudessem se preparar. Durante as aulas, lemos a biografia do MC Zói de Gato, do Felipe Boladão e da produtora Kondzilla. Eu lia com eles as matérias e os textos e eles faziam anotações. Quando eles apresentaram suas sistematizações durante o sarau, percebi que tiveram um grande poder de síntese, de selecionar qual informação era importante e construir uma narrativa bem interessante. Foram textos que, na minha opinião, beiraram até produções acadêmicas.” 

Fernando Konesuk

Todas essas experiências deixam muito claro para Fernando a importância do sarau:

Eu tenho entendido o sarau como uma ferramenta pedagógica para trabalhar a autonomia, a autogestão pedagógica, o poder de leitura e de síntese de escrita e a construção do conhecimento. Os meninos podem escolher o que querem falar, como querem apresentar e traçar diferentes caminhos.”

Fernando Konesuk

Mesma oficina, diferentes caminhos

Os saraus são organizados por arte-educadores(as) que ministram as oficinas de Artes da Palavra e Literatura Periférica. Não há um padrão para os temas abordados ou a forma como elas acontecem. Antes da pandemia, Fernando costumava trabalhar muito com podcasts; atualmente tem se aventurado na arte dos fanzines virtuais.

A arte-educadora Chai Odisseiana sempre trabalhou muito com fanzines, além da música e da poesia – já que é MC, compositora e cantora. Na época em que as oficinas eram presenciais, era comum vê-la chegando para as aulas carregada de livros, às vezes 15 de uma vez, para garantir que cada um dos seus alunos tivesse um exemplar para trabalhar em sala. Os títulos contemplavam principalmente produções periféricas, de autores(as) que saíram de saraus frequentes das quebradas.

Ainda que cada vez mais presentes nas periferias, desde o começo dos anos 2000, muitos adolescentes desconhecem o que é um sarau. Por isso, Chai gosta de contar a história desses eventos e fazer com que eles se lembrem se eles aconteciam nos seus bairros:

 Chai Odisseiana
Foto: arquivo pessoal

Explico que teve uma época que só a elite fazia sarau. A periferia sempre teve os seus encontros para compartilhar as suas manifestações, mas que tinha outro nome: celebração, encontro, cerimonial, festa, evento. De uns 10 anos pra cá, o sarau vem criando uma força muito grande dentro das quebradas. Tanto dentro da Fundação Casa quanto nas quebradas, o sarau é um portal, uma revelação de talentos.”

Chai Odisseiana

Saiba mais sobre a história dos saraus e dos saraus periféricos no artigo de Washington Góes

Para a arte-educadora, as oficinas de palavra ajudam os meninos a se comunicarem e se expressarem melhor:

A arte das palavras provoca os adolescentes, porque quando a gente escreve, a gente começa a se olhar, a refletir o mundo em que estamos vivendo, não só o individual, mas tudo. O que mais estimulo que eles façam nos saraus é que falem de suas histórias.”

Chai Odisseiana

O arte-educador Heitor Araújo também trabalha muito com música, como rap e funk, e literatura. Ele costuma trazer exercícios de escrita criativa para estimular os meninos a criarem as suas próprias produções. Segundo o educador, o mais importante é que os adolescentes entendam que a escrita é um processo, que vem de cada um:

Educação com Arte a distância
Foto: arquivo pessoal

Trago a Maria Carolina de Jesus e digo que vamos ler e escrever sobre ela. Ensino o padrão, a parte gramatical, a construção das estrofes e do refrão, mas explico que isso tudo é só uma base, uma aprendizagem e que não é um bicho de sete cabeças. ‘A forma como você vai construir as suas rimas e recitar sua produção vai de você’, digo. É difícil ensinar poesia, porque, no final, a poesia é algo que sai da cabeça deles – e saem coisas muito belas. Tenho alunos que já tem suas letras, já são MCs.”

Heitor Araújo

Heitor acredita que o mais importante é mostrar para os meninos que cada música, poesia, texto é uma história contada de alguém ou de outras pessoas, e que eles podem e devem ser protagonistas nessa ação:

Deixo bem claro que, se eles não contarem a história deles, outras pessoas vão chegar e contar de forma diferente – muitas vezes de uma maneira que eles não vão gostar. Então é melhor eles entrarem nesse universo cheio de possibilidades.” 

Heitor Araújo

Wellington do Carmo Medeiros de Araújo, gerente de Arte e Cultura e Educação Profissional da Fundação Casa, também reconhece a importância dos saraus para além da formalidade de um encontro de final do trimestre:

Wellington do Carmo Medeiros de Araújo
Foto: arquivo pessoal

Os saraus são ricos em trocas e desafiantes aos seus participantes que se preparam a levar o seu melhor para aquele curto momento. Ao final saem mais ricos com o que absorveram dos demais e também pela generosidade que praticaram pela partilha de sua produção e confiantes de que sua dedicação e perseverança resultaram em qualidade em sua produção artístico-cultural. Não se busca e nem se propaga a ideia de que os adolescentes que participam dos Saraus são poetas num sentido profissional e que terão muitos livros publicados, mas sim de que pessoas comuns, além de muitas outras qualidades, também são poetas e declamadores em seu cotidiano. Este é o sentido educativo que se busca imprimir com tais ações.”

Wellington do Carmo Medeiros de Araújo

Cuidados e possibilidades no formato on-line

Como as oficinas já estavam acontecendo de forma on-line, não houve muitas dificuldades em termos tecnológicos para realizar os saraus. Abriu-se, inclusive, a possibilidade de mais pessoas comparecerem e prestigiarem a apresentação dos adolescentes. Os primeiros saraus contaram com a presença de técnicos(as) de outras áreas das unidades, além dos coordenadores(as) regionais do projeto Educação com Arte. 

Toda essa plateia torna o evento ainda mais interessante para os meninos, explica o coordenador regional Washington Góes:

 Washington Góes
Foto: arquivo pessoal

Como qualquer outro jovem, eles querem mostrar para a sociedade que não são esse estereótipo que foi colocado para eles, e mostrar para a equipe pedagógica da unidade que tem outras coisas importantes que acontecem durante a medida socioeducativa que o Centro muitas vezes não está olhando, e que mostra a evolução deles.” 

Washington Góes

Algumas adaptações para esse contexto remoto foram necessárias na organização dos saraus, principalmente na atuação dos(as) arte-educadores(as) durante as apresentações. Como explica a coordenadora regional Mônica Roberta Antônio:

Educação com Arte a distância
Foto: arquivo pessoal

Os meninos muitas vezes aproveitam esses momentos para ‘mandar a real’ e falar coisas que não estavam combinadas ou ensaiadas. Então, além de trabalhar a questão da apresentação e da disposição e timidez dos meninos, os educadores também têm que chamar atenção nessas horas. Se no presencial eles podiam fazer isso ao pé do ouvido, de forma discreta, no sarau remoto eles têm que falar na frente de todo mundo da sala virtual – o que é mais complicado e um pouco constrangedor.”

Mônica Roberta Antônio

Esse cuidado também é necessário na hora de dar devolutivas para os alunos durante as oficinas remotas. A educadora Chai reforça que o olhar sensível para as produções é sempre necessário, porque muitos adolescentes têm insegurança e algumas dificuldades na escrita e na leitura. Por isso, o foco precisa estar sempre no conteúdo e no processo das produções, não tanto na ortografia ou nas regras gramaticais:

Os meninos escrevem ‘errado’, segundo a norma padrão, e têm baixa autoestima, então até com críticas construtivas precisamos ter cuidado, para não brecar o processo de criação deles. Nas aulas gravadas, é ainda mais complicado ficar corrigindo os meninos, porque não estamos lá para mediar a situação. Eu costumo fazer uma fala geral, dando dicas para usar o dicionário, sem apontar erros específicos para não expor ninguém. Eu não foco na ortografia oficial, porque o que importa é a essência da criação.”

Chai Odisseiana

Para Chai, a experiência on-line tirou um pouco do contato com a energia e a ansiedade que acometem os adolescentes minutos antes da apresentação no sarau – e que ela valoriza muito. Ela costuma fazer ensaios durante as oficinas e ressalta como é visível a confiança que eles vão ganhando conforme treinam e leem suas produções ao longo das aulas. “Acho que é mais verdadeiro e forte o sarau presencial do que em formato on-line”, diz.

Mas, no geral, o formato remoto tem feito com que os meninos participem mais. Como a qualidade da câmera não permite que os(as) educadores(as) vejam as produções, os adolescentes precisam ler seus textos durante as oficinas on-line. Foi o que notou o educador Heitor Araújo, para quem a experiência remota foi completamente diferente. Ele sentiu que os adolescentes se soltaram e se expressaram mais do que anteriormente. Para o educador, isso mostra o poder que não só o sarau, mas a palavra em si tem:

Só quem está ali presente vendo o adolescente recitando a sua poesia entende o poder de transformação que a palavra tem. O sarau, na verdade, é a consequência do trabalho que acontece nas oficinas, onde ele se auto identifica com a aula, se dedica e coloca seus sentimentos nessas produções sobre o seu cotidiano. Nosso papel é explicar que essa é uma atividade bacana, que o processo nas oficinas demanda tempo e que aquela produção é valiosa e deve ser valorizada.”

Heitor Araújo

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