Uso de TICs por crianças e adolescentes: riscos e oportunidades
Estudo analisa dinâmicas de gênero no uso de tecnologias de informação e comunicação e alerta para reprodução de estereótipos e desigualdade de acesso
Por Stephanie Kim Abe
De acordo com os dados da Pesquisa TIC Kids Online 2019, temos 24 milhões de crianças e adolescentes brasileiros usuários de internet. Entre a população de 9 a 17 anos, 95% usa a internet no telefone celular, 68% usa redes sociais e 79% envia mensagens instantâneas. Mas será que esse uso da internet é igual para todos(as) adolescentes e crianças? Os meninos têm mais liberdade para navegar na rede? As meninas se preocupam mais com o que postar? Como as interações virtuais afetam a construção de sua autoimagem ou os(as) permitem criar novas relações sociais?
É justamente com esse olhar para as diferenças e as desigualdades no acesso e uso das tecnologias de informação e comunicação (TIC) por jovens que o estudo Dinâmicas de gênero no uso das tecnologias digitais: Um estudo com crianças e adolescentes na cidade de São Paulofoi feito. Lançado no mês passado, o estudo foi desenvolvido pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), por meio de seu Núcleo de Pesquisa e Informação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro) e Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Cetic.br|NIC.br).
O objetivo do estudo foi compreender como as representações sociais e os discursos de gênero são mobilizados no uso das TICs por crianças e adolescentes e como elas podem influenciar as dinâmicas do dia a dia e os seus efeitos para esses grupos.
Márcia Lima, professora do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo e coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro-Cebrap), explicou durante evento on-line de lançamento do estudo:
Esse estudo traz uma contribuição muito relevante para uma dimensão paradoxal das TICs: por um lado, trazem possibilidades de produção e difusão de informações e novas formas de aprendizado – que chamamos no estudo de ‘oportunidades’. Por outro, são terreno fértil para a propagação e produção de conteúdos que revelam preconceito, racismo e discriminação – ou seja, os ‘riscos’. E essas oportunidades e esses riscos são marcados e diferenciados por raça, gênero e classe.”
Márcia Lima
Limitações de uso e desigualdade de acesso
A pesquisa foi conduzida entre 2016 e 2017 com crianças e adolescentes de São Paulo de diferentes classes sociais, de escolas públicas e privadas, separadas em grupos focais de 11-12, 13-14 e 15-17 anos. Também foram realizadas entrevistas em profundidade com responsáveis de crianças e adolescentes, professores(as) do Ensino Fundamental e Médio e adolescentes de 15 a 18 anos, com identidade de gênero e/ou sexualidade não normativa.
Ao olhar para o acesso e uso das TICs pelos(as) participantes, o estudo identificou a importância das redes sociais para a interação social de crianças e adolescentes, e como cada uma delas tem um uso específico: WhatsApp para conversar, Facebook para postar fotos, Snapchat para fotos do dia-a-dia ou privadas. Notou-se o protagonismo do YouTube, como canal de entretenimento, de aprendizagem e até de fonte de renda – para aqueles(as) que desejam se tornar youtubers.
Os modos de apresentação e autoexpressão na rede estão ligados às percepções de privacidade e de restrição de uso pelos responsáveis. O estudo constatou que há mais relatos de imposição de limites que incentivo de uso pelos adultos, seja pelo que consideram “perda de tempo” ou pela exposição aos riscos on-line. Nesse sentido, chama atenção o maior controle desse uso sob as meninas do que os meninos. Enquanto os garotos relatam a mãe como a principal figura mediadora do uso das redes, esse papel é exercido por mães, pais e irmãos no caso das meninas. Eles controlam suas conversas, as fotos que postam, as amizades que fazem nas redes. Como colocam as autoras:
Cabe problematizar, portanto, quais os possíveis efeitos do maior controle e restrição exercidos sobre meninas por pais e mães, visto que um uso mais limitado dessas tecnologias poderá implicar também oportunidades e aproveitamento desiguais.”
Cebrap/Afro/Cetic.br, 2021
Riscos
A percepção de que as meninas correm mais riscos na internet que os meninos está relacionada com a reprodução de estereótipos de gênero na internet. O estudo traz a questão dos nudes como um exemplo de como o machismo e o sexismo estão presentes nas relações virtuais.
As autoras explicam:
Os vazamentos de nudes são geralmente acompanhados da responsabilização das meninas que tiveram foto divulgada nas redes e não dos meninos responsáveis pela disseminação desse conteúdo sem consentimento. Assim, nos grupos entrevistados, o julgamento moral incide sobre a menina que opta por registrar e compartilhar sua foto com outro alguém, enquanto pouco se comentou sobre a disseminação não-consentida.”
Cebrap/Afro/Cetic.br, 2021
Não à toa, o estudo aponta como as crianças e adolescentes compõem sua identidade sexual pelas redes sociais e como há um processo minucioso de seleção das melhores fotos para se postar, com o uso de filtros para melhorar a sua autoimagem. As meninas se preocupam com o que as pessoas vão pensar sobre elas e em se enquadrar em padrões estéticos normativos. Para os meninos, a preocupação é mais em relação em relação às roupas que usa, para demonstrar uma certa condição socioeconômica pela marca ou grife da camiseta que utiliza.
As discriminações e os preconceitos também são outros riscos do uso das TICs, como mostra os dados da Pesquisa TIC Kids Online 2019: entre a população de 9 a 17 anos, 43% viu alguém ser discriminado na internet naquele ano.
O bullying foi muito apontado pelas crianças e adolescentes participantes do estudo. Ao olhar esses riscos sob o viés de gênero, Sílvia Aguião, pesquisadora associada do Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/UERJ) e do Afro-Cebrap, destacou:
Foi muito comum a percepção de que na internet você vai ter contato com expressões de racismo, transfobia, homofobia. As entrevistas falam da internet como esse espaço livre para as pessoas expressarem os seus preconceitos e as pessoas de gênero seriam particularmente vulneráveis a ataques.”
Sílvia Aguião
Já em relação ao racismo, Márcia Lima apontou uma diferença etária, sendo mais elaborada pelos adolescentes de 15 a 17 anos do que pelos mais novos. Foi nos grupos focais com meninos negros mais velhos que mais apareceram relatos de racismo em circunstâncias não-virtuais, tanto de jovens da periferia quanto das classes AB. Para Márcia, esses episódios mostram como existe uma conexão entre o mundo virtual e não-virtual, que precisa ser melhor investigada.
Márcia também chamou atenção para a importância da condução do grupo focal pelos(as) mediadores(as), de forma a não categorizar as experiências das crianças e adolescentes. Ao não impor formulações, a pesquisa permitiu olhar como esses episódios eram percebidos e elaborados pelos(as) próprios(as) participantes:
Não ter levado categorias como racismo, bullying, homofobia para os jovens é uma grande riqueza dessa pesquisa. Na Sociologia, quando trabalhamos a construção de estereótipos sociais, raciais, de gênero, também queremos ver um pouco quais são os componentes cognitivos que formam o preconceito. Pudemos ver como elas são construídas e formuladas por esses jovens, como eles lidam com e reconstroem sua relação com elas, na interação com o mundo virtual.”
Apesar dos riscos, há muitas oportunidades no uso das TICs pelas crianças e adolescentes. A internet e as redes sociais são utilizadas para estudo e aprendizagem, para sociabilidade, para comunicação e para o lazer. É o caso, por exemplo, de quando assistem um vídeo no YouTube para aprender novas habilidades ou línguas estrangeiras.
Para Sílvia Aguião, essa possibilidade de buscar não apenas conteúdos para atividades escolares, mas de usar a internet para um processo de construção da identidade é o mais potente das TICs. Nesse caminho, as crianças e adolescentes encontram comunidades com os mesmos interesses, constroem relações diversas e redes de apoio. Essas distintas experiências ganham destaque e trazem “ampliação de imaginários sociais e políticos” muito importantes:
Essa percepção é especialmente marcante para pessoas jovens que vivenciam algum tipo de transição de gênero, tanto pela descoberta da possibilidade de uma maneira diferente de ser e estar no mundo, pela internet, quanto sob aspectos mais práticos, de ordem jurídica ou de saúde para entender e acessar melhor o que seria esse processo de transição de gênero.”
Sílvia Aguião
Ao final do estudo, são dadas algumas recomendações para políticas públicas, como o fomento a pesquisa, a ampliação do debate sobre oportunidades e desafios das TICs e a transversalização de gênero nas políticas sobre as tecnologias. As autoras também indicam a promoção de ambientes on-line seguros, por meio da difusão de orientações não só para crianças e adolescentes, mas também para familiares e docentes, sobre canais de apoio que podem ser acionados em casos de situações problemáticas ou de violência on-line.
Márcia Lima vê nos relatos que há muito espaço para o uso das TICs para combater esse reforço de estereótipos e preconceitos – como por exemplo quando os(as) adolescentes começam a desconstruir o racismo como brincadeira. Para ela, o futuro é promissor:
Esse estudo demonstra como as TICs podem ser excelentes instrumentos de combate à discriminação e ao preconceito e como essas crianças e adolescentes estão preparados para receber informações e conteúdos de qualidade para realmente se tornarem agentes dessa luta na nossa sociedade.”
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