Quais são as possíveis implicações da lei que possibilita o ensino religioso na escola? Artigo publicado originalmente na Plataforma Educação&Participação em 2017
por Regina Novaes
Educar é possibilitar que se conheçam outros mundos. Em pleno século XXI, globalizado e conectado, a escola está desafiada a ampliar horizontes e a incentivar buscas e experimentações. Nesse cenário, o que dizer do item da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996) que prevê o ensino religioso na escola pública?
Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. (Redação dada pela Lei n. 9.475/1997)
§ 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. (Incluído pela Lei n. 9.475/1997)
§ 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. (Incluído pela Lei n. 9.475/1997)
LDB – Lei n. 9.394, de 20 de dezembro de 1996: estabelece as diretrizes e bases da educação nacional
Em primeiro lugar, não há como negar, a simples presença do ensino religioso nas escolas públicas é fortemente questionável diante da laicidade do Estado, preconizada pela Constituição. O ensino religioso deveria ficar a cargo das instituições religiosas (as quais, é bom lembrar, já desfrutam de isenção fiscal do Estado).
Em segundo lugar, vale uma observação sobre o termo “ensino religioso”. Muitos equívocos seriam evitados se a designação fosse outra, por exemplo: “ensino das religiões” ou “ensino sobre a dimensão religiosa da vida” ou, ainda, “noções básicas das religiões contemporâneas”. Tais designações, de saída, afastariam a conotação confessional e evitariam a apropriação da experiência religiosa por educadores que não acolhem a diversidade.
No entanto, em uma direção oposta, depois de quatro sessões, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), em 27 de setembro de 2017, por 6 votos a 5, decidiu que o ensino religioso nas escolas públicas pode ter natureza confessional, isto é, pode se circunscrever a uma religião específica.
O desempate coube à presidente do STF, ministra Carmem Lúcia, que argumentou que a autorização do ensino religioso confessional não é conflitante com a laicidade do Estado porque a disciplina tem caráter estritamente facultativo. No entanto, obrigatórias ou facultativas, as disciplinas oferecidas não aterrissam em espaços vazios de história e de experiências de vida. É disso que vamos falar a seguir.
Base Curricular e religião No dia 6 de dezembro de 2017, o jornal Folha de S.Paulo, após a análise da terceira versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), à qual teve acesso antes de ser divulgada pelo Ministério da Educação (MEC), informou que a pasta excluiu menções ao combate à discriminação de gênero da nova versão do documento e incluiu esse tema na parte de ensino religioso. O objetivo seria discutir nas escolas concepções de gênero e sexualidade de acordo com as tradições religiosas. Saiba mais.
Juventude e religiões no Brasil: um cenário de mudanças
Como se sabe, no Brasil, da Colônia à República, o “ser católico” e o “ser brasileiro” parecia natural. O catolicismo foi determinante para a conformação do território brasileiro e para o calendário oficial do país, bastante entremeado de feriados religiosos católicos. Nesse cenário, uma parte significativa da população que se declarava católica omitia suas relações com as religiões de matriz africana e/ou com o espiritismo kardecista. Ao mesmo tempo, os protestantes históricos ou de migração não ameaçavam a predominância católica pois, por séculos, quase não ultrapassavam um crescimento vegetativo.
Porém, com o passar do tempo, aconteceram algumas mudanças significativas no campo religioso brasileiro. Por um lado, sobretudo a partir da segunda metade do século XX, as denominações evangélicas pentecostais cresceram e, por meio de muitas conversões, introduziram a concorrência explícita no campo religioso. Por outro lado, as novas tecnologias de comunicação e informação favoreceram a circulação de outras crenças e símbolos religiosos de origem oriental, islâmica ou, ainda, de outras combinações chamadas de esotéricas ou de “nova era”.
Hoje, o catolicismo ainda é a religião da maioria dos brasileiros, mas houve uma significativa diminuição da transferência do catolicismo de uma geração para outra. Segundo o Censo 2010 do IBGE, os jovens católicos de 15 a 24 anos somavam 63%, o que foi reconfirmado em pesquisa de 2013, segundo a qual jovens católicos da mesma faixa etária somavam 55% (Pesquisa Agenda Juventude Brasil, SNJ).
A escola está diante de um campo religioso em movimento. Cada vez mais crianças, adolescentes e jovens vivem em famílias multirreligiosas. E, ao mesmo tempo, uma parte considerável dessa geração está em busca de sentido e de nova espiritualidade. Nada mais incoerente a escola só oferecer o que é conhecido e estabelecido no mundo das religiões.”
Neste cenário de mudanças, é preciso destacar ainda o crescimento dos sem religião (que não negam ter fé, mas declaram não ter vínculos com instituições religiosas). No Censo 2010, os sem religião correspondiam a 8% e remetiam sobretudo ao universo jovem. Segundo a pesquisa Agenda Juventude Brasil em 2013, os jovens sem religião já somavam 15%.
Na trajetória dos jovens, declarar-se sem religião pode ser um intervalo entre distintos pertencimentos. Isto é, representaria um momento de busca que pode desembocar tanto em uma volta à religião de origem como em adesão a uma nova religião.”
Esses jovens não se definem como ateus ou agnósticos. O que pode significar, então, declarar-se sem religião? Pesquisas qualitativas demonstram que essa resposta pode revelar um ponto de partida para se descolar das religiões de família: uma oportunidade para “interagir” – sem a vigilância das famílias e de autoridades religiosas – com outras religiões.
Assim sendo, na trajetória dos jovens, declarar-se sem religião pode ser um intervalo entre distintos pertencimentos. Isto é, representaria um momento de busca que pode desembocar tanto em uma volta à religião de origem como em adesão a uma nova religião. Mas, para uma parcela dos jovens, declarar-se sem religião pode também ser um ponto de chegada. Isto é, chegada a uma síntese religiosa pessoal, sem nova adesão institucional.”
Enfim, a escola está diante de campo religioso em movimento. Cada vez mais crianças, adolescentes e jovens vivem em famílias multirreligiosas. E, ao mesmo tempo, uma parte considerável dessa geração está em busca de sentido e de nova espiritualidade. Nada mais incoerente a escola só oferecer o que é conhecido e estabelecido no mundo das religiões.
A escola como espaço de diálogo e valorização da diversidade
Nos dias de hoje, em todo o mundo, as religiões deixaram de ser as principais fontes distribuidoras de sentido e de imagens do mundo estáveis entregues, de geração a geração pelas autoridades religiosas reconhecidas como tal. Nesse contexto, para um bom número de adolescentes e jovens brasileiros, a religião deixa de ser um dado estático da tradição e pode se tornar uma escolha pessoal ou mesmo uma combinação singular de elementos de diferentes tradições religiosas.
Entretanto, não há como negar que sobre tais escolhas ainda pesam fortes condicionantes sociais presentes na história, no cotidiano, nas pessoas e nos livros didáticos.
Em um sistema escolar em que os livros didáticos privilegiam a presença e os feitos da Igreja Católica e que grande parte dos professores partilha dessa “naturalização”, alunos evangélicos entrevistados (NOVAES, 2016) declararam ser discriminados principalmente por sua religião.
Para aqueles que estão realmente comprometidos com a qualidade da escola pública, resta a possibilidade de reunir esforços para fugir das armadilhas do ensino religioso confessional. Como alternativa, arranjos internos podem viabilizar uma disciplina que considere as diferentes expressões religiosas como parte das experiências da humanidade.”
Por outro lado, se considerarmos que os mesmos livros didáticos reafirmam preceitos e rituais cristãos, não é de estranhar que alunos que expõem símbolos de sua fé baseada na matriz africana sejam os mais discriminados. Nesse caso, também é evidente a associação entre a religião e o racismo, tão negado e tão presente na sociedade brasileira.
Tratando do fenômeno religioso de maneira reflexiva, o diálogo se ampliaria incluindo também aqueles que declaram ter fé e não ter religião e, até, possíveis alunos que se consideram ateus e agnósticos.”
Com esses exemplos estamos dizendo que as classificações que promovem hierarquias entre religiões têm história e estão espalhados por diferentes disciplinas, sejam elas obrigatórias ou facultativas. Mas, se é verdade que a supressão do ensino religioso na LDB não resolveria a questão de intolerância religiosa nas escolas, certamente também é verdade que, com a autorização do ensino religioso confessional, tende-se a aumentar a discriminação de jovens que não se enquadram nas religiões que tem sido e serão oferecidas nas escolas.
Qual a saída? Para aqueles que estão realmente comprometidos com a qualidade da escola pública, resta a possibilidade de reunir esforços para fugir das armadilhas do ensino religioso confessional. Como alternativa, arranjos internos podem viabilizar uma disciplina que considere as diferentes expressões religiosas como parte das experiências da humanidade. Tratando do fenômeno religioso de maneira reflexiva, o diálogo se ampliaria incluindo também aqueles que declaram ter fé e não ter religião e, até, possíveis alunos que se consideram ateus e agnósticos.
A valorização da diversidade religiosa deve ser pensada como um desafio que exige um exercício cotidiano, constante e ininterrupto.”
Uma disciplina com esse desenho pode se tornar um espaço de aprendizagem mútua entre alunos e professores. Mas, é preciso reconhecer, não se trata de uma empreitada fácil. De fato, em um contexto de maior pluralismo religioso, aumentam as disputas por fiéis e se produzem novos sectarismos. Ou seja, alunos, professores e gestores não estão livres de disputas e afirmações fundamentalistas presentes em suas escolhas religiosas. Afinal, religião implica fé, subjetividade e sentido da vida.
Discorrer teoricamente sobre diversidade cultural, diversidade ambiental, diversidade étnica ou linguística talvez seja mais fácil para um professor do que encarar a questão da diversidade religiosa. Assim sendo, a valorização da diversidade religiosa deve ser pensada como um desafio que exige um exercício cotidiano, constante e ininterrupto.
Portanto, uma postura desafiadora e vigilante em favor do reconhecimento da diversidade religiosa só pode ser proveniente de um pacto a ser feito no interior da comunidade escolar. Pacto esse que pode estar ancorado em uma simples e importante afirmação pedagógica: o encontro entre gente que pensa diferente é o que gera crescimento e introduz a possibilidade de desenvolvimento integral dos educandos.
Bibliografia NOVAES, Regina. “Juventude, religiosidade, territórios e redes: reflexões sobre resultados de pesquisas”. In PINHEIRO, Diógenes (org.) et al. Agenda Juventude Brasil: leituras sobre uma década de mudanças. Rio de Janeiro: Unirio, 2016.
Antropóloga graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, com mestrado e doutorado em antropologia social Lecionou na PUC-RJ e na Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Foi professora de pós-graduação em Sociologia e Antropologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde orientou pesquisas de iniciação científica, dissertações de Mestrado e teses de Doutorado nos seguintes temas: movimentos sociais, juventude, religião, cultura, cidadania e violência. Como pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), desenvolve trabalhos com o tema juventude, religião e política.
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