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Escrevivências em verso e prosa
Palestra de Conceição Evaristo a professores na final da 6a edição da Olimpíada de Língua Portuguesa
- Tamara Castro
Os professores e as professoras finalistas da última edição da Olimpíada de Língua Portuguesa (OLP) tiveram uma grata surpresa ao entrar na sala reservada à palestra inaugural do dia, no Museu da Língua Portuguesa, na capital paulista. Aplausos e gritos se seguiram ao anúncio de um nome que, por meio dos cursos e materiais do Programa Escrevendo o Futuro, tornou-se íntimo daquela plateia: Conceição Evaristo.
Com seu andar tranquilo, a escritora mineira residente no Rio de Janeiro desde a década de 1970 adentra a sala e já em sua primeira fala faz soar gostosos risos da plateia: “Eu tenho mania de professora. Gosto de ter a visão ampla da sala pra ver o que todos estão fazendo. Mas essa cadeira baixinha não me permite!”
Após conquistar assento mais confortável, a escritora agradece os organizadores do evento pela oportunidade de ser a primeira homenageada da Olimpíada de Língua Portuguesa. Mas, artesã da escrita, põe em xeque a palavra “patrona”: “Precisamos inventar outra palavra para nomear essa honraria às mulheres”.
Retomando sua fala inicial, Conceição conta que se aposentou como professora do 1o grau (hoje ensino fundamental): “Sei bem que quem faz acontecer algo na sala de aula é o professor com seus alunos. O apoio do Ministério e das Secretarias de Educação, da gestão escolar são importantes. Mas o trabalho de base é feito por nós mesmos”.
Ao revelar que aquela era sua segunda visita ao Museu da Língua Portuguesa, a escritora sublinha o simbolismo de estar conversando com professores e professoras que tiveram destacados seus trabalhos com ensino e aprendizagem de produção textual, exatamente no espaço dedicado a celebrar a língua portuguesa, expressão linguística originária do povo colonizador destas terras.
“Como mulher negra, sei que uma das primeiras e mais significativas perdas sofridas pelos povos africanos é a sua língua.” Com essa perda, os colonizadores buscaram atingir sua humanidade, apagando sua história individual e coletiva. Arrancados de suas terras, atravessaram o oceano Atlântico em navios tumbeiros, onde muitos morriam por maus tratos, doenças ou afogamento. Quando chegavam aqui, separados de suas famílias, de seus conterrâneos, eram proibidos de falar seu idioma e praticar sua cultura.
“Assim, narrativas, mitos, ritos de passagem foram perdidos. Mas restou a memória”, ressalta Conceição. Por isso, o papel das histórias contadas de boca em boca, ao longo dos séculos, pelos povos oprimidos, é tão central. “É por meio dela que se recupera grande parte das nossas culturas”, diz Conceição aos professores.
Tecendo sua fala “escrevivida” em torno da construção da nossa língua, maior patrimônio cultural dos povos, a autora de Ponciá Vivêncio, Becos da memória, Olhos d’água e outras joias da nossa literatura, passa a falar de como as línguas africanas e indígenas deixaram profundas marcas no português brasileiro.
Sobre essa influência, Conceição lembra Casa-Grande & Senzala, de Gilberto Freyre. Esse clássico da sociologia brasileira, publicado a primeira vez nos anos 1930, trata da formação nacional, com base nas três matrizes culturais. A despeito das críticas a essa obra (já que o autor, pertencente à oligarquia rural pernambucana, estava imerso na visão de mundo da “casa-grande”), Conceição Evaristo destaca uma bela metáfora usada pelo sociólogo sobre a transformação do português por influência dos falares africanos.
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: amolengou-as, machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem rr nem ss, as sílabas finais moles; as palavras que só faltam desmanchar-se na boca da gente.”
Gilberto Freyre, Casa-Grande & Senzala (1. ed. 1993)
De fato, as “mães pretas” exerceram forte influência no maior patrimônio da cultura portuguesa, a língua, sublinha Conceição. “Estar com vocês, professores, neste lugar, o Museu da Língua Portuguesa, me leva a pensar na importância de garantir o direito a esse patrimônio. Sem a competência em leitura e escrita de textos, os estudantes não conseguirão se desenvolver em outros campos do conhecimento”.
Nesse momento, a autora lembra outra narrativa, desta vez mítica, do folclore nortista e nordestino: o Bumba-meu-boi. Quando a escravizada Catirina, grávida, deseja comer a língua do boi mais querido do patrão, seu companheiro Pai Francisco, para satisfazê-la, mata o animal. Por fim, através da magia, o boi ressuscita. O desejo de comer a língua do boi é uma metáfora do anseio que as classes subalternizadas têm de dominar a língua. “Essa narrativa pode ser lida como o direito de todas, todes, todos ao letramento”, afirma.
Quando pensamos em língua no Brasil, dizemos que falamos o português. Mas há centenas de línguas e dialetos indígenas, entre outros idiomas, praticados por falantes que vivem aqui. Além disso, há inúmeras variantes do português oral, muitos deles estigmatizados, outros valorizados.
“O linguajar caipira, por exemplo, é ridicularizado ou criticado, enquanto o sotaque carioca é objeto de desejo e imitação. Mas por que o falar de algumas regiões é invejado e outros causam incômodo?”, questiona.
Esse fenômeno está relacionado ao nosso processo histórico e social. São sempre os grupos dominantes que determinam o que é a linguagem culta, assim como o que é literatura. “O que se passa no macro, se dá no micro: no caso, a escola. Como nós, professores, lidamos com essa mistura? Como os estudantes lidam com o que se considera linguagem culta?”
Na escola e na sociedade em geral, relaciona-se o ensino do português ao domínio da língua padrão. A construção da chamada norma culta, prestigiada socialmente, não é um processo natural. A definição do que é adequado e do que é erro tem fundamentos sociais e históricos, lembra a escritora. É papel da escola ensinar a norma culta, pois quem apenas se expressa em uma variante popular sofrerá preconceito linguístico e será estigmatizado. No entanto, ensinar a língua vai muito além de apenas apontar erros. “Trata-se de registros diferenciados que devem ser entendidos como fenômenos da diversidade linguística. Os professores e as professoras são muito versáteis para pensar e pôr em prática formas criativas de trabalhar esses fenômenos com os estudantes”, afirma.
Para além da norma culta, há uma “norma oculta”, aponta Conceição. Segundo ela, Maria Carolina de Jesus (1914-1977) foi uma das escritoras que incorporaram essa “norma oculta”: na tentativa de se apropriar da língua culta, a autora de Quarto de despejo, Diário de Bitita e Casa de alvenaria, além de letrista de sambas, inventou palavras e expressões. Mas, enquanto os termos forjados por João Guimarães Rosa eram louvados como neologismos, responsáveis pela renovação da língua, as criações de Carolina eram tachadas como erro. “Dependendo de sua posição social, o escritor recebe pesos de crítica diferenciada”, alerta Conceição.
Assim, como pensar o texto literário? “A literatura tem o poder de convocar a emoção dos outros. Mas somente algumas formas de traduzir a emoção podem ser consideradas poéticas?” Nesse sentido, reflete a escritora, participar da OLP é uma “oportunidade de refletir sobre a capacidade de se comover diante da vida. A poesia também está na possibilidade de olhar seu cotidiano, sua história e perceber alegrias e tristezas”.
Como articular o repertório cultural e linguístico dos estudantes oriundos de classes populares? “O ensino da língua não pode ser castrador”, alerta Conceição. Se o estudante vem de casa com uma oralidade e é reprimido em sua expressão mais autêntica, além de não aprender o que a escola tem a ensinar, ele corre o risco de perder seu registro. É preciso delicadeza dessa tarefa, para “não tratar a linguagem do aluno como amassamos uma folha de papel para jogar no lixo”, diz.
Na escola, constata Conceição, é comum o discurso de que o aluno tem dificuldades de aprendizagem intransponíveis por ser carente. Mas é preciso lembrar que pessoas desprovidas de bens materiais ou de estrutura familiar convencional não necessariamente são desprovidas de afeto. Se a criança não tem pai, mãe, muitas vezes é a avó, a tia, a vizinha que exerce o papel de cuidado e afeto. Por isso, é necessário que a escola incorpore o conceito de família expandida. “Ensinar é um exercício de olhar para si e para fora, um caminho para nos inserir em uma esfera coletiva e nos convocar a agir. Sem isso, a escola se torna um lugar de esquecimento”, reflete a escritora.
A pobreza é um lugar de aprendizagem e criatividade. As classes populares sempre lidaram com a crise, não é novidade, afirma. Elas precisam inventar saídas, soluções para problemas e carências em seu cotidiano. Para isso lançam mão do improviso e da criatividade. Essa capacidade de criar e recriar que as pessoas mais pobres têm é inspiração de sua obra, como estes versos do poema “De mãe” (publicado em 2002 nos Cadernos Negros, v. 25):
Foi de mãe todo o meu tesouro
Conceição Evaristo
veio dela todo o meu ganho
mulher sapiência, yabá,
do fogo tirava água
do pranto criava consolo.”
“Não se trata de uma apologia à pobreza”, alerta a escritora, “é preciso ter cuidado com isso”. É necessário lutar para romper com a pobreza. Mas é necessário considerar as experiências acumuladas pelas crianças e jovens vindos de situações vulneráveis ao lidar com as dificuldades cotidianas. Essa experiência deve ser considerada na construção de sua linguagem, na produção de seus textos. Nos textos de memória, um dos gêneros trabalhados na Olimpíada de Língua Portuguesa, por exemplo, a memória afetiva é construção do ser, nos sustenta no dia a dia, reflete a escritora.
O lugar de os alunos desenvolverem e sua potência de expressão escrita é a escola. Ela deve ser um lugar emancipatório, não de submissão da linguagem. Um espaço de (re)criação, não de esquecimento do que os estudantes já trazem de suas origens. Uma pessoa que desenvolve sua potência de expressão escrita tem grande chance de dar continuidade a esse processo, afirma Conceição, com sua experiência de autora consagrada pelo público e pela crítica especializada.
Perceber o lugar de vivência, tema da OLP, como algo que dá sentido à escrita, é algo que comove e mobiliza. O valor desse processo de observação e criação que nos convoca a nos olhar como coletividade talvez apenas seja percebido muitos anos depois, reflete a escritora. “É bonito ver como as pessoas têm prazer em contar do seu lugar, avaliando seus aspectos positivos e negativos, sentindo-se convocadas a atuar na transformação da realidade comum.”
Conceição também conta da experiência em integrar o júri que avaliou os textos finalistas da 6a edição da OLP. Segundo ela, foi uma tarefa difícil devido à qualidade dos textos. “Julgar artigo de opinião é mais fácil, porque é mais informativo, objetivo. Já o texto literário, que traz a criação de forma mais intensa, é bem mais difícil de ler e avaliar”, considera. “Uma emoção pode ser dita de diferentes formas”, ressalta.
Mais do que a premiação, o maior valor é participar desse processo de leitura, observação e escrevivência dos lugares onde se vive, percebendo a grandeza e as dificuldades desses espaços. “Essa experiência nos forma cidadãos, ensina a viver em coletividade”, diz Conceição.
À guisa de encerramento, a poeta expressa seus votos como madrinha da Olimpíada: “Desejo que a OLP engaje cada vez mais pessoas e escolas na observação e escrevivência dos seus lugares.”
A escrita através de vivências cotidianas (entrevista com Conceição Evaristo)
Capoeira, tradição oral e cultura escolar
A voz dos jovens mineiros na escrita de seu território
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