Por que ainda é preciso avançar na descolonização do currículo
Apesar de considerar as leis 10.639/03 e 11.645/08, a Base Nacional Comum Curricular faz pouco para trazer uma visão crítica e novas perspectivas sobre o ensino de História; saiba mais
Por Stephanie Kim Abe
A história da formação do Brasil foi um dos principais assuntos do ano, dadas as comemorações dos 200 anos da independência de Portugal, que ocorreu no dia 7 de setembro de 1822.
Quando pensamos nesse episódio, aliás, a imagem que vem à mente da grande maioria das(os) brasileiras(os), sejam elas(es) jovens ou idosas(os), é a do quadro abaixo, intitulado Independência ou Morte! e feito pelo pintor paraibano Pedro Américo de Figueiredo e Melo.
Principalmente para as pessoas mais velhas, a obra é tida como uma representação de como se deu, de fato, o grito de D. Pedro I às margens do rio Ipiranga, em São Paulo.
Hoje em dia, porém, sabemos que há pouca verossimilhança (pra não dizer nenhuma) entre a pintura e o episódio tal qual ele aconteceu. Pesquisas e documentos mostram como Pedro Américo estudou e esboçou diversas vezes os elementos que compõem a obra, buscando não retratar fielmente como ocorreu o fato histórico, mas sim criar uma representação épica e que restaurasse a glória do então decadente governo imperial.Quase nada do que está pintado retrata a realidade do episódio: as vestimentas, a topografia, os animais etc. O quadro foi concluído em 1888 e se encontra no salão nobre do Museu do Ipiranga em São Paulo (SP) desde que foi originalmente ali instalado, em 1895.
Ainda que todas essas descobertas estejam postas, elas pouco têm mudado o imaginário da população acerca da cena retratada. Muitos materiais e escolas ainda a utilizam para trabalhar a data, sem necessariamente trazer uma problematização mais profunda sobre o que ela de fato representa, como explica Fernando Isao Kawahara, técnico de programas e projetos do Cenpec:
Por que a grande obra que traduz o momento da nossa Independência é essa pintura fantástica do Pedro Américo, mas que não tem espaço para pobre, negro ou índio? Que só retrata brancos, com um camponês ao lado, que nem participa da cena? Quando escolhemos esse tipo de elemento para falar desse fato histórico, estamos fazendo escolhas ideológicas implícitas muito sérias, que acabam marcando a forma como vamos construindo a nossa história e a nossa sociedade“.
O debate e a crítica sobre o ensino da história nas escolas brasileiras baseado em uma perspectiva eurocêntrica já ocorre há muito tempo. Tanto que a aprovação da Lei 10.639, em 2003, foi uma das políticas públicas mais importantes que buscaram olhar para essa demanda curricular por novas abordagens. Neste caso, garantindo a inclusão obrigatória do ensino de História da África e das culturas afrobrasileiras nas escolas de educação básica.
Mais do que simplesmente fazer essa inclusão, a professora titular emérita da Faculdade de Educação (FaE) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Nilma Lino Gomes defende, em artigo de 2012, que essa demanda:
“(…) exige mudança de práticas e descolonização dos currículos da educação básica e superior em relação à África e aos afro-brasileiros. Mudanças de representação e de práticas. Exige questionamento dos lugares de poder. Indaga a relação entre direitos e privilégios arraigada em nossa cultura política e educacional, em nossas escolas e na própria universidade” (GOMES, 2012, p. 100)
Infelizmente, essa mudança de que trata a pedagoga não é fácil de ser de fato implementada. Um exemplo disso é a forma como ela está colocada (ou não) na a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), aprovada em 2017 em relação à Educação Infantil e ao Ensino Fundamental, e em 2018 com relação ao Ensino Médio.
Em sua primeira versão, a BNCC de História para o ensino fundamental trazia uma proposta de mudança no ensino da disciplina, em que o ponto de partida não seria a temporalidade, mas sim focando na forma como a nossa sociedade foi construída:
“Essa proposta provocava um deslocamento interessante, porque acabava dando um peso muito maior às questões das origens étnicas africanas e das culturas autóctones brasileiras. Ou seja, a discussão histórica se voltava mais para a identidade nacional brasileira, e não em uma visão eurocentrada”, explica Fernando.
Porém, o documento sofreu muitas críticas à época, de historiadores(as) e pesquisadores(as) que não concordavam com essa abordagem.
Toda vez que falamos do currículo de história, estamos falando de uma batalha ideológica, de pontos de vista diferentes sobre o que o Brasil deve ser e sobre como o brasileiro deve se sentir e se enxergar. Daí ser tão difícil fazer mudanças representativas nessa abordagem”.
Fernando Isao Kawahara, técnico de programas e projetos do Cenpec
Assim, apesar de considerar as leis 10.639/03 e 11.645/08 entre as legislações que seriam referências para a sua construção, a Base Nacional Comum Curricular faz pouco para trazer uma visão crítica e novas perspectivas sobre o ensino de História.
Washington Góes, técnico de programas e projetos do Portal Cenpec, explica que:
Havia uma expectativa grande dos movimentos negros de que as questões raciais fossem abordadas de forma mais crítica e particular. Infelizmente, a BNCC ainda é eurocêntrica, à medida que aborda a cultura e a história africana e dos povos originários fazendo um paralelo com outros conhecimentos e valorizando a cultura e a história europeia“.
Washington Góes
Na BNCC de História do 6o ano do ensino fundamental, existe uma habilidade que consiste em:
(EF06HI07) Identificar aspectos e formas de registro das sociedades antigas na África, no Oriente Médio e nas Américas, distinguindo alguns significados presentes na cultura material e na tradição oral dessas sociedades.
Olhando assim, podemos dizer que ela contempla o ensino de diferentes perspectivas e povos, porém ela se encaixa sob a seguinte unidade temática: A invenção do mundo clássico e o contraponto com outras sociedades.
O que é central nesse item? O Mundo Clássico, ou seja, Grécia e Roma – que são considerados o pilar da história europeia. Ao colocá-lo como central, invertemos os valores. Este tipo de inversão parece boba, mas não é. Uma coisa é eu dizer que existia algo no Brasil e chegou uma outra cultura que conversou ou influenciou a nossa história – que era o que a primeira versão propunha. Como que o mundo clássico chega no Brasil? Como as demais culturas, o sequestro dos africanos escravizados trazidos para cá e outros influenciaram na nossa sociedade e, por isso, estamos a estudá-los. Outra coisa é eu colocar a Europa como base e subsumir todo o resto a essa base”, explica.
Fernando Isao Kawahara, técnico de programas e projetos do Cenpec
Washington Góes tem estudado a BNCC, com esse olhar para como as questões raciais aparecem no documento. “Um dos problemas da Base é que ela vai abordar esses pontos em uma perspectiva de diversidade, de direitos humanos, e colocando todas as culturas não brancas – como dos povos originários e dos africanos – no mesmo balaio de gato“, explica.
Fernando concorda:
Eu não diria que o assunto foi negligenciado, mas ele está espalhado entre o conteúdo, e fica a cargo dos professores ficarem pescando elementos aqui e acolá sobre as questões étnico-raciais”.
Fernando Isao Kawahara, técnico de programas e projetos do Cenpec
Washington aponta ainda imprecisões conceituais que podem, inclusive, inibir um trabalho de educação verdadeiramente antirracista na escola. Um exemplo é a forma como está descrita a seguinte habilidade do 9o ano do ensino fundamental:
(EF09HI23) Identificar direitos civis, políticos e sociais expressos na Constituição de 1988 e relacioná-los à noção de cidadania e ao pacto da sociedade brasileira de combate a diversas formas de preconceito, como o racismo.
Já temos diversos estudos e pesquisas que mostram que o racismo e o preconceito são coisas distintas. Ao utilizar essa denominação inadequada, o documento revela um posicionamento ideológico da sociedade brasileira que tenta, de várias formas e há muito tempo, negar e desqualificar o racismo. Porque se ele é posto como um preconceito, então ele não é estrutural”.
Washington Góes, técnico de programas e projetos do Portal Cenpec
A diferença entre discriminação, racismo e preconceito foi abordada em vídeo realizado pela Comunidade Cenpec. Veja abaixo:
“Se eu ensino para o estudante que o racismo é preconceito, estou formando uma pessoa para pensar que o racismo é ‘mimimi’, depende apenas das atitudes individuais de uma pessoa – o que não é o caso. Se o racismo é estrutural, ele está na base da sociedade e, como tal, se materializa na sociedade, nas instituições, nos grupos e também nos indivíduos. Ele precisa, portanto, ser questionado e trabalhado de uma perspectiva mais ampla. E é com esse olhar que uma escola e um currículo realmente antirracista deveria se pautar”, explica Góes.
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