Raízes em semente: corpo, ancestralidade e arte-educação
Encontro de formação do projeto Educação com Arte tem a presença da artista plástica Carolina Velasquez. Fotos: Marco Antonio Vieira/Acervo CENPEC
Fincar os pés no chão. Respirar. Sentir o corpo se expandir e se contrair com o ar que entra e sai dos pulmões. Brincar: fazer nada. Ou fazer tudo? Estar presente no instante. “Quais são os gestos que vocês vestem no cotidiano?”, pergunta a artista plástica, performer e educadora Carolina Velasquez à equipe do projeto Educação com Arte: Oficinas Culturais (CENPEC Educação/Fundação CASA).
Em meio a tecidos, sementes de vários formatos, músicas de diversas origens e ritmos, máscaras e adereços coloridos, Carolina propõe aos arte-educadores e coordenadores do Educação com Arte maneiras diferentes de perceber, experimentar e refletir sobre o corpo e os gestos que costumamos usar em nosso cotidiano, no contato com outros corpos, matérias e narrativas.
Toda pessoa traz segredos escondidos no corpo. Eles podem ter relação com sua família, sua comunidade. Quais são os seus segredos, os segredos das suas raízes? Desvelá-los é descobrir a nossa força.”
Carolina Velasquez
A vivência, que durou cerca de 3 horas, aconteceu no dia 24.1, durante o encontro de formação semanal do projeto, no auditório do CENPEC Educação. Segundo a coordenadora Marília Rovaron:
Nosso objetivo com esse encontro era o de possibilitar aos educadores um momento de conexão, de cada um consigo mesmo e com todas as histórias que carregamos e que nos constituem.”
Marília Rovaron
Brincadeira e ancestralidade
O diálogo com a ancestralidade é marca na obra desta artista, brasileira filha de bolivianos. Por meio de cores, narrativas míticas, sonoridades, cheiros e memórias, Carolina propõe uma escavação pelas raízes que constituem cada pessoa. “Escavar, descobrir nossas raízes nos revela caminhos únicos, necessários para o autoconhecimento e para o desenvolvimento criativo de cada um”, afirma a artista.
Entre os povos andinos, pré-colombianos, o aterramento faz parte da identidade cultural, do modo de ser e estar no mundo, conta a performer enquanto conduz o grupo a se lembrar de como cada um respira e como está aterrado.
O aterramento é a presença no instante: estar aqui e agora. Isso é o brincar, o fazer nada, tão discriminado em nossa sociedade, que valoriza a produtividade, os resultados e esconde o erro, o caminho, o processo.”
Carolina Velasquez
Decolonização do corpo e educação
Para a artista, o brincar, o “fazer nada” é fundamental no resgate do que foi esquecido ao longo de um processo de colonização, que nega outras formas de ser, pensar e se relacionar com o outro, com a natureza.
“Brincar é a possibilidade de vivenciar outros papéis, lugares, gestos e formas de experimentar o corpo”, provoca Carolina.
Qual é o seu corpo condicionado? Que gestos você escolheu para representá-lo numa sociedade colonizada? Qual é o seu segredo? Você o esconde ou o hasteia?
Carolina Velasquez
A arte está relacionada a escavar e revelar esses segredos. Para isso, é necessário entrar em contato com nossas raízes familiares, comunitárias. “Apresentar-se de forma inteira ao outro é apresentar sua ancestralidade. E quando eu me apresento assim ao outro, o outro se apresenta.”
Entre os povos originários, afirma Carolina, a arte não está apartada da vida. Nessa concepção, a criação artística também é (auto)conhecimento e cura.
As diferentes linguagens e expressões, os sonhos, a intuição, tudo dialoga de maneira profunda nessas culturas. Mas vivemos em uma sociedade que valoriza a razão em detrimento de outros caminhos e saberes.”
Carolina Velasquez
No campo da educação, o diálogo profundo que a criação artística possibilita abre inúmeros caminhos a outras formas de conhecimento e autoconhecimento, assim como de relação entre educadores e educandos.
Na escola, muitas vezes os alunos sofrem desse apagamento de suas raízes. Suas histórias pessoais e familiares, seus sonhos, suas intuições não são considerados importantes diante dos conteúdos disciplinares. Revelar outros valores e práticas pode levar a uma educação libertadora.
Carolina Velasquez
Nesse resgate das origens culturais e étnicas, observar as práticas docentes e experimentar outras trilhas com os estudantes pode ser muito revelador. “Pensar e falar sobre nossa ancestralidade fortalece não apenas nossas identidades, mas também nossas práticas cotidianas. Foi um encontro muito potente, que esperamos reverberar em sala de aula”, afirma Marília Rovaron.
Entrevista com Carolina Velasquez
Portal CENPEC: Qual é o papel da ancestralidade e das memórias em seu trabalho artístico?
Carolina Velasquez: Este trabalho nasce da minha história pessoal e da minha descoberta de como ser brasileira. Eu nasci entre dois mundos e, durante muito tempo, vivi dividida entre eles. Cresci numa cidade de descendentes de italianos e não conseguia me ver em outras pessoas, não tinha representatividade.
Isso me marcou muito, é como se eu tivesse que escolher alguns caminhos, apagar alguns traços da minha origem para me adaptar àquela sociedade. Mas descobri que essas memórias dificilmente são apagadas, elas permanecem muito vivas.
Colocar essas memórias, intuições, sonhos, imagens, sonoridades, cheiros, narrativas na arte, e na arte com o público, permite que essa história não fique só em mim, mas que eu consiga também trazer de volta o que foi apagado no/a brasileiro/a e, por que não, em vários habitantes da América Latina que passaram por ditaduras, colonizações exploratórias e que tiveram sua cultura negada.
Portal CENPEC: Para a educação, por que é importante pensar e experimentar o corpo e os gestos cotidianos? E o que seria “decolonizar o corpo”?
CV: Como resultado desses processos de colonização violenta, até hoje vivemos numa monocultura de ideias, padrões culturais e gestos. Uma metáfora significativa é a relação que temos com a terra: temos milho roxo, preto, tigrado, vermelho… milho de todas as cores do arco-íris na América Latina. Mas a gente insiste em plantar só milho amarelo. Isso é simbólico quando pensamos nas ideias, nos padrões.
Existe uma responsabilidade de ser artista no Brasil, e ser artista pode ser também ser educador. Eu tento exercer essa responsabilidade quando minha arte sai da galeria, do ateliê e vai para a sociedade. Eu espero que isso se multiplique. Como a quinoa, na Bolívia, um alimento constituído por minúsculos grãos, mas muito potente. Sozinho, é muito pequeno. Mas a quinoa sempre anda em bando.
A arte em que acredito e pratico conclama as manifestações populares, os ideais, os sonhos. Todos juntos, como os grãos da quinoa, acabam transbordando: crescendo, crescendo, crescendo e colocando abaixo os apagamentos.
Essa é a proposta decolonial na minha obra e meu maior objetivo: deixar de ser eu, Carolina, para ser todos. A arte precisa ser para todos. Todos podem e têm o direito de se desenvolver criativamente. Esses são os objetivos de atuação da arte com a política e principalmente com a vida.
Portal CENPEC: Durante a conversa com os arte-educadores, você falou da distinção entre entender a arte como meio e a arte como fim. Pode falar um pouco sobre isso?
CV: Essa reflexão tem relação com vários fatores da história da arte. Quem trouxe isso à tona é o artista alemão Joseph Beuys, que dizia: todos têm direito à arte e a se desenvolver criativamente. Em sua experiência como professor de escultura, ele trabalhou com pessoas de diferentes perfis, idades e origens: trabalhadores, avós, tios, vizinhos, taxistas, pessoas que exerciam todo tipo de função na sociedade.
Beuys dizia: é isso que traz a diversidade e é disso que é feita a humanidade. Isso é tratar a arte como item de reorganização social, pela qual se liberta o pensamento humano. O objetivo é tornar o cidadão crítico de fato, lembrar que a realidade é feita de harmonia e desarmonia. Não essa estética fascista da arte como somente o belo. A arte também é dor. E a dor também pode ser transmutada. A dor também é matéria.
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