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Basquiat na rede
Saiba mais sobre este pintor que marcou o cenário artístico mundial e confira entrevista com Eleni Nobre sobre cultura pop e representatividade étnico-racial na arte e na escola
- Tamara Castro
“Eu não conheço ninguém que precise de um crítico
para entender o que é a arte.”
Basquiat
Ícone da cultura pop, Jean-Michel Basquiat (1960-1988) foi ativista cultural que se destacou pela mistura de linguagens e referências. Sua obra transita e mescla diversas técnicas e formas de expressão: do graffiti à colagem e à remixagem, passando pela música e pelo audiovisual. Classificada como neo-expressionista, a pintura de Basquiat traz as marcas da cultura pop e das questões políticas e sociais borbulhantes na décadas de 1970 e 80.
Lançada em julho deste ano, a exposição digital organizada pelo estúdio de arte Brant Foundation, em Nova York, possibilita que os internautas conheçam e naveguem pelas obras deste grande artista. Trata-se de uma versão on-line da mostra presencial inaugurada em 2019 e fechada à visitação em razão da pandemia. Composta por 70 obras, a exposição ocupa os quatro andares do estúdio, localizado em Greenwich Village, célebre bairro da contracultura estadunidense.
Estadunidense de origem afro-caribenha, aos 4 anos Basquiat já sabia ler e escrever, e aos 11 anos era fluente em inglês, francês e espanhol. Ainda adolescente, fugiu de casa e abandonou a escola, indo viver com amigos e se sustentando com a venda de camisetas e cartões-postais. Sem formação acadêmica em artes, seu olhar artístico foi despertado por meio das visitas com a mãe ao Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMa).
Suas primeiras intervenções artísticas no espaço público foram os graffitis ou pixos em edifícios em Manhattan, usando o pseudônimo SAMO. Em 1979, formou a banda de rock “Gray”.
Escrita e imagem
“A palavra escrita também ocupa um lugar importante na obra de Basquiat. Telas e outros suportes como portas, muros e geladeiras são preenchidas com jogos de palavras, slogans, frases avulsas, poemas… […] O texto escrito nos remete a anotações em um caderno de rascunho, lambe-lambes, pixos e grafites espalhados pelos muros das cidades, letreiros e luminosos de estabelecimentos comerciais. Essas produções evidenciam o caráter imagético do texto escrito: texto é imagem e imagem também é texto. E lembram as marcas que estudantes de diferentes contextos deixam no espaço escolar: frases, recados e assinaturas estilizadas em carteiras, cadernos e portas de banheiro.”
Leia mais na reportagem do Programa Escrevendo o Futuro.
Por que trazer para a sala de aula referenciais da arte pop e contemporânea como Basquiat? De que maneira as culturas juvenis e a diversidade étnico-racial pode ser apresentada e valorizada na escola? O antropólogo Alexandre Barbosa Pereira, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), reflete:
… cabe à escola propiciar aos jovens a possibilidade de experimentarem diferentes formas de ser jovem e estudante, que estão profundamente atreladas às chamadas culturas juvenis: articulações que os jovens estabelecem com base na produção cultural de massa, com a elaboração de estilos distintivos e a articulação de práticas sociais em grupo ou em rede que se expande pelo espaço urbano.”
Alexandre Barbosa Pereira, Letramentos e culturas juvenis.
Para falar sobre esse tema, conversamos com Eleni Jesus de Souza Nobre. Professora de Arte da Secretaria da Educação do estado de São Paulo, Eleni é doutoranda na área de Cultura, Filosofia e História da Educação na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP), mestra em Artes pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e licenciada em Artes Visuais pela Universidade de Brasília (UnB). Bailarina e performer, é mediadora do curso Arte na Escola Contemporânea (Instituto Arte na Escola).
… é imprescindível pensar no diálogo entre o ensino da arte contemporânea e a cultura visual, exatamente por ser uma abordagem que possibilita navegar por outros mares, como as questões de gênero, racismo e preconceito a partir das relações subjetivas dos alunos e alunas, com seus repertórios artísticos, poética, produção visual e de suas ações no mundo.”
Eleni Nobre
Confira a entrevista a seguir.
Portal CENPEC: Por que apresentar a obra de Basquiat aos estudantes da educação básica?
Eleni Nobre: Há diversificadas razões para levar Basquiat à sala de aula. Comecemos pelo fato de que a arte contemporânea dialoga com o universo dos alunos, logo, os aproxima das potencialidades da arte que não estão centradas em aspectos formais, mas sim nos percursos criativos, que propiciam o diálogo artístico para além de contextos e releituras. No caso de Basquiat, sua criatividade representa rebelião artística e criatividade sem rótulos.
Suas obras são retratos da tragédia urbana do século XX, pincelados e riscados entre telas e paredes, vez que seu trabalho, profundamente reflexivo, é produto de suas vorazes observações do mundo ao redor.
“Não penso em arte enquanto trabalho”, disse ele à escritora Isabelle Graw em 1986. “Tento pensar na vida”. E é esse aproximar a arte da vida que se sobrepõe que se torna potência dialógica e visual em sala de aula.
Portal CENPEC: A arte de rua, a cultura pop e a intersecção de linguagens são elementos da obra de Basquiat. Como as(os) professoras(es) de Linguagens e Códigos podem trabalhar esses elementos em suas práticas pedagógicas?
Eleni Nobre: Há muito a explorar em suas obras. Basquiat é desses artistas com quem devemos nos envolver. Suas inscrições artísticas entre palavras e imagens, baseadas no que lia, ouvia na TV, no rádio ou em lembranças de sua infância, compõem sua arte visual. Remixadas a uma gama de práticas criativas de hip-hop, jazz, letras de estilo selvagem e arte de rua, fazem-nos degustar Basquiat aos pedacinhos, devido à amplitude de informações objetivas e subjetivas nelas contidas. Há sempre o que descobrir!
Por meio de suas obras e de sua biografia, podemos traçar múltiplas perspectivas com os alunos: contextos históricos, artísticos, políticos e sociais no centro do vibrante movimento pós-graffiti de Nova York nos anos 80, o que problematiza também outras relações como as étnicas, por exemplo.
Basquiat era negro, filho de latinos que abandonou a escola aos 17 anos. Muitos fatos de sua história pessoal, presentes também em sua obra, perpassam o cotidiano de nossos alunos e alunas, principalmente do ensino médio, para quem as ruas muitas vezes são mais interessantes que as quatro paredes da sala de aula.
Outro ponto imprescindível, para mim, é pensar no diálogo entre o ensino da arte contemporânea e a cultura visual, exatamente por ser uma abordagem que possibilita navegar por outros mares, como as questões de gênero, racismo e preconceito a partir das relações subjetivas dos alunos e alunas, com seus repertórios artísticos, poética, produção visual e de suas ações no mundo.
Em Basquiat, há muito a se explorar nesse sentido, pela incorporação de vocabulários dos artistas que admirava – gestos abstratos, rasuras e readymades, somando a tudo isso alusões à sua vida nas ruas do Brooklyn e em clubes badalados do centro. Colecionava imagens, palavras e música por onde passava, incorporava diagramas dos livros escolares das namoradas, ingredientes das laterais dos pacotes, sinalização das ruas…
Em uma única pintura, como The Ruffians (1982), misturava acenos ao famoso desenho Erased de Kooning Drawing [Desenho de Kooning apagado], de Robert Rauschenberg (1953), com referências a máscaras africanas e cartuns de sua juventude. Por isso, ao apresentarmos as visualidades de Basquiat que começou sua carreira como artista de rua e grafiteiro nas ruas de Nova York, com obras que fazem declarações políticas, pessoais e sociais, tiramos os alunos do lugar de observadores e incitamos criticidade ante ao próprio universo da arte.
Portal CENPEC: Além de Basquiat, que outros artistas e obras você indica como referências a serem pesquisadas pelas(os) professoras(es) e incluídas na formação docente para a ampliação e descolonização do olhar sobre a arte?
Eleni Nobre: De fato não vemos muito as obras de Basquiat e de muitos outros artistas negros em livros didáticos e cadernos de atividades. Então, as escolhas atravessam também o repertório do arte-educador e onde ele pretende chegar ao apresentar este ou aquele artista. No meu caso, apresentar Basquiat a meus alunos e alunas é intensificar olhares a todos esses diálogos críticos impressos em suas telas, porque ele se constrói a partir disso: das relações étnico-raciais, sociais, políticas e culturais.
Do mesmo modo, é relevante levarmos à sala de aula outras referências de artistas negros e negras, indígenas, e de outras origens além da europeia, se pretendemos, efetivamente, perpassar relações decoloniais na arte.
É fundamental analisar o mundo sob outro ponto de vista para ampliar ideias sobre o que conhecemos como arte contemporânea, vez que ampliamos nossas mentes e repertórios quando expostos às diferentes experiências na arte. Logo, emerge questionar: onde estão os artistas latino-americanos, asiáticos, africanos…, ou seja, os não europeus e estadunidenses, no ensino de arte?
Portal CENPEC: O trabalho com artistas afrodescendentes e ameríndios pode ser um caminho para pôr em prática as Leis 10.639/03 e 11.645/08, que tornam obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena em todas as escolas públicas e privadas? Poderia dar dicas aos/às professores/as que desejam incluir outras referências artísticas e culturais em suas práticas pedagógicas?
Eleni Nobre: Primeiro, nós, arte-educadores precisamos ser abertos a outras perspectivas de ensino que vá além da História da Arte, de obras e artistas canonizados. Eu mesma passei a ter contato com artistas negros contemporâneos quando já estava em sala. Foram processos que me levaram a outros significados de minhas relações com a arte, ao considerar minha etnia e ancestralidade. As artes africanas e aborígenes, com suas simbologias, passaram a me fazer sentido para além da estética, porque potencializaram minhas relações entre arte e vida.
Cito alguns artistas: no Brasil, temos, por exemplo, Rosana Paulino, que, por meio da experiência estética de suas instalações, gravuras, desenhos, esculturas e colagens, questiona o papel há muito tempo oprimido da mulher afro-brasileira.
Entre os(as) artistas indígenas, temos, por exemplo, Jaider Esbell, artista visual, escritor e produtor cultural da etnia Makuxi, originário da Terra Indígena Raposa – Serra do Sol, em Roraima. Seu trabalho enleva a arte ameríndia contemporânea, revelando sua cultura e denunciando os ataques contra seu povo e o meio ambiente.
No exterior, temos Nnenna Okore, negra, australiana criada na Nigéria, cuja carreira como artista, pesquisadora e professora concentrou-se na exploração de processos artísticos que estão ligados ao aprendizado, experiências artísticas, consciência ambiental e práticas sustentáveis.
A pintora cubana Harmonia Rosales, que, apropriando-se de obras de arte clássicas, levanta questionamentos decoloniais e, por meio de pinturas e colagens, reelabora versões dessas obras históricas colocando mulheres negras no centro de suas visualidades.
Sem me esquecer de Arthur Timóteo da Costa, um dos precursores do modernismo no Brasil, Lois Mailou Jones (EUA), Maxwell Alexandre, artista plástico nascido na Rocinha (RJ) que participou da Mostra Histórias Afro-Atlânticas, no Museu de Arte de São Paulo (2018), a paulistana Renata Felinto, Maria Auxiliadora da Silva, artista autodidata que participou da Bienal de 2018, entre tantos outros nomes. Isso se nos restringirmos às artes visuais. Mas não podemos esquecer que corpos negros artísticos também estão na dança, música e teatro, mas ainda são, assim como em todas as esferas sociais, discriminados e subjugados em razão da pintura natural de sua pele.
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