Currículo e educação integral

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Currículo e educação integral

Temática multimídia debate possibilidades de currículos na perspectiva da educação integral e inclusiva. Publicada originalmente no site Educação&Participação (Cenpec)

O currículo é uma tema em constante mutação. Assim como há diferentes concepções de currículo, não existe uma visão acabada do que vem a ser um currículo na perspectiva da educação integral e inclusiva.

Entretanto, ao propor o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens, a educação integral precisa dialogar com propostas curriculares que contemplem ampliação e integração de saberes; território; tempos e espaços; e gestão democrática.

Este material reflete sobre o que, como e por que ensinar, entre outras questões sobre currículo.

O que ensinar, como ensinar, por que ensinar: o que é currículo?

A especialista em currículo e docente da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP) Cláudia Galian (2016) pontua que, no cotidiano, se trabalha com várias concepções de currículo: das puramente técnicas, que consideram currículo apenas como um documento que define os conteúdos a serem ensinados, às que englobam a prática do professor em contato com o aluno e o conhecimento, ou mesmo todas as práticas que acontecem na escola.

No entanto, fato é que “quando nos voltamos à discussão sobre currículo, estamos no âmbito das decisões concernentes a quais conhecimentos devem ser ensinados, o que deve ser ensinado e por que ensinar este ou aquele conhecimento. Diríamos melhor: mais do que ensinado, o que deve ser aprendido e por que aprendê-lo” (PADILHA, 2012).

Ou, nas palavras de Tomaz Tadeu da Silva (2010):

Sendo assim, falar de currículo é falar de uma seleção cultural de conhecimentos, saberes e práticas de ensino-aprendizagem que, produzidos em contextos históricos determinados, precisam ser ensinados pela escola a fim de garantir aos educandos o direito aos conhecimentos, produzidos socialmente, aos quais não teriam acesso por outras vias.”

SILVA, 2010.

Isso, evidentemente, não encerra a questão. Como diz Tomaz Tadeu da Silva, as diferentes teorias do currículo decidem quais conhecimentos precisam ser selecionados e buscam justificar por que “estes” e não “aqueles” devem estar na seleção. Para isso, recorrem a discussões sobre a natureza humana, a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do próprio conhecimento, da cultura e da sociedade, inclusive diferenciando-se entre si na ênfase que dão a esses elementos.

Já o sociólogo Michael Young (2007) defende que é importante haver uma distinção entre currículo e pedagogia. O currículo, segundo Young, encerra o conhecimento poderoso, que é aquele que dota o(a) estudante da capacidade de compreender o mundo de forma mais plena; já a pedagogia inclui, entre outros aspectos, a didática.  Na visão do autor, não cabe, no documento curricular, informar como o professor deve ensinar, pois esse aspecto refere-se ao âmbito do conhecimento profissional do docente. Ainda que, para o professor, não haja essa divisão na prática cotidiana, ela precisa estar clara para quem elabora o documento curricular.

Ora, o fato de existirem diferentes teorias indica que há diferentes posições na discussão sobre o currículo, não somente conceituais, mas também político-sociais e ideológicas, o que lhe confere um caráter dinâmico e temporário. “O currículo, por definição, nunca será definitivo. Nunca se chegará a um currículo que seja o ‘ponto final’”, disse Cláudia Galian, em palestra no Cenpec.


Currículo em processo

Galian adota a concepção de currículo em processo, que evoca o trabalho de José Gimeno Sacristán.

Para Sacristán, o currículo é um processo muito complexo, que envolve múltiplas dimensões e só pode ser compreendido quando se observa a articulação entre elas.

Na visão do autor, o documento curricular é apenas uma dessas dimensões, uma “carta de intenções” que, por sua vez, apresenta escolhas marcadas por relações de poder e que visam à formação de um determinado sujeito. Essas dimensões do currículo, que não esgotam todas as possibilidades, são:

Currículo prescrito: é o documento com a proposta curricular em si. O currículo prescrito tem um significado prático, uma vez que vai pautar a alocação de recursos e a produção de materiais, criar uma base para o trabalho do professor ou educador e, assim, influenciar as demais dimensões.
Ele também tem um significado simbólico, porque resulta de discussões, embates e interesses diversos – e, assim, vai evidenciar aqueles que tiveram mais força para se expressar na sua formulação.

Currículo em ação: compreende o que acontece, na prática, entre o professor e os alunos. É o conjunto de escolhas que o professor ou educador faz para desenvolver suas práticas de ensino e que está marcado pelas dimensões anteriores.

Currículo planejado:  produção dos materiais pedagógicos com base no currículo prescrito e que atende a outros interesses e interpretações, notadamente mercadológicos e das editoras: livros didáticos, guias curriculares etc.

Currículo organizado: conjunto de escolhas que a escola faz sobre a interpretação do documento curricular e do currículo planejado. Como dividir o tempo? Como utilizar espaços? Como localizar e trazer para a escola saberes da comunidade?

Currículo avaliado: conjunto dos conhecimentos para garantia da aprendizagem. Compreende avaliações escolares e externas. Verifica se o currículo prescrito “funcionou”. Assim, o currículo avaliado tende a influenciar o currículo prescrito.

> Em 2015, o Cenpec e a Fundação Victor Civita publicaram um estudo que analisou 23 currículos prescritos no Brasil e detectou forte influência das políticas de avaliação. Acesse.


Que sujeito queremos formar?

Como essas particularidades do currículo se relacionam à educação integral? O currículo pode comportar uma dimensão filosófica que reflete sobre o sujeito que se quer formar e sobre qual é o papel da escola para que isso aconteça.

Na perspectiva da educação integral, busca-se garantir o pleno desenvolvimento de crianças, adolescentes e jovens e se reconhece que isso só é possível quando se observam diferentes dimensões: física, afetiva, cognitiva, ética, estética e política, em uma proposta multidimensional e integrada. (Veja mais na temática Educação integral: um conceito em busca de novos sentidos.)

Essa opção pelo pleno desenvolvimento e por uma ampliação de repertórios não é neutra: reconhece crianças, adolescentes e jovens como sujeitos de direitos e opta pela cidadania, um conceito que, segundo Jaime Pinsky (2003), se traduz pelo exercício de direitos civis, políticos e sociais – direito à vida, à liberdade, à propriedade, à igualdade perante a lei; direito a participar no destino da sociedade; direito à educação, ao trabalho, ao salário justo, à saúde, a uma velhice tranquila, entre outros.

Para a educação integral, o sujeito deve ser considerado em sua integralidade, inserido na sociedade sob uma perspectiva cidadã e autônoma, de exercício de plenos direitos. Uma discussão que antecede a proposta curricular. Dessa forma, uma primeira relação que se estabelece entre educação integral e currículo está nesta questão: que sujeito se quer formar?  

Cláudia Galian comenta esse ponto no depoimento abaixo.

Uma proposta em construção

Feita a opção por uma educação integral para formar um sujeito de direitos, cidadão e autônomo, cabe indagar quais conteúdos, saberes e práticas precisam ser contemplados em uma proposta curricular que objetiva o desenvolvimento desse sujeito.

Para a pedagoga e ex-secretária de Educação de Diadema (SP) e Embu das Artes (SP) Lucia Couto, a educação integral seria, em si mesma, “um conceito, uma nova abordagem curricular. Essa abordagem sintetiza o que queremos para uma sociedade”. Nesse sentido, concordamos que não cabe falar de currículo na educação integral ou para a educação integral, mas falar de currículo e educação integral.

No currículo considerado sob a perspectiva da educação integral, podem caber tanto os conteúdos expressos em propostas de currículo prescrito quanto o currículo oculto: aquele que está presente no cotidiano escolar sob a forma de aprendizagens não planejadas e que resulta das relações interpessoais desenvolvidas na escola, da hierarquização entre administradores, direção, professores e alunos e da forma como os alunos são levados a se relacionar com o conhecimento (SANCHOTENE, 2006).

Podem caber ainda as atividades oferecidas, tempo e frequência com que são ofertadas, as instituições envolvidas, os espaços utilizados na aprendizagem e os espaços de discussão e de gestão em uma arquitetura contextualizada, singular e “pertinente quando as escolhas curriculares são coerentes com as demandas e necessidades das crianças e dos adolescentes do território e não foram determinadas apenas pela disponibilidade de recursos existentes” (CENPEC, 2011, p. 92).

Podem caber a abertura da escola a novos conhecimentos e sua integração em uma proposta de democratização dos conhecimentos. Finalmente, podem caber todas as demais dimensões do currículo definidas por Sacristán e citadas por Cláudia Galian.

Não existe uma fórmula única de ofertar educação integral. Portanto, também não existe uma “proposta curricular integral” única, fechada. Assim como o conceito de currículo em si, o currículo na perspectiva da educação integral é, também, uma proposta em construção.

História do currículo e a perspectiva da educação integral

Conheça o histórico desse debate no vídeo Currículo e educação integral: fluxos e refluxos na história do Brasil.

Estar em construção significa que não há pressupostos?

O currículo na perspectiva da educação integral está em construção – mas isso não significa ausência de pressupostos.

Na educação integral, os diversos campos de aprendizagem se complementam, uma vez que, na vida cotidiana, se mesclam educação intencional (aprendidos na escola e nas organizações da sociedade civil – OSCs) e não intencional (vividos no cotidiano).

Para que essa complementação ocorra, é necessário tanto ampliar tempos e espaços de aprendizagens quanto integrar os diferentes campos.

Guia Políticas de Educação Integral, por exemplo, defende que a chamada parte diversificada do currículo – que constitui a oferta de conteúdos condizentes com as necessidades dos diferentes territórios – se integre às aprendizagens já oferecidas, constituindo um currículo uno e organizado.

Ora, isso somente é possível em um contexto de gestão democrática,  porque é necessário que os profissionais envolvidos tenham alguma forma de comunicação, diálogo e troca, além de evitarem hierarquizar as áreas do saber e reconhecerem a importância de todas as ações desenvolvidas com crianças, adolescentes e jovens em seu cotidiano. Na verdade, o ideal é mesmo trazer essas crianças, adolescentes e jovens, bem como a comunidade e as famílias, para a discussão sobre o currículo.

Ampliação e integração de saberes; território; ampliação e qualificação dos tempos e espaços; e gestão democrática constituem, portanto, aspectos que devem ser considerados em propostas curriculares na perspectiva da educação integral. É o que você verá nos blocos a seguir.


Território


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Gestão democrática


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Ampliação e integração de saberes


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Tempos e espaços


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Em debate

O que cabe no currículo

Não existe consenso sobre o que cabe ou não cabe no currículo. Para alguns, o currículo é apenas um documento, uma listagem. Para outros, em oposição, engloba todas as práticas que acontecem, por exemplo, dentro da escola – ou, se o foco for a educação integral e sua perspectiva de ampliação de espaços, também o que acontece fora da escola, em outros espaços educativos.

O currículo responde a uma seleção de conhecimentos e à tomada de uma postura, que pode tanto restringir o acesso a esses conhecimentos como, de acordo com o que defende a educação integral, democratizá-los.

Finalmente, há, na discussão sobre o currículo, aquilo que está expresso e aquilo que está oculto, assim como temas que respondem ao mundo contemporâneo e que ora entram nas propostas curriculares, ora são retirados, como as questões de gênero, raça e etnia, sexualidade etc.

Ouça o comentário de Cláudia Galian e reflita: para você, o que uma proposta de currículo na perspectiva da educação integral deve englobar?

Qual currículo?

Discutir currículo é discutir escolhas. Significa entender que haverá vozes que serão ouvidas e vozes caladas ou distorcidas. Significa também compreender que uma proposta curricular sempre pautará um tipo de sujeito que se quer formar.

Dito isso, qual proposta de currículo devemos defender na educação integral? Um currículo flexível para o Ensino Médio, por exemplo, ou um currículo nacional comum?

As propostas contidas em documentos como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), o Plano Nacional de Educação (PNE) e os macrocampos do Mais Educação são suficientes? Assista ao que diz Cláudia Galian sobre as relações de poder e comente.

> A segunda versão da BNCC trouxe avanços no sentido de garantir uma perspectiva integral à educação básica. Entre as alterações, destacam-se a definição de objetivos de aprendizagem e desenvolvimento, que mencionam a formação humana integral,  e a organização da Base por etapas. Saiba mais.


Entre o querer e o fazer

A discussão sobre currículo e educação integral não pode ser dissociada das condições objetivas que se encontram no território, tampouco daquelas que estão no interior da unidade escolar.

Embora, como vimos, seja necessário observar o potencial educativo do território, por vezes, essas mesmas condições também se traduzem em dificuldades e desafios: falta de acesso a bens culturais, problemas de infraestrutura da escola, formação insuficiente de professores etc. – e, no contexto político atual, corte de verbas.

Como lidar com esses desafios? Como transitar da proposta de um currículo ideal na perspectiva da educação integral para um currículo possível diante das condições materiais? A proposta curricular sozinha pode dar conta desses dilemas?

Como enfrentar o desafio do baixo investimento na educação? É possível encontrar propostas curriculares criativas que consigam driblar as dificuldades financeiras e de infraestrutura e se traduzam em melhorias na aprendizagem dos alunos? Ouça o comentário da professora Cláudia Galian e entre nesse debate.

 A voz dos estudantes

“O currículo é monopólio dos especialistas, e a pedagogia é monopólio dos pedagogos. A alienação começa com os professores: se você pergunta para o professor por que ele ensina o que ele ensina, ele não faz a menor ideia.”

A frase da educadora e linguista Rosa-María Torres Del Castillo, proferida no Seminário Internacional sobre Inclusão de Adolescentes e Jovens no Ensino Médio, em Belo Horizonte (MG), externa a dificuldade de dar voz a professores, educadores – e educandos – no currículo. “A Base Curricular está sendo discutida e não podemos participar diretamente dessa discussão”, diz o jovem José Otávio Pantoja de Azevedo.

Há propostas que buscam esse diálogo, como os grupos de escuta realizados em Itabira (MG) no âmbito da assessoria para o Plano de Educação Integral, realizada pela Itaú Social com coordenação técnica do Cenpec, em parceria com a Secretaria de Educação. Paralelamente, a plataforma Educação&Participação realizou um especial com as demandas dos jovens presentes em Belo Horizonte. Como dar voz aos estudantes?


Quem pauta o currículo

“Atualmente, a Finlândia está refazendo seu currículo escolar, e eles têm os melhores resultados no teste PISA […]. Quais são os objetivos da mudança? Dar mais sentido à aprendizagem da criança: na Finlândia, eles sabem que os estudantes estão mostrando maiores níveis de insatisfação.”

A palestra de Rosa-María Torres Del Castillo no Seminário Internacional sobre Inclusão de Adolescentes e Jovens no Ensino Médio trouxe experiências de outros países, como a que acontece na Finlândia, que, não obstante os bons resultados em avaliações internacionais, rediscute seu currículo.

No Brasil, a professora Cláudia Galian destaca os riscos de alguns posicionamentos que procuram pautar o currículo nos resultados adquiridos nesses testes e em avaliações internas.

Há outros, como aqueles que procuram atender tão somente o mercado de trabalho, ou que respondem apenas aos conteúdos interpretados e distribuídos nos materiais didáticos, a partir das expectativas das editoras. Afinal, quem vem pautando a discussão de currículo e educação integral? Ouça o comentário e deixe sua opinião.

Currículo e redução das desigualdades

“É preciso considerar que a educação integral pode ser uma oportunidade estratégica para promover a equidade no contexto da educação brasileira”, diz  a coordenadora técnica do Cenpec, Maria Amabile Mansutti. A professora Cláudia Galian comenta que a escola, em particular, tem um papel na redução das desigualdades, ainda que não se possa cobrar dela a resolução de todas, uma vez que já está inserida numa sociedade desigual, que em muito extrapola seus muros e seu alcance.

Mesmo assim, a instituição escolar “pode muita coisa” e, para a professora da USP, uma das maneiras pelas quais ela pode atuar na redução das desigualdades é por meio do currículo.

Considerar, numa proposta curricular, que os alunos vêm de contextos muitos diversos rompe ainda com uma noção errônea de meritocracia: a de que, bastando apenas o aluno se esforçar, ele tudo pode.

Como uma proposta de currículo e educação integral pode ser pensada para reduzir desigualdades não apenas socioeconômicas, mas também cognitivas, que subsistem entre os alunos e refletem o contexto social de onde eles vêm?

Vídeos: mais sobre currículo e educação integral

Referências bibliográficas


Créditos

Texto e conteúdo: João Marinho de Lima Neto e Vanessa Nicolav
Orientação: Solange Feitoza Reis e Julio Neres
Edição: Marcia Coutinho R. Jimenez
Vídeo: Vanessa Nicolav
Arte e pesquisa de imagens: Vanessa Nicolav, Thiago Luis de Jesus e Suélio Victor Reis Nunes e Silva
Leitura crítica Maria Amabile Mansutti, Alexandre Isaac e Guillermina Garcia


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