Desafios para a volta segura às aulas: avaliação diagnóstica
Entender o propósito da avaliação, pensar nas habilidades priorizadas e elaborar o instrumento diagnóstico são alguns dos pontos a serem observados
Por Stephanie Kim Abe
Pontos de atenção
A avaliação diagnóstica inicial deve identificar as dificuldades dos(as) estudantes e direcionar o planejamento inicial. Ela não traz as causas dessas dificuldades e não deve ser utilizada para atribuição de nota.
É preciso tomar cuidado com a seleção e complexidade das perguntas e com as condições de aplicação do diagnóstico, para que reflita a realidade da aprendizagem discente.
Com base nos resultados, a gestão escolar pode pensar a formação docente e monitorar a evolução dos(as) estudantes, e os(as) educadores(as) podem planejar as atividades pedagógicas.
Em Desafios para a volta segura às aulas, abordamos questões centrais neste momento de reabertura das escolas após tantos meses de ensino remoto ou híbrido por causa da crise sanitária.
Nos municípios em que os protocolos de segurança foram implementados e a infraestrutura das escolas adaptada para o retorno às aulas presenciais, o olhar da gestão volta-se para dois desafios muito importantes: o acolhimento dos(das) estudantes e a avaliação diagnóstica.
Alguns dedicam as primeiras semanas de retorno presencial ao acolhimento – caso de Aripuanã, no noroeste de Mato Grosso, e de Ilhabela, litoral norte de São Paulo. Outros, como Barra do Chapéu, no interior paulista, os dois processos acabam acontecendo ao mesmo tempo, já nas primeiras semanas de aula.
O motivo dessa priorização é claro: a pandemia impactou gravemente não só a aprendizagem de estudantes de todo o mundo, mas também sua estrutura emocional, já que sentimentos como luto, medo, insegurança e ansiedade têm sido comuns desde o começo do ano passado.
Assim como ouvir as experiências das crianças e adolescentes nesse período e abrir espaço para o diálogo ajudam a readaptação e o acolhimento no espaço escolar, é importante fazer um diagnóstico que mostre o que foi de fato aprendido pelos(as) estudantes com as atividades remotas para poder planejar estratégias pedagógicas que lidem com as principais dificuldades.
É o que Alexandre Soares Bastos, gestor da Escola Municipal Prefeito Leonardo Reale de Ilhabela (SP), chama de “ponto de partida”:
Por mais que a gente saiba que uma simples prova possa de repente dar um resultado impreciso, ou não tão preciso, pois não considera outras variáveis, a gente precisava criar um instrumento que nos permita entender qual o nosso ponto de partida e refletir sobre para traçar um caminho de ação mais concreto.”
Alexandre Soares Bastos
Informação e formação pelo direito à educação
Para apoiar educadores(as), gestores(as) e redes de ensino neste momento complexo, sistematizamos nossas produções sobre essa temática desde o início da pandemia no Brasil.
Na construção e aplicação de uma avaliação diagnóstica inicial, há muitos cuidados a serem tomados para garantir que ela traga resultados consistentes que apoiem o planejamento pedagógico de retomada das aulas presenciais. Listamos, a seguir, alguns desses pontos.
1. Clareza sobre o propósito da avaliação diagnóstica
Por uma questão de cultura, é comum que familiares e estudantes, ao ouvir a expressão “avaliação”, inevitavelmente pensem em nota e aprovação/reprovação.
Por isso, para Érica Catalani, coordenadora do programa Apoio Pedagógico Complementar pelo Cenpec, é imprescindível que os(as) gestores(as) e professores(as) deixem claro qual o objetivo da aplicação desse instrumento e por que é de suma importância que todos(as) os(as) estudantes participem desse processo:
Existe um problema muito sério com a comunidade escolar em geral, que entende que a avaliação é aquele momento em que você tem que mostrar eficiência e resultado. Que você precisa mostrar o seu melhor, porque ela vai gerar uma classificação por desempenho. A avaliação diagnóstica tem outra função e, portanto, não deve ser usada como atribuição de nota. Se as pessoas não a utilizarem para refletir de modo claro o que sabem e o que não sabem, as suas dificuldades, ou deixarem que outras pessoas (como os pais) a realizem em seu lugar, então os resultados não refletirão a realidade.”
Érica Catalani
É por receio desse entendimento sobre a avaliação que muitos(as) docentes preferiram aplicar o diagnóstico inicial de forma presencial, e não remota. Em Aripuanã (MT), por exemplo, município que integra a Parceria pela Valorização da Educação (PVE), esse instrumento deve ser aplicado na semana que vem, a partir da terceira semana de retomada das aulas presenciais, em sistema híbrido.
Para Ermes José dos Reis, secretário municipal de educação de Aripuanã (MT):
Os(As) professores(as) começaram a perceber que alguns pais estavam ajudando os(as) filhos(as) muito além do que deveriam. Muitos não têm a paciência que o(a) professor(a) tem no ensino-aprendizagem, e acabavam realizando a tarefa pelos(as) estudantes. Por isso optamos pela avaliação presencial, para diagnosticar de fato o que deixaram de aprender.”
Ermes José dos Reis
Aos(às) estudantes que optaram por seguir as aulas no modelo remoto, as gestões têm pedido para que compareçam às escolas pelo menos no dia da avaliação. No caso de Ilhabela (SP) e Barra do Chapéu (SP), essa condição tem servido como convite e incentivo para que familiares e estudantes receosos(as) dos perigos de contaminação possam conhecer os protocolos e o dia a dia escolar com distanciamento social e se sentir mais seguros(as) quanto a um possível retorno.
Além de entender o propósito da avaliação diagnóstica, Érica lembra que ela não é um momento único, mas que o ato de avaliar está presente em diferentes etapas do planejamento dos(as) educadores(as):
Estamos falando de uma avaliação diagnóstica que vai direcionar o planejamento inicial. Mas isso não significa que, fazendo essa avaliação nesse momento inicial, se possa esquecer que toda atividade pedagógica tem sempre um levantamento de conhecimentos prévios. A atividade e a intervenção pedagógica só são efetivas se partem desses saberes que as crianças já construíram.”
Érica Catalani
2. Escolha das habilidades prioritárias
Antes mesmo de elaborar essa avaliação, as gestões educacionais já passaram pelo processo de priorização curricular, levando em conta as competências e os objetivos de aprendizagem previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e nos currículos escolares. Assim, elas têm claro quais são as habilidades prioritárias que gostariam de compreender se os(as) seus(suas) estudantes aprenderam ou não.
Uma é pensar em todas as habilidades que deveriam ter sido consolidadas no ano anterior, condensá-las no trabalho diagnóstico, e oferecer aos(às) estudantes as possibilidades de desenvolver as que não foram aprendidas. A outra forma é verificar quais as habilidades que estão previstas para serem desenvolvidas no ano em curso e construir o instrumento diagnóstico inicial baseado nos conhecimentos prévios que essas habilidades exigem.”
Érica Catalani
O município de Barra do Chapéu, integrante do Letra Viva Alfabetiza, projeto que desenvolve formação em rede para qualificar processos e práticas de alfabetização e letramento, escolheu o primeiro caminho. Como explica Sandra Maria Araújo, supervisora de ensino do município:
Nós utilizamos a avaliação diagnóstica de hipótese de leitura do projeto Letra Viva desde 2019. Por conta da pandemia, nós mudamos a aplicação da prova. Por exemplo, os estudantes do 4º ano realizaram a avaliação referente ao 3º ano, já que no ano passado praticamente não cursaram essa série na modalidade remota.”
Sandra Maria Araújo
Como sua função é identificar o que os(as) estudantes aprenderam ou não nesse último um ano e meio sem aulas presenciais, a avaliação diagnóstica inicial abrange um leque mais amplo de conhecimentos e habilidades a serem diagnosticadas. A extensão da prova, portanto, deve ser pensada com cuidado. Ao mesmo tempo que não pode ser muito longa, ela precisa contemplar os diferentes níveis de complexidade de um mesmo tema.
Érica Catalani defende:
Não podemos achar que uma habilidade pode ser contemplada por uma única tarefa cognitiva. Às vezes, precisamos de uma ou mais questões para aferir uma habilidade, garantindo que haja uma proposta mais simples, para que estudantes com menor apropriação possam responder e manifestar os seus conhecimentos, e outra mais complexa.”
Érica Catalani
O Apoio Pedagógico Complementar, programa que Érica coordena, também tem fornecido um instrumento para o diagnóstico das dificuldades. É uma prova padronizada, que não deve ser usada isoladamente pelas redes de ensino, mas complementada com outras avaliações construídas pelos(as) professores(as).
3. Identificação das dificuldades para planejar estratégias pedagógicas
Em Barra do Chapéu, o ano letivo de 2021 começou no mês de fevereiro de forma remota. Em maio, as escolas foram reabertas de forma gradual, com até 35% dos(as) estudantes, e de forma híbrida. Mesmo com poucos(as) estudantes tendo realizado a avaliação diagnóstica inicial no começo do ano, Sandra e a equipe da secretaria já puderam identificar muitas defasagens:
Como temos utilizado a mesma prova, podemos comparar com os anos anteriores. Vemos que os(as) estudantes esqueceram muita coisa, como o alfabeto, no caso dos(das) alunos(as) que estão em fase de alfabetização, no 1º ou 2º ano. Depende muito do convívio em casa, se os pais os estimularam durante as aulas remotas ou não. Vamos ter que retomar do início com muitos deles, principalmente aqueles da zona rural.”
Sandra Maria Araújo
Em geral, os municípios definiram as estratégias pedagógicas para lidar com as defasagens de aprendizagem. Em Barra do Chapéu, a secretaria decidiu por realizar o reforço escolar no contraturno. Já Aripuanã vai concentrar esforços na aceleração da aprendizagem no contraturno, com um(a) professor(a) articulador(a) dedicado ao período, e na recuperação com o(a) educador(a) em sala de aula.
De acordo com a Pesquisa Undime educação na pandemia, divulgada em julho, pouco mais de um terço das mais de 3,3 mil redes de ensino municipais respondentes têm adotado as aulas de reforço como estratégia pedagógica para o ano letivo de 2021. A avaliação diagnóstica de lacuna de aprendizagem tem sido utilizada por 72% delas.
Para Érica Catalani, as estratégias a serem adotadas dependem muito de uma análise detalhada dos resultados da avaliação diagnóstica inicial. Ela lembra que o diagnóstico só identifica qual a dificuldade do(a) estudante, mas não traz as causas de tal defasagem. O próximo passo é analisar os resultados à luz de outras evidências e dados para então decidir qual a melhor abordagem pedagógica a ser seguida:
Posso ter uma criança com dificuldade no sistema de fração porque a professora tirou licença no período em que esse conteúdo seria ensinado. O encaminhamento para essa situação é diferente daquele de uma criança que foi submetida ao processo de ensino e mesmo assim apresenta dificuldade. Nesse caso, eu posso mudar a forma de ensinar, oferecer outros recursos ou materiais, como atividades recreativas ou materiais manipulativos e outras experiências mais relacionadas ao seu cotidiano. Por isso, a intervenção depende desse olhar investigativo sobre a dificuldade detectada no instrumento diagnóstico pelas pessoas que estão mais próximas do processo educativo dessa criança. Não tem uma receita pronta.”
Érica Catalani
Os resultados da avaliação também serão úteis, de formas distintas, para educadores(as) e gestores(as). Para o corpo docente, eles servem para pensar a intervenção direta com os(as) estudantes, tendo em vista as habilidades que eles(as) precisam desenvolver. A direção e coordenação escolar podem analisar esses resultados para pensar materiais pedagógicos, organizar as turmas no contraturno ou a recuperação paralela e a formação no horário coletivo etc.
Para a secretaria, o olhar para o diagnóstico de todas as escolas da rede pode dar pistas e informações valiosas para pensar o suporte pedagógico a ser implementado na formação docente:
Eu posso verificar que temos uma grande dificuldade de alfabetização, que está se estendendo para o 4º ou 5º ano. Então eu preciso, de alguma forma, proporcionar para os educadores dessas séries materiais sobre alfabetização e oportunidade adicional aos(às) estudantes, como atendimento no contraturno.”
Érica Catalani
4. Todo mundo deve e pode estar envolvido
Em Barra do Chapéu, além das avaliações da secretaria, são aplicadas as sondagens, diagnósticos realizados pelos(as) próprios(as) educadores(as). Em Ilhabela, a mesma coisa: além de aplicar um instrumento diagnóstico produzido pelos(as) docentes da rede, também foi realizada uma avaliação do estado de São Paulo. “Ela nos trouxe outra ferramenta para nos desdobrar e entender o processo que os(as) estudantes estavam inseridos no campo cognitivo”, relata o gestor Alexandre Soares Bastos.
Em Aripuanã, a elaboração do diagnóstico inicial envolveu diversos atores da comunidade escolar, como professores(as), gestores(as), coordenadores(as) e até o Conselho Municipal de Educação (CME).
Como se pode perceber, não há uma regra sobre quem deve pensar ou elaborar esse diagnóstico inicial. Érica Catalani acredita que o ideal é que a secretaria de educação coordene todo o processo, garantindo a participação e os olhares de quem está na ponta. Mas quando esse processo não é liderado pela secretaria, a escola e o(a) próprio(a) educador(a) têm o direito e a responsabilidade de fazê-lo.
Quanto mais envolvimento da Secretaria e da gestão da escola, mais a gente percebe o compromisso das esferas escolares na garantia do direito de aprendizagem dos(as) estudantes, entendendo que o(a) professor (a) não é o(a) único(a) responsável pela efetivação desse direito.”
2 pensamentos sobre “Desafios para a volta segura às aulas: avaliação diagnóstica”
Todos somos responsáveis pela aprendizagem dos alunos. O professor é o protagonista desse processo, mas não deve ou deveria ser o único responsável por uma educação de qualidade. Há outros profissionais que precisam estar nessa parceria como assistente social e psicólogo. O que temos no momento não é suficiente para atender a demanda. No convívio social, a aquisição de conhecimento, apesar de constante, é incompleta em formar o indivíduo para vivência em sociedade. Ela é complementada pelo processo de ensino e aprendizagem desenvolvido no convívio escolar. Professor como protagonista nesse processo de busca pelo conhecimento a ser desenvolvido no aluno, e assim feito, depende do próprio aluno e outras parcerias para que o processo de aprendizagem seja realizado com sucesso. Daí a importância desses outros profissionais nesse processo. Professor (a) não deve sair na busca ativa desses alunos infrequentes. Há outros alunos que estão ativos e são com essas ativos que deve investir, já casos omissos não cabem aos professores essas responsabilidades. Faz se necessário sim e pra já, envolvimento de outras parcerias nessa busca. Enquanto não houver essa parceria, avaliação será somente uma competição para medir resultados.
Bom dia, professora Helena. Concordamos com suas considerações de que, embora as/os professoras/es sejam co-protagonistas, junto com as/os estudantes, no processo educativo, é fundamental entender a educação como uma construção que envolve a participação ativa de muitas pessoas e setores da sociedade, especialmente se adotamos a perspectiva da educação integral e inclusiva e se temos em mente a complexidade envolvida no enfrentamento das desigualdades educacionais em nosso país. Muito obrigada pelas suas reflexões, professora. As percepções de vocês que estão no dia a dia da escola são fundamentais para seguirmos na luta por uma educação de qualidade com equidade para toda/a estudante.
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