Letra móvel: uma experiência alfabetizadora em contexto remoto

-

Letra móvel: uma experiência alfabetizadora em contexto remoto

Conheça os relatos de quem viveu essa iniciativa da Comunidade Cenpec e como ela tem impactado educadoras e famílias de estudantes em alfabetização

Por Stephanie Kim Abe

Resumo

    O projeto Letra Móvel, desenvolvido pela Comunidade Cenpec em parceria com a Fundação Tide Setubal, acontece desde abril de 2020 com estudantes do 1º ano do ensino fundamental de uma escola estadual da periferia de São Paulo. O objetivo foi apoiar essas crianças em alfabetização e letramento por meio de chamadas de vídeo de WhatsApp durante a pandemia. ·

    A cada encontro, que ocorriam duas vezes por semana sempre com a presença de um familiar, as alfabetizadoras voluntárias realizavam atividades e brincadeiras, como leitura de diferentes gêneros literários, com o objetivo de introduzir as crianças aos usos sociais da língua escrita. ·

    Com o avanço do projeto e a retomada gradual das aulas presenciais, foram criadas duas novas frentes de trabalho: uma de apoio às famílias no retorno às escolas, e outra de formação das educadoras alfabetizadoras do 1º, 2º e 3º ano da escola. ·

    As crianças, que no começo do projeto não conheciam as letras do alfabeto, foram caminhando no seu ritmo e hoje se encontram alfabetizadas ou muito perto disso. ·

    A experiência de “alfaletrar” em contexto de aprendizagem móvel tem sido bem-sucedida. A iniciativa traz importantes reflexões sobre a relação da escola com a família e sobre como garantir condições, principalmente entre as famílias mais vulneráveis, para que todas as crianças tenham seu direito de aprender assegurado.

    Saiba mais na reportagem a seguir.

Quando a escola de Maria Eduarda fechou devido à pandemia, no começo de 2020, a avó Telma Francisca dos Santos precisou começar a acompanhar as atividades escolares da neta, então matriculada no 1º ano do ensino fundamental. Como para muitas famílias brasileiras que se encontraram nessa situação, esse começo foi muito difícil. Telma relata:

Eu parei de estudar na 5ª série, então imagina você ter que alfabetizar uma criança de 6 anos que tinha acabado de entrar pra escola? Eu me vi em desespero, entrei em parafuso e chorei muito.”

Telma Francisca dos Santos

Elas passaram alguns meses sem participar das atividades encaminhadas pela escola e veiculadas pelo Centro de Mídias – até que Maria Eduarda começou a ser atendida pelo projeto Letra Móvel. Telma conta como foi esse primeiro contato e a importância dessa iniciativa para ela e para a sua neta:

Foto: arquivo pessoal

A professora Alice me ligou e me contou sobre o projeto, que se quiséssemos participar a minha neta teria o acompanhamento dela, paralelo à escola, para ajudar na alfabetização. Aceitamos e então ela passou a ligar duas vezes por semana, por chamada de vídeo, quando ensinava a ler o silabário e os números. Depois a gente conversava para eu poder dar continuidade na dinâmica daquela semana, e ela me aconselhava e me incentivava a seguir as atividades da escola. Foi quando eu consegui ter forças e ver que eu não estava sozinha nessa jornada – e quando a minha casa virou uma sala de aula.”

Telma Francisca dos Santos
Menina escrevendo em caderno
Maria Eduarda fazendo atividades. Foto: arquivo pessoal

Telma passou a fazer cartazes de cartolina com as letras e os numerais, e a colar na parede, na porta, no quarto, na sala. Conforme Maria Eduarda avançava, ela mudava a cartolina, colocava outras sílabas, outras palavras. Tudo o que tinha dentro de casa passou a ser motivo para incentivar a neta a brincar, cantar, identificar e aprender as letras e as palavras. A avó também relia as histórias que eram contadas pela professora Alice durante as chamadas de vídeo.

Foram meses de muito trabalho e angústias, até o momento em que ela comprovou o quanto a neta tinha avançado:

Foi um dia em que eu estava meio cansada e nervosa e decidi tomar banho. Ela chegou na porta do banheiro e falou assim: ‘vó, quando eu fico nervosa ou não entendo uma lição, a professora Alice lê pra mim, pra me deixar calma, então eu vou ler pra você pra te acalmar’. Eu falei assim: ‘mas você ainda nem aprendeu a ler’. E ela disse: ‘eu já sei ler’. Então ela pegou o livro de história e começou a ler. Foi uma alegria que não tem explicação! Eu ria, eu chorava, eu abraçava… Foi um sonho realizado!”

Telma Francisca dos Santos


Apoio à aprendizagem remota

A professora Alice a quem Telma se refere é Maria Alice Junqueira, especialista em alfabetização e letramento do Cenpec que, até agosto deste ano, coordenava as oito voluntárias alfabetizadoras que participavam do projeto Letra Móvel.

Desenvolvido pela Comunidade Cenpec em parceria com a Fundação Tide Setubal, o projeto iniciou-se em abril de 2020 com a proposta de apoiar a alfabetização e o letramento da turma do 1º ano do ensino fundamental da Escola Estadual Prof. Pedro Moreira Matos, localizada no Jardim Lapenna, distrito de São Miguel Paulista, na zona leste de São Paulo (SP). A professora dessa turma entrou em licença-maternidade no início da pandemia.

O apoio se daria por videochamadas pelo aplicativo WhatsApp, duas vezes por semana, com cerca de 50 minutos cada. Era requisito para participação no projeto que um adulto acompanhasse as ligações, para apoiar a criança a organizar os materiais, entender as atividades e compreender a forma como as educadoras do projeto trabalhavam.

As famílias de todas as 30 crianças da turma foram contatadas, mas apenas 9 aderiram ao projeto, seja por falta de conexão em casa ou pela indisponibilidade de acompanhar as crianças durante as chamadas de vídeo. Dessas, três se mudaram para outros estados com as suas famílias no meio do projeto, mas continuaram com os atendimentos. Maria Alice explica:

Maria Alice Junqueira
Foto: arquivo Cenpec

No início, a ideia não seria alfabetizar as crianças, pois acreditávamos que a pandemia duraria pouco tempo, então pretendíamos ajudar as crianças a dar início à alfabetização, instigando-as a refletir sobre a língua e a linguagem até que as aulas presenciais retornassem, Porém, ao longo do isolamento social, fomos caminhando e algumas crianças foram se alfabetizando. Mesmo aquelas que ainda não finalizaram o processo estão bem perto de se alfabetizar.”

Maria Alice Junqueira

Saiba mais sobre como surgiu o projeto Letra Móvel e a Comunidade Cenpec

Com o retorno gradual das aulas presenciais desde o começo de 2021 e o avanço das crianças no processo de alfabetização, as voluntárias começaram um processo também gradual de desligamento das(os) estudantes do projeto, para que elas(es) possam se dedicar às aulas presenciais e se adaptar à rotina de ensino híbrido. Ao mesmo tempo, foram abertas duas outras frentes de trabalho: uma de formação das educadoras alfabetizadoras do 1º, 2º e 3º ano da escola, e outra de apoio às famílias no retorno às escolas.


Formação das professoras alfabetizadoras

No começo do ano letivo de 2021, foram as(os) próprias(os) estudantes, agora no 2º ano do ensino fundamental, que informaram a professora Simone Rodrigues Soares que elas(es) tinham outras “professoras” desde o ano passado, com nome de Marlene, Alice, Sonia, Patrícia, Elisa, Ariana, Regina – as voluntárias do projeto Letra Móvel.

Foto: arquivo pessoal

Ao mesmo tempo, uma das voluntárias já entrou em contato comigo e com a nossa coordenadora, e nos explicou sobre o projeto. Sugeriu de marcarmos um encontro. Como vimos que as crianças que tinham essas aulas gostavam demais e as próprias mães nos falaram que elas ajudaram muito na aprendizagem delas, nós nos interessamos em saber mais e ter formações com as voluntárias.”

Simone Rodrigues Soares

Além da coordenadora pedagógica, participam dos encontros quinzenais de formação on-line as oito professoras do 1º, 2º e 3º ano do ensino fundamental da escola Pedro Moreira. A cada encontro, é relatado um episódio que as formadoras voluntárias viveram nesse um ano e meio de trabalho no Letra Móvel em atendimento remoto às crianças, mostrando a metodologia de alfabetização do projeto e também os percalços e as lições aprendidas nesse contato tão próximo com estudantes e suas famílias.

Quem coordena as formações do Letra Móvel é Sonia Madi. A especialista em Didática pela Faculdade de Educação da USP e idealizadora do programa Escrevendo o Futuro/Olimpíada de Língua Portuguesa explica:

Alfabetizar letrando é o caminho do meio
Foto: arquivo Cenpec

Não é uma formação teórica, é uma formação em cima de prática, baseada nas questões que as professoras têm. Estamos trabalhando com os princípios mais gerais do letramento e da alfabetização, como o nosso princípio pétreo da escrita com sentido, com função social, contando e mostrando para as professoras, através de vídeos e da própria experiência na formação, como a gente faz esse trabalho.”

Sonia Madi

Nos últimos encontros, elas têm trabalhado a leitura como estratégia de antecipação e como recurso diagnóstico, de sondagem do conhecimento que as crianças têm de literatura. A formação partiu da experiência da voluntária Marlene com a leitura do livro O Lobo que caiu do livro, que ela usou para identificar o repertório que o estudante que ela atendia tinha sobre as histórias literárias com lobos.

Para a professora Simone, os encontros têm sido muito bacanas porque permite que as professoras percebam, através da prática na formação, que as atividades são diferentes e interessantes para serem trabalhadas com as crianças em sala de aula:

O mais legal é que elas fazem conosco como se fosse a aula com os alunos. Na hora que a formadora começou a ler, ela pediu a nossa participação e nós falamos a nossa experiência. Eu achava que ela estava fazendo uma leitura para introduzir a aula, mas na verdade não, ela já estava fazendo a leitura com antecipação. Somente depois ela deu toda a explicação sobre o que é inferência, o que antecipação, pra que serve, como deve ser feita. Foi um encontro bem dinâmico”.

Simone Rodrigues Soares

Leia mais sobre a mediação de leitura do projeto Letra Móvel e outras iniciativas de incentivo à leitura durante a pandemia


Função social da escrita

A mediação de leitura foi uma das principais atividades realizadas pelas voluntárias do projeto Letra Móvel e permitiu a apresentação de diversos gêneros literários e não literários às crianças, como poemas, cantigas, parlendas, narrativas de aventura, receitas culinárias, adivinhas etc. Para levar obras e materiais para as casas dos(as) participantes, o projeto contou com o apoio do Galpão ZL, espaço de convivência, de projetos sociais e de fomento à leitura mantido no bairro pela Fundação Tide Setubal.

Para Sonia Madi, ao pensar as atividades sempre com base na função social da escrita, as voluntárias garantiam que as propostas realizadas com as crianças fizessem sentido e fossem muito diferentes do que costuma ser uma tarefa escolar, de copiar no caderno uma palavra dada, sem contexto. Além disso, elas precisavam estar ao alcance do entendimento dos(as) adultos(as) que as acompanhavam:

Todos os textos e as atividades tinham um sentido real para o escrever. Às vezes era uma música que a criança gostava, outras ela ia fazer aniversário e precisava fazer a lista de quem ia convidar ou quais comidinhas teria na festa. Ou a mãe trabalhava embalando maquiagem em caixas para pôr no correio, e a criança a ajudava, fazendo uma leitura de memória do nome dos clientes. Também incentivamos que a família se envolvesse nos jogos e nas atividades lúdicas de leitura que propúnhamos.”

Sonia Madi

Jacqueline Fachinetti Pereira, professora do 1º ano do ensino fundamental da escola Pedro Moreira, também participa das formações e diz que os encontros têm ampliado a sua visão sobre a forma de trabalhar com os(as) alunos(as) e a importância de trabalhar a oralidade para desenvolver a escrita:

Foto: arquivo pessoal

Estou gostando muito que estamos trabalhando conforme a realidade que vivem e o nível de conhecimento que trazem. Temos utilizado vários recursos para facilitar o caminho das crianças que tem dificuldade com a escrita de acordo com a vivência deles, de forma que eles tenham mais autonomia e visão crítica.”

Jacqueline Fachinetti Pereira

A professora Simone conta também como tem colocado em prática as aprendizagens da formação:

Eu tenho aprendido muito com essa troca de experiências entre as formadoras, as minhas parceiras e a minha coordenadora. Hoje, eu já tenho feito minhas leituras em sala de aula como atos pedagógicos, não somente para iniciar as aulas, e consigo ver que aquela criança que não está alfabética tem muito a me passar e consegue ler de memória, com o apoio das ilustrações.”

Simone Rodrigues Soares

Conheça o especial Aprendizado inicial da escrita: uma proposta de sistematização, baseado na proposta de Magda Soares


Alfabetização pelo olhar de uma avó

Um dos grandes trunfos do projeto Letra Móvel foi justamente garantir o contato muito próximo com pelo menos um membro da família do(a) estudante. “As famílias, observando o nosso jeito de trabalhar, foram entendendo a nossa metodologia, e isso foi muito bacana”, explica Sonia.

A seguir, a avó Telma Francisca dos Santos conta como foi testemunhando o avanço da neta Maria Eduarda na alfabetização:

“Foi um processo muito difícil e diferente do que eu tive, porque, no meu caso, a minha mãe não tinha estudo, não sabia ler. Pra eu aprender, eu precisava realmente dos professores, que só largavam a mão quando já estávamos alfabetizados. Eu até pedi pra minha filha comprar a cartilha Caminho Suave, com a qual eu aprendi, e quando conversei com a professora Alice ela me disse que não precisava, que a gente ia ensinar a Maria Eduarda do nosso jeito.

Letras móveis formando a frase "Eu amo Alice"
Foto: arquivo pessoal

Nós começamos ensinando a ela os conhecimentos do alfabeto, do silabário (que eu nem sabia que chamava assim). Eu colocava as cartolinas e ia perguntando pra ela: ‘onde está o A? Onde está o P?’, nas coisas da casa. Depois que ela aprendeu, a gente começou a entrar com as palavras, o pa, pe, pi, po, pu, e então eu mudava as cartolinas.

Quando ela escrevia ‘casa’, ela escrevia ‘cas’ ou só o C e o S. E eu falava: ‘professora, está errado’. A Alice dizia que não estava. ‘Tá errado’, eu repetia. A professora me chamava de canto, com o celular, e me explicava: ‘você não pode falar que está errado, porque não está errado. Tá certo. É que você quer que ela escreva por completo, mas ela está sendo alfabetizada, então ela vai comer algumas letras’. Eu chorava, achava que o esforço estava sendo em vão. ‘Ela vai chegar na 2ª série sem aprender a ler, sem saber escrever o nome dela, não é justo’, eu dizia. A professora Alice me pedia para ter paciência.

Um dia, depois de muita insistência e paciência por parte da professora Alice (porque ensinar uma criança é uma coisa, ensinar a avó da criança a ter paciência é outra), nós conseguimos ensiná-la a conhecer todas as letras. Aí entramos no método de soletração, em que pedíamos pra ela escrever o nome dela, por exemplo, e quando soletrávamos M-A-R-I-A, ela sabia escrever. Mas quando ela tinha que escrever sozinha, ela não conseguia. ‘Então agora a gente não ensina mais pela soletração’, me disse a professora.

Começamos a usar o alfabeto cortado que eu tinha feito em cartolina, ou seja, as letras móveis. Eu ditava uma palavra e pedia pra ela procurar as letras. Ela juntava e eu ia conferir se estava certo. Quando estava errado, eu escrevia no papel a forma certa, pegava outras letras e pedia pra ela procurar o erro na palavra dela. ‘Na sua palavra tem dois Rs, só tem um S’, ela falava. Foi assim que ela foi descobrindo que escrevia errado e foi corrigindo, num trabalho de formiguinha que chegou onde estamos hoje, com ela alfabetizada, lendo, escrevendo e interpretando texto.”


Apoio às famílias no volta às aulas

As aulas na escola Pedro Moreira, assim como em muitas outras, têm funcionado em rodízio das turmas, para garantir o distanciamento social na sala de aula. Assim, as turmas estão divididas atualmente em dois grupos, de cerca de 15 alunos(as), que vão um dia sim e outro não à escola. Nos dias que não vão, elas acompanham as atividades pelo Centro de Mídias da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo.

Essa nova rotina de estudo tem impactado as famílias, como relataram as que participam do projeto Letra Móvel à voluntária Elisa Pitombo:

6 aprendizados de educadoras(es) ao estreitar laços com as famílias
Foto: arquivo pessoal

Elas estão tendo muita dificuldade em coordenar, entender e acompanhar os estudos e estabelecer uma rotina dentro de casa, seja porque as aulas são alternadas, seja porque elas têm dois tipos de tarefa escolar pra acompanhar: a da escola e a do Centro de Mídias, que, em geral, é incompatível com as tarefas da escola. Ou seja, as do Centro de Mídias tem um nível de exigência um pouco mais avançado, que elas não conseguem entender.”

Elisa Pitombo

Vistas essas dificuldades, o Letra Móvel tem realizado encontros mensais com os familiares das crianças atendidas pelo projeto, com o intuito de acompanhar, dar suporte e desenvolver algumas habilidades com elas que podem ajudar nesse processo. É o caso, por exemplo, da autonomia, em contraposição à dependência, que tem se acentuado durante a pandemia, como explica Elisa:

A necessidade de proteger os filhos nesse período levou, em alguns casos, ao reforço de muitas dependências, como de leitura, de se vestir sozinho, de subir escadas etc. Mas a gente tem incentivado as famílias a darem autonomia aos filhos: de pensamento, de aprendizagem etc. ‘Pense no que você vai escrever, você sabe, tente escrever sozinho, em vez de perguntar pra avó ou para o irmão’, nós dissemos. Essa autonomia é importante não só para o próprio aprendizado, mas para o convívio no ambiente coletivo da escola.”

Elisa Pitombo

No último encontro, realizado no dia 18/9, ela buscou desenvolver o tema com os familiares através do livro O Patinho que não aprendeu a voar, de Rubem Alves, que tem uma terminologia fácil.

Os aprendizados que as voluntárias têm por meio desse contato próximo com as famílias também é serve para orientar as professoras sobre a importância de entender a rotina e as dificuldades dos familiares nesse processo de orientação dos estudos. Um dos episódios de uma voluntária com o aluno que atendia serviu para mostrar a importância de fazer combinados com os pais, como relata a professora Simone:

A voluntária tinha montado toda a estrutura na sua casa para a aula, preparado a câmera, e quando ligou para a mãe, ela não atendeu, não estava em casa. Ela ficou chateada e percebeu que precisava conversar com a mãe para marcar um horário em que ela também pudesse deixar tudo pronto para a conversa com o aluno. Esse relato foi bacana, porque eu fui uma das professoras que perceberam que nunca tinham feito isso com as mães dos seus alunos. Depois desse encontro, eu passei a combinar com as mãezinhas o horário de entrar em contato e já pedia pra elas deixarem preparados o caderno e o lápis em um lugar da casa com sinal, pra poder fazer a minha avaliação diagnóstica com o aluno. Deu super certo, consegui fazer o dobro das sondagens que eu tinha feito no ano passado.”

Simone Rodrigues Soares

Confira 6 aprendizados de educadoras(es) ao estreitar laços com as famílias


Olhar mais atento aos mais vulneráveis

A professora Simone confessa que costumava reclamar das mães, achava que elas não tinham interesse na educação das(os) filhas(os). Esses estigmas que muitas escolas e educadoras(es) têm dos familiares precisa ser combatido, assim como os estigmas que os pais têm sobre a escola. Essa é uma das principais lições que Elisa Pitombo aproveita da experiência do Letra Móvel:

A escola costuma achar que a família não ajuda na aprendizagem, não colabora e não quer trabalhar junto. Ao mesmo tempo, a família acha que a escola só cobra, só manda tarefa e que tem um saber superior ao dela. A escola precisa entender que as famílias têm os seus saberes e as suas potencialidades e que precisa sentar e dialogar com elas, para apoiá-las e construir junto essas novas rotinas.”

Elisa Pitombo

Uma vez que se tenha esse olhar para as reais condições das famílias e das(os) estudantes, a escola e a gestão educacional poderão pensar maneiras de solucionar a principal barreira para o aprendizado de toda e qualquer criança: as desigualdades. Se o pai está desempregado e preocupado em como pagar pelo teto da criança, como ele vai apoiar o filho no estudo? Ou se a mãe só completou o ensino fundamental, como ela pode compreender um exercício e explicá-lo à criança se o enunciado for muito complicado?

Alice Junqueira explica esse cenário a partir da conectividade – um quesito básico para quem participava do projeto Letra Móvel e para milhares de estudantes brasileiras(os) durante o ensino remoto:

Muitas famílias desistiram do nosso projeto por causa da falta de conexão ou porque não tinham um pacote de dados que possibilitasse as chamadas. E quando elas têm essa conexão, as famílias desses territórios vulneráveis têm que fazer um esforço monumental para apoiar o ensino, porque, quando você precisa batalhar para colocar comida na mesa, tudo fica mais difícil. Porém, nós constatamos que quando as escolas e os educadores estão mais próximos das famílias, entendendo essas realidades e dificuldades, eles podem dar orientações muito mais precisas e impactar muito a aprendizagem dessas crianças. A escola precisa saber que todo mundo é capaz de aprender, e que ela é capaz de apoiar as famílias mais vulneráveis, nos rincões mais esquecidos do país.”

Maria Alice Junqueira

É quando se desenvolve esse vínculo forte com as famílias que não só as crianças têm bons frutos, mas também as pessoas ao redor são impactadas. Aos 47 anos, a avó Telma, por exemplo, voltou a estudar há cerca de dois meses, tendo se matriculado na Educação de Jovens e Adultos da Emef Arquiteto Luis Saia, em São Miguel Paulista.

A minha neta é a minha motivação. Daqui a pouco ela vai estar na 3ª ou 4ª série e vai precisar de ajuda. Se eu não sou alfabetizada o suficiente, como eu poderei ajudá-la?”

Telma Francisca dos Santos

Para as voluntárias, o sucesso dessa experiência de ensino remoto alfabetizadora também só foi possível por causa dessa afetividade que elas conseguiram desenvolver, mesmo à distância:

Não achávamos que íamos conseguir desenvolver uma relação afetiva, porque estávamos habituadas ao corpo a corpo. E a gente sabe que pra aprender é preciso afeto, se não a aprendizagem não aconteceu. Então essa relação afetiva que se criou com as famílias foi uma das coisas que mais nos surpreendeu e que nos possibilitou alfabetizar através do ensino remoto.”

Elisa Pitombo

Saiba mais

  • A experiência das voluntárias alfabetizadoras do Comunidade Cenpec no Projeto Letra Móvel rendeu dois artigos publicados nos Anais do V Congresso Brasileiro de Alfabetização (CONBAlf), que contam aspectos e reflexões muito importantes sobre o “alfaletrar” no contexto da aprendizagem móvel.
  • O artigo Aprendizagem Móvel: reflexões sobre alfaletrar, enquadrado no Eixo temático 6 – Alfabetização, cultura escrita, tecnologias educacionais e outras, traz reflexões sobre os desafios dos encontros síncronos realizados por videochamadas de WhatsApp e dos efeitos dessa experiência, como “o fortalecimento do vínculo com as crianças e as famílias, a ampliação das práticas de letramento por parte de todos(as) os(as) estudantes e os avanços atrelados às hipóteses de escrita linguagens”.
  • Já o artigo Jogos de alfabetização: desafios do trabalho pela tela do celular chama atenção para informações sobre a escolha e o uso de jogos de alfabetização durante esses encontros, trazendo uma reflexão sobre as possibilidades de mediação na aprendizagem móvel por meio desses recursos. 

Veja também