- Tamara Castro
Por Stephanie Kim Abe
Já vi que a coisa tá ficando preta! Ô, meu dengo, vem cá! Vamos esclarecer uma coisa: eu não vejo nenhum probrema em você chegar tarde do trabalho. Você foi promovida! Eu tenho é inveja do seu sucesso – mas inveja branca, tá?”
Quantos erros você identifica na fala acima? Há alguma palavra mal usada, algum erro de pronúncia, alguma expressão pejorativa? Você considera alguma das falas ofensivas? Se sim, pra quem?
Muitas pessoas devem ter apontado o “probrema” como o primeiro – ou único – erro identificado. Outras devem ter enxergado essa palavra como uma variante linguística. Talvez poucas tenham percebido muitos “probremas” nessa fala, quando se identifica que ela vem carregada de expressões racistas.
“A coisa tá ficando preta”, “inveja branca”, “esclarecer” são algumas das mais evidentes. Mas até “dengo” e “probrema” são reflexos de como a nossa língua reflete o racismo estrutural presente em nossa sociedade.
Para tratar da questão, o Portal Cenpec conversou com as pesquisadoras Lara Rocha e Sheila Perina de Souza. Lara é bacharel e mestranda em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), onde desenvolve sua pesquisa acerca da literatura afro-brasileira e educação das relações étnico-raciais. Sheila é doutoranda em Educação e Linguagem pela Faculdade de Educação da USP e investiga o ensino da língua portuguesa em Angola, Moçambique e no Brasil.
Racismo na língua: entender para combater
Leia abaixo a entrevista com as duas pesquisadoras. Em seguida, confira uma lista com diversas expressões racistas para cortar da linguagem.
Portal Cenpec: Qual a diferença entre o preconceito linguístico e o racismo linguístico?
Lara Rocha: O preconceito não tem a ver necessariamente com uma questão racial. As variações linguísticas têm a ver com classe social, com região, com geração.
Sheila Perina de Souza: O preconceito linguístico é limitante, porque só dá conta do desprezo pelas variedades populares. Ele não leva em consideração a negação do caráter pluriétnico da nossa língua pelo histórico de marginalização das línguas africanas e indígenas em busca de um português europeu puro, que não tem marcas das diferentes etnias indígenas ou populações africanas.
Já o racismo linguístico trata especificamente de raça, dessa condição histórica, cultural e social de violências a que as populações majoritariamente negra e indígena foram submetidas.
Portal Cenpec: Como o racismo se manifesta em nossa língua?
Lara Rocha: Ele pode se dar de duas maneiras. Tanto por meio do apagamento ou do não aprofundamento sobre as origens de determinadas palavras – quando a gente ignora as contribuições e construções linguísticas que têm a ver com essa herança indígena e africana –, como por meio da discriminação direta através de palavras e expressões da língua.
Ou seja, o racismo na língua pode ser com relação ao apagamento de expressões positivas que têm a ver com essas culturas, ou o contrário, expressões que estão há muito tempo na nossa língua, mas que, sem a gente às vezes perceber, carregam um tom depreciativo sobre os povos marginalizados.
Sobre variantes e preconceito linguístico, navegue pelo Mapa da oralidade
Portal Cenpec: Quais seriam alguns exemplos desse tipo de expressões?
Lara Rocha: O grande clássico é o “denegrir”, que é uma expressão muito comum – inclusive em meios acadêmicos – e que tem a ver com tornar algo pior, prejudicar alguma coisa ou pessoa. A origem da palavra tem a ver com “tornar negro”, “enegrecer” alguma coisa. Ou seja, há obviamente uma origem racista. Então a ideia de que tornar algo negro tem a ver com prejudicar ou estragar essa coisa é consequência e manifestação desse racismo linguístico.
Sheila Perina de Souza: No âmbito das contribuições que são marginalizadas ou invisibilizadas, temos como exemplo a palavra “dengo”, que todo mundo conhece, todo mundo usa – mas que não se traz de onde vem essa palavra para a sala de aula.
Ela é de origem da língua kikongo, um povo oriundo do reino Kongo, na Angola. Então não é só dizer que a palavra é africana. O que significa? De que povo é essa palavra? Quais as suas histórias? Qual a contribuição desse povo para a nossa formação?
Outro exemplo é a pronúncia do “r” no lugar do “l”, em construções como “framengo”, em vez de “flamengo”. A Lélia Gonzalez faz essa pesquisa, quando trabalha o conceito do “pretuguês”, que reconhece a raiz do português falado no Brasil como na cultura negra, indígena etc.
Muitas pessoas ouvem essa pronúncia como um erro, mas não é. Muito pelo contrário, é uma herança africana, pois alguns povos não tinham a pronúncia do “l” em seu vocabulário, então ele era substituído pelo “r”.
Saber desse processo é humanizar a pessoa negra. É entender que, quando ela fala “framengo” ou “probrema”, ela está carregando a forma como seus antepassados falavam, uma riqueza dos antecedentes. Quando a gente assume esses falares como erros, estamos sendo racistas com a nossa língua e com as pessoas que a falam dessas diferentes formas e carregadas desse histórico.
Portal Cenpec: Como o racismo linguístico tem sido abordado na escola ou nos materiais didáticos?
Sheila Perina de Souza: Eu vejo a escola e os livros simplesmente colocando um bloco de palavras, em algum lugar do livro, que são de origem africana e indígena. Eles não trazem a contribuição desses povos de fato, o histórico de transformação da língua, há quanto tempo eles estão aqui. Não há uma tentativa ou busca de desmistificar os falares que são rejeitados e dar legitimidade e visibilidade às palavras trazidas por esses diferentes povos, por essas diferentes etnias.
Lara Rocha: Eu não vejo o assunto sendo muito fortemente discutido nos materiais didáticos, principalmente se compararmos com o preconceito linguístico e a variação linguística – que hoje é um dos temas que mais caem em vestibular, por exemplo. Mas, ao assumir que a língua é viva, temos pautado e refletido mais sobre isso, ainda que pouco.
As universidades, por exemplo, ainda têm muita resistência à questão do racismo linguístico ou mesmo à linguagem neutra. Infelizmente, esse é um tema ainda incipiente nas licenciaturas, nos espaços de debate sobre língua entre os acadêmicos.
Eu sou professora do ensino fundamental II, e quando trago pra sala esse tema com a turma não é algo polêmico. As(Os) estudantes acham massa, se veem reconhecidas(os). Elas(es) percebem que não é que cometem grandes erros, mas que tudo está em transformação. E que a língua, tanto as suas regras quanto os seus desvios, não é aleatória. Eu sinto que tenho mais abertura com as(os) estudantes na escola do que com as(os) professoras(es) na universidade.
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Portal Cenpec: Como devemos pautar esse debate nas escolas e avançar nesse combate à língua racista?
Sheila Perina de Souza: Eu acho que a escola tem um papel muito determinante na manutenção do racismo, e de modo específico do racismo linguístico. Porque ela é a instituição que está habilitada a dizer o que é certo e errado dentro da língua, e ela o faz a partir de uma única norma: a norma padrão.
Ao fazer esse movimento de apresentar somente uma única variedade possível, ela está negando toda a heterogeneidade dos falares da população restante que não domina e utiliza a norma padrão – e que, inclusive, é o grande público da escola pública. Ela legitima apenas uma parcela da sociedade e, dessa forma, fundamenta a colonização linguística. Porque essa língua que hoje é a norma padrão é a língua branca, que marginaliza e silencia as contribuições das outras culturas que formam a sociedade brasileira, principalmente as línguas africanas e indígenas.
Uma educação democrática que traga para a escola a contribuição dos diferentes povos que formam o Brasil não tem como não olhar pra língua e entender que ela é um palco de disputa, em que a matriz branca está sendo privilegiada em detrimento das matrizes negra e indígena.
Lara Rocha: Primeiro, é preciso falar do assunto sempre. Não é só em um dia do ano, ou só com uma série específica. Devemos falar disso toda vez que falarmos de língua, toda vez que uma palavra de cunho racista aparecer, toda vez que pensarmos e discutirmos a origem do nosso português. Só incorporando realmente esse olhar das relações étnico-raciais para conseguirmos construir uma educação que faça sentido às(aos) estudantes e transforme a realidade.
O nosso grande ganho é compreender, em todas as esferas, inclusive na acadêmica (que ainda é muito resistente em relação a esse tema), que rever certas expressões não é negar a língua ou querer militar em cima de algo que está dado.
É assumir que a língua é viva e que do mesmo jeito que a gente cria expressões, que antes não existiam e usamos hoje em dia, a gente pode deixar de usar outras. Não precisamos usar “mercado negro” para falar de comércio ilegal. Lista negra, inveja branca, magia negra… todas essas expressões têm uma origem que não tem a ver com uma cultura democrática e inclusiva e o olhar para as relações raciais que a gente defende.
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Expressões racistas para parar de usar já!
A lista abaixo foi construída durante as formações realizadas pelo projeto Educação para as relações étnico-raciais da Comunidade Cenpec em parceria com cinco Centros de Educação Infantil (CEIs) da região da Penha, na capital paulista, em 2020. Confira algumas expressões racistas e seus significados:
“Meia tigela”: As(Os) negras(os) que trabalhavam à força nas minas de ouro nem sempre conseguiam alcançar suas “metas”. Quando isso acontecia, recebiam como punição apenas metade da tigela de comida e ganhavam o apelido de “meia tigela”, que hoje significa algo sem valor e medíocre.
“Mulata”: Na língua espanhola, referia-se ao filhote macho do cruzamento de cavalo com jumenta ou de jumento com égua. A enorme carga pejorativa é ainda maior quando se diz “mulata tipo exportação”, reiterando a visão do corpo da mulher negra como mercadoria. A palavra remete à ideia de sedução, sensualidade.
“Cor do pecado”: Utilizada como elogio, se associa ao imaginário da mulher negra sensualizada. A ideia de pecado também é ainda mais negativa em uma sociedade pautada na religião cristã como a brasileira.
“Não sou tuas negas”: A mulher negra como “qualquer uma” ou “de todo mundo” indica a forma como a sociedade a percebe: alguém com quem se pode fazer tudo. Escravas negras eram literalmente propriedade dos homens brancos e utilizadas para satisfazer desejos sexuais, em um tempo no qual assédios e estupros eram ainda mais recorrentes. Portanto, além de profundamente racista, o termo é carregado de machismo.
“Denegrir”: Sinônimo de difamar, possui na raiz o significado de “tornar negro”, como algo maldoso e ofensivo, “manchando” uma reputação antes “limpa”.
“A coisa tá preta”: A fala racista se reflete na associação entre “preto” e uma situação desconfortável, desagradável, difícil, perigosa.
“Serviço de preto”: Mais uma vez a palavra preto aparece como algo ruim. Desta vez, representa uma tarefa malfeita, realizada de forma errada, em uma associação racista ao trabalho realizado por pessoas negras.
“Mercado negro, magia negra, lista negra e ovelha negra”: Entre outras inúmeras expressões em que a palavra ‘negro’ representa algo pejorativo, prejudicial, ilegal.
“Inveja branca”: Mais uma expressão que associa o negro ao comportamento negativo. Inveja é algo ruim, mas se ela for branca é suavizada.
“Amanhã é dia de branco”: Essa expressão tem muitas explicações. De acordo com estudiosos e por explicações do senso comum, tal afirmação foi criada em alusão ao uniforme da marinha. Outra explicação se refere à nota de mil cruzeiros, que possuía a estampa do Barão do Rio Branco, que usava trajes brancos. Resumindo, dizer que o dia posterior é “de branco” significa que é um dia de trabalho ou de ganhar dinheiro. Mas tal dito popular foi ganhando sentidos preconceituosos, uma maneira de demonstrar a “inferioridade das pessoas negras”.
“Criado-mudo”: O nome do móvel que geralmente é colocado na cabeceira da cama vem de um dos papéis desempenhados pelas(os) escravizadas(os) dentro da casa dos senhores brancos: o de segurar as coisas para seus “donos”. Como a(o) criada(o) não poderia fazer barulho para atrapalhar os moradores, era considerada(o) muda(o).
“Doméstica”: Domésticas eram as mulheres negras que trabalhavam dentro da casa das famílias brancas e eram consideradas domesticadas. Isso porque as pessoas negras eram vistas como animais e por isso precisavam ser domesticadas através da tortura.
“Nasceu com um pé na cozinha”: Expressão que faz associação com as origens. “Ter o pé na cozinha” é literalmente ter origens negras. A mulher negra é sempre associada aos serviços domésticos, já que as escravizadas podiam ficar dentro das casas grandes na parte da cozinha, onde, inclusive, dormiam no chão (sua presença dentro da casa grande facilitava o assédio e estupro por parte dos senhores).
“Barriga suja”: Outro termo que faz relação à origem é usado quando a mulher tem um(a) filho(a) negro(a). Isso era considerado algo impuro — como uma “barriga suja” —, o que explica a expressão.
“Cabelo ruim ou cabelo duro”: São falas racistas mais usadas, principalmente na fase da infância, pelos colegas. No entanto, elas se perpetuam até a vida adulta. Falar mal das características dos cabelos afro também é racismo.
“Feito nas coxas”: A origem da expressão popular “feito nas coxas” deu-se na época da escravidão brasileira, onde as telhas eram feitas de argila, moldadas nas coxas de escravos.
“Samba do crioulo doido”: Título do samba que satirizava o ensino de Historia do Brasil nas escolas do país nos tempos da ditadura, composto por Sergio Porto (ele assinava com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta). No entanto, a expressão debochada, que significa confusão ou trapalhada, reafirma um estereótipo e a discriminação aos negros.
“Crioulo/Negão”: Era a designação do filho de escravizados, termo extremamente pejorativo e discriminador do indivíduo negro ou afrodescendente.
“Tem caroço nesse angu”: A expressão possui origem em um truque realizado pelas(os) escravizadas(os) para melhor se alimentarem. Quando o prato era composto de angu de fubá, o que acontecia com frequência. A escravizada que lhes servia, por vezes, conseguia esconder um pedaço de carne ou alguns torresmos embaixo do angu.
“Nhaca”: Desde o português do Brasil Colônia, vem sendo usada para referir-se ao mal cheiro, forte odor, no entanto Inhaca é uma Ilha de Maputo, em Moçambique, onde vivem até hoje os povos Nhacas, um povo Ban.
“Disputar a nega”: tem origem não só na escravização, como também na misoginia e no estupro. Quando os “senhores” jogavam um esporte ou jogo, o prêmio era uma escravizada negra.
“Preto de alma branca”: Tentativa de elogiar uma pessoa negra fazendo referência à dignidade dela como algo pertencente apenas às pessoas brancas.
“Macumbeiro/Galinha de macumba/ Chuta que é macumba”: Expressão que discrimina praticantes de religiões de matriz africana.
Por uma língua antirracista
Entender como o racismo se perpetua em diferentes esferas, manifestações e expressões – entre elas a língua – em nossa sociedade é fundamental para construirmos uma educação de fato democrática e inclusiva.
Conhecer as origens e os significados das palavras, eliminar expressões racistas e substituir por outras não discriminatórias faz parte da luta antirracista. Nossa língua é rica em possibilidades. Em vez de “denegrir”, podemos usar “ofender”. No lugar de “dia de branco”, existe “dia útil”. Em vez de “ovelha negra”, “ovelha desgarrada”. E por aí vai.
Outro caminho é atribuir valor positivo a expressões associadas à cor preta e à raça negra. Por exemplo, falar que “a coisa tá preta” quando algo bom foi realizado por uma pessoa negra. Emicida, em seu livro infantil Amoras, traz um lindo exemplo em um diálogo com sua filha. Ele diz à menina que as amoras, quanto mais pretas, mais doces. E ela conclui: “Papai, que bom, porque eu sou pretinha também”.
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