Sensibilizar e educar para as relações étnico-raciais
Em 2020, equipe e voluntários(as) do Cenpec realizaram formações sobre a temática com profissionais da Educação Infantil da zona leste de São Paulo (SP); saiba mais sobre a experiência e seus aprendizados
Por Stephanie Kim Abe
Desde que a Lei 10.639 foi sancionada, em 9 de janeiro de 2003, estabelecendo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira na Educação Básica, são crescentes as discussões e formações realizadas com profissionais da educação de todo o Brasil sobre a questão das relações étnico-raciais. Francesli França de Oliveira, coordenadora pedagógica do Centro de Educação Infantil (CEI) Campo Belo, na zona leste de São Paulo (SP), atesta:
Sempre fizemos várias formações e cursos pela rede municipal. Normalmente, os cursos sobre essa temática acontecem mais perto desse mês de novembro, devido às comemorações do Dia da Consciência Negra.”
Francesli França de Oliveira
Para a coordenadora, as formações são valiosas e costumam discutir aspectos pedagógicos e conteúdos a serem trabalhados. Mas deveriam acontecer com mais frequência, dada a importância da temática.
Acho que não deveriam ocorrer só uma vez por ano, porque precisamos praticar esse olhar atento todos os dias. E é um assunto muito sensível também, e que a gente não tem abertura para se expressar frequentemente sobre.”
Francesli França de Oliveira
A sensibilidade da questão traz pistas de quão lento tem sido o ritmo da mudança e da implementação de fato da educação para as relações étnico-raciais nos estabelecimentos de ensino. Afinal, se é preciso lidar com o racismo, a discriminação e o preconceito todos os dias em sala de aula, como não há abertura para falar sobre isso nas escolas? Se nossa população também foi formada e carrega traços da população negra e indígena, como não ter bonecos, lápis de cor ou livros literários que as representem? Se temos uma legislação forte que aborda a temática, como ela ainda encontra resistência ao adentrar no espaço escolar?
É preciso sensibilizar
A coordenadora Francesli foi uma das participantes do projeto Educação para as relações étnico-raciais, realizado pelo Cenpec entre setembro e dezembro de 2020. O projeto teve como ponto de partida justamente sensibilizar as participantes em relação à temática.
Como explica Esdras Soares, professor, pesquisador de literatura afro-brasileira e educação das relações étnico-raciais e participante da equipe de formação:
Nosso planejamento tinha como premissa construir um consenso com as participantes de que a questão racial é de fato um problema. Isso é particularmente difícil em um país como o Brasil, em que ainda persiste a ideia de uma ‘democracia racial’. Outro ponto importante era de que todo o grupo reconhecesse que faz parte dessa estrutura, porque o reflexo inicial da maioria das pessoas é enxergar o racismo apenas em outros espaços, nunca em seus próprios lugares de trabalho e de socialização.”
Esdras Soares
Para Washington Góes, especialista em cultura, educação e relações étnico-raciais e um dos participantes do projeto, esse foi um caminho muito acertado da equipe:
Fala-se do currículo, do projeto político-pedagógico, dos conselhos – que são importantes –, mas o principal é o reconhecimento. É todos se sensibilizarem e se enxergarem nesse processo. As pessoas brancas como quem comete o tempo todo uma discriminação racial, e as pretas como as que sofrem – e também reproduzem algumas discriminações, porque isso está imbuído na nossa sociedade. Só assim podemos construir estratégias para que as pessoas consigam refletir sobre o seu cotidiano e as suas relações com os alunos, os pares, as crianças.”
Washington Góes
Comunidade Cenpec
A Comunidade Cenpec reúne um grupo de educadores(as) que trabalharam ou trabalham em projetos na organização e ainda mantêm vínculos com ela, se colocando a disposição para trabalhar voluntariamente como formadores(as) em diferentes frentes de trabalho.
O projeto Educação para as relações étnico-raciais é fruto do olhar que o Cenpec tem para a temática desde 2018, realizando tanto ações internas quanto externas. Considerando a profunda e complexa relação entre racismo e desigualdade educacional, a ideia foi auxiliar cinco CEIs da zona leste de São Paulo (Jardim do Sonho, Vila Feliz, Marinho de Assis Toledo, Campo Belo, Bem Me Quer) na implementação da Lei 10.639/2003 e de uma educação antirracista. A parceria foi estabelecida por meio do Instituto Educacional Projetando o Futuro, responsável pelos CEIs conveniados.
No total, participaram dos quatro encontros on-line de formação cerca de 80 profissionais da educação dos cinco Centros.
Na primeira etapa, chamada de “encontros de sensibilização”, foram discutidas questões que introduzem o tema, como racismo, preconceito e discriminação. Os encontros propunham uma roda de conversa, buscando sempre partir do conhecimento e da cultura acumulada das participantes para fortalecer e pautar o debate.
Para Esdras, ter não só professoras de Educação Infantil, mas outras profissionais das instituições escolares nas formações, foi extremamente importante:
Uma das primeiras coisas que fizemos foi conversar com as diretoras e as coordenadoras dos CEIs. Quando trabalhamos com formação docente, é necessário ouvir, sentar junto, olhar o que já foi feito e entender os objetivos daquele grupo para construir uma proposta colaborativa e que faça sentido para aquelas pessoas. Além disso, envolver a gestão da escola é fundamental, porque sem ela é difícil avançar no compromisso de enfrentamento ao racismo. A gestão é a estrutura capaz de manter o tema sempre em pauta e de maneira transversal em toda iniciativa, projeto, orientação ou documento – e não apenas em novembro e em eventos específicos, como costuma acontecer.”
A coordenadora Francesli e sua equipe já propuseram muitos projetos com um olhar para as relações étnico-raciais. Elas já realizaram projetos sobre super-heróis e princesas negros(as), e procuram pensar práticas pedagógicas que contemplem a diversidade, como na escolha da contação de história.
Mas ela acredita que a abordagem realizada pelo projeto da Comunidade Cenpec foi diferente e trouxe outros olhares para a sua maneira de dar aula e das suas colegas. Ela destaca a importância do ambiente acolhedor das rodas de conversa, que gerou tanto empatia entre os(as) participantes quanto para as crianças:
Nos primeiros encontros, muitas ficaram caladas. Depois elas começaram a conversar, contar os episódios de racismo que sofreram, por causa do cabelo ou outra questão do cotidiano. Também discutimos questões que acontecem na sala de aula. Por exemplo, tem professora que penteia só os cabelos das crianças que são mais fáceis de fazer, e das crianças com cabeço crespo não, porque demora mais, precisa desembaraçar. Por que não pode pentear também? Colocar uma fita, fazer uma trança? Fizemos esse trabalho de nos colocar no lugar da criança: como ela se sente com isso?”
Francesli França de Oliveira
Para a equipe da Comunidade Cenpec, a experiência trouxe muito aprendizado, já que muitos(as) não trabalham nessa etapa de ensino. Regina Estima, pedagoga e pesquisadora que fez parte do projeto, revela que aprendeu muito sobre o trabalho com as crianças pequenas, de 0 a 3 anos, e como a temática das relações étnico-raciais já está presente na Educação Infantil:
Pra mim, foi uma grande surpresa e um grande aprendizado entender o papel que o afeto, a proximidade, o estímulo têm no trabalho nos CEIs. Me chamou atenção como essas educadoras já têm que lidar com uma demanda enorme do próprio território de atender crianças negras, indígenas e de diferentes nacionalidades (refugiados e imigrantes), e de como, mesmo pequenas, elas já trazem preconceitos e discriminações que são reproduções do que elas ouvem nas famílias.”
Regina Estima
Para Esdras, o trabalho de formação trouxe resultados nas práticas das educadoras:
Um dos avanços que percebi nas equipes dos CEIs foi uma apropriação conceitual sobre o tema e um compromisso cada vez maior no enfrentamento do racismo na escola. Eram comuns os momentos em que as educadoras faziam propostas práticas de trabalho, o que nos deixava muito contentes”.
O projeto Educação para as relações étnico-raciais teve seu planejamento ancorado em documentos oficiais, como as leis 10.639/03 e 11.645/08, e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004).
Também é importante ressaltar que optamos por abordar essa temática de maneira positiva, no sentido do reconhecimento e da valorização do universo afro-brasileiro, que inclui história, cultura, arte, intelectualidade, beleza, entre outros aspectos.”
Esdras Soares
Para Washington, as leis são fundamentais para tirar da invisibilidade a questão do racismo e da discriminação que acontece no ambiente escolar e o papel que a escola tem nesse enfrentamento. Mas também é preciso que o tema seja abordado entre os(as) profissionais da educação nos diferentes aspectos que o compõem:
Não adianta nada a gente ter uma lei que traz a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e indígena, mas a BNCC dizer no seu corpo do texto que o pensamento surge da Grécia ou que as formas de sociedade que estão postas são pensadas a partir do pensamento europeu. Precisa-se refazer a política de currículo. Além disso, tem o currículo oculto: a escola não é só o conteúdo, é também as relações do dia a dia. Essa temática precisa transbordar o plano de aula, e estar no cotidiano escolar.”
Washington Góes
O educador também ressalta a necessidade de que as instituições sociais trabalhem o olhar para as relações étnico-raciais em seus projetos com as escolas.
Regina Estima concorda. Segundo ela, em razão da sua complexidade, é preciso dar o apoio necessário para todas(os) que trabalham com o assunto:
Me anima que hoje, no Cenpec, temos intelectuais que dominam a questão e vêm do movimento social, pois é preciso dar apoio teórico e metodológico para se discutir a diversidade étnico-racial. Nós podemos traduzir isso para as(os) professoras(es) em sala de aula, porque as marcas que o racismo deixa vêm já da formação inicial das pessoas, tanto na família quanto na escola. A escola tem o papel de promover uma educação que enfrente esse racismo estrutural.”
Esdras Soares resume os aprendizados do projeto Educação para as relações étnico-raciais:
É necessário sempre retomar os documentos e as orientações oficiais sobre educação das relações étnico-raciais. O Brasil tem uma estrutura legal muito forte, duramente conquistada pela atuação história do Movimento Negro por educação. No entanto, não é conhecida, de maneira aprofundada, pelos(as) profissionais da educação.
Ao iniciar um trabalho sobre relações raciais na educação, é fundamental compreender o que já foi feito, o que já se sabe e aonde se quer chegar, estabelecendo metas e objetivos.
Para discutir relações raciais, é preciso criar um ambiente seguro, no qual todas as pessoas se sintam confortáveis e convidadas a falar e a compartilhar suas reflexões.
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