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Série Novo Ensino Médio: adaptações segundo quem leciona
Docentes de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte contam como está acontecendo a implementação dessa política em suas escolas e como isso tem impactado o seu trabalho
- Tamara Castro
Por Stephanie Kim Abe
Ainda que o Novo Ensino Médio (Lei nº 13.415/17) seja uma política nacional, sua implantação diverge muito entre os diferentes estados. Todos tiveram que criar seus referenciais curriculares e aumentar a carga horária para 1.000 horas anuais este ano. Há estados mais atrasados nesse processo, como Tocantins e Alagoas, que não tiveram seus currículos publicados. Outros estão mais avançados – é o caso de São Paulo, que foi o primeiro estado a iniciar essa implementação.
Justamente por isso, São Paulo já permite observar alguns efeitos dessa reforma educacional. Um estudo lançado este mês pela Rede Escola Pública e Universidade (Repu) sobre a reforma do ensino médio na rede paulista apontou que 22,1% das aulas dos itinerários formativos não haviam sido atribuídas a nenhum(a) professor(a) em abril de 2022. Isso significa que, em vez de cinco dias letivos por semana, as(os) estudantes paulistas tiveram apenas quatro.
O estudo também analisa a oferta dos itinerários formativos às(aos) estudantes (se há mesmo a liberdade de escolha prometida pelas campanhas de divulgação da política paulista) e em quais condições está acontecendo a expansão da carga horária. As(os) pesquisadoras(es) alertam para o aumento das desigualdades escolares, prejudicando principalmente as(os) estudantes do período noturno, que costumam ser as(os) mais pobres e vulneráveis.
Em reportagem publicada no Portal Cenpec mês passado, o estudante do 2o ano do ensino médio noturno Kattryel Henrique Santos Rezende, morador de Santos (SP), relatou de fato que algumas de suas aulas são vagas, porque não há professores(as) para ministrar as novas disciplinas.
Felizmente, não são todas as escolas em que isso acontece. Para continuar trazendo perspectivas distintas sobre a implantação do Novo Ensino Médio em todo o Brasil, conversamos com três docentes dessa etapa de ensino que trabalham em escolas públicas de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Norte.
A garantia de recursos e estrutura escolar para lecionar as novas disciplinas com qualidade e a importância da formação são algumas das preocupações em comum nas falas dessas(es) profissionais. A atenção aos impactos das mudanças na rotina das(os) estudantes e nas dificuldades que elas(es) têm tido também aparecem em algumas falas, e até se conectam aos depoimentos das(os) estudantes – como o problema do transporte escolar.
Mas a forma como as disciplinas eletivas e os itinerários têm sido ofertados, os desafios, os elogios e as críticas ao modelo diferem e ampliam a nossa visão sobre as possibilidades e os limites do Novo Ensino Médio, à luz das reais condições de cada corpo docente e unidade escolar brasileira.
Com o objetivo de colaborar para a melhor compreensão do cenário, das complexidades e controvérsias em torno da implantação do Novo Ensino Médio, o Portal Cenpec iniciou, em fevereiro, a série Novo Ensino Médio: O que é preciso entender?.
✏️ Confira a primeira matéria da série
✏️ Entenda com o Cenpec tem contribuído para o debate sobre o Novo Ensino Médio
✏️ Conheça a experiência de três estudantes de diferentes estados com esse novo formato
“No estado do Rio Grande do Norte, mediante o novo formato do ensino médio em nível nacional, nós temos algumas estratégias e elementos específicos que fomentam o que chamamos de Ensino Médio Potiguar. O intuito é garantir um direcionamento à realidade específica de cada área ou regional de ensino.
As mudanças estão ocorrendo universalmente para todos os 1os anos das escolas do estado, enquanto, para os demais anos do ensino médio, estamos engatinhando com as propostas.
Assim, as(os) estudantes do 1o ano tiveram um aumento de carga horária, com duas eletivas sendo oferecidas no contra-turno (“A arte como ação de transformação social” e “Meu lugar, meu mundo: A imagem do Eu”).
As turmas escolheram as eletivas, que devem mudar a cada semestre, no começo do ano, a partir de um cardápio elaborado por nós, professoras(es). As opções colocadas foram decididas com base nos conhecimentos do próprio corpo docente. Tivemos o ingresso de novas(os) colegas que já faziam parte da rede na escola, para garantir que não faltassem professoras(es).
Mas não há uma regra: há escolas que ofertam só aquela eletiva e pronto, outras que trazem um leque de possibilidades. Também não estamos trabalhando com os itinerários formativos ainda, apesar de algumas escolas do estado já o fazerem.”
“Entre as novidades, está o Projeto de Vida – disciplina que ficou sobre a minha responsabilidade. A direção me ofereceu a vaga, baseado no perfil que eles consideravam necessário para esse trabalho: ser um professor da área de linguagem, que trabalhe com projetos e tenha dinamismo. Acabei aceitando e tem sido incrível! Temos formação constante desde o final do ano passado.“
“Interdisciplinaridade e protagonismo
A palavra-chave, que sintetiza a contribuição dessas eletivas e do projeto de vida, é interdisciplinaridade. Como na nossa escola – eu, inclusive – sempre buscamos fazer um trabalho de forma interdisciplinar, nós não tivemos muitas dificuldades com essa mudança. A pedagogia de projetos já fazia parte da nossa metodologia e é comum realizarmos projetos que relacionam diferentes áreas do conhecimento.
O que eu estou percebendo é que essas mudanças têm contribuído para a formação cidadã das(os) estudantes. O ponto forte, a meu ver, é colocar as(os) estudantes como protagonistas. As(Os) nossas(os) alunas(os) chegaram este ano com medo de falar, introspectas(os), intimistas. E nós percebemos o espanto, o medo, a ansiedade delas(es) quando diante da nossa forma de trabalhar que tenta sempre despertar esse protagonismo juvenil. Hoje, já há quase seis meses de aula, elas(es) conseguem entender que ocupam uma posição de sujeitas(os) dentro da escola, que têm voz ativa, que são ouvidas(os). É um processo lento, mas elas(es) já estão se sentindo partícipes desse novo ensino médio.
Essa maneira de trabalhar nos ajuda, inclusive, a conquistar prêmios e participar de concursos nacionais desde sempre, como a Olimpíada de Língua Portuguesa, da qual possuímos muitos títulos e participamos em diferentes categorias (Memória, Artigo de Opinião e Documentário).
Ao dar voz e vez às(aos) estudantes, também percebemos a diminuição da evasão. As(Os) alunas(os) têm se encontrado melhor na escola. Mais do que nunca, nós, professoras(es), entendemos que o trabalho interdisciplinar surte efeito diferenciado na formação das(os) estudantes.
Nem tudo são flores
Tivemos alguma dificuldade com a adaptação dos materiais didáticos, que, fazendo jus a essa nova proposta interdisciplinar, não vêm com divisão de blocos por disciplina. Mas nós, professoras(es), precisamos entender o que compete a cada área de conhecimento para separar o que vai ser trabalhado por mim ou pelo meu colega.
Além disso, tivemos que adaptar nosso planejamento frente à perda de um tempo de aula, já que todas as disciplinas tradicionais tiveram redução na grade de horas/aula para a inserção das eletivas. Pra ser sincero, acredito que isso prejudicou o ensino de língua portuguesa (matéria que leciono), apesar de saber que nas eletivas esses conhecimentos também serão trabalhados, já que a ideia é justamente o conhecimento somatório. Mas professoras(es) de língua portuguesa sempre acham que não têm aulas suficientes. É uma questão de planejamento e adaptação.
Por fim, eu idealizava um investimento maior da rede nas unidades, do ponto de vista estrutural. Infelizmente, as nossas escolas não estão totalmente ou parcialmente preparadas para receber esse novo formato do ensino médio. Às vezes eu preciso usar uma sala no contra-turno, mas ela não está disponível. Ou, em uma aula de teatro, preciso fazer um ensaio, mas não há um espaço físico que permita esse trabalho diferenciado. Não basta só oferecer o lanche, o almoço; é preciso estrutura melhor que garanta logística e espaços confortáveis para que as(os) estudantes se sintam acolhidas(os) na escola.”
“Faço parte de uma coordenação de orientação dos itinerários na minha escola, junto com outros colegas, que começou a trabalhar em 14 de fevereiro de 2022 nesses ajustes. Ou seja, começamos a pensar as mudanças e já implementá-las neste ano letivo.
Nós ficamos dois anos praticamente parados, com a pandemia, e retomamos no meio do ano passado de forma híbrida. Com isso, temos enfrentado alguns problemas de ajuste nesse pós-pandemia.
Temos ouvido das(os) estudantes reclamações sobre a questão do transporte. Algumas(ns) moram distante da escola, em lugares de difícil acesso, que é perigoso chegar. Com o aumento da carga horária – elas(es) têm uma aula a mais (sexto período) –, temos tido problema para acertar os horários do transporte. Elas(es) também reclamam da alimentação, porque o horário da merenda acabou ficando muito tarde, só às 15h, com a nova aula.
Na minha escola, as matérias tradicionais (português, biologia, física, matemática etc.), tiveram redução de horário para acomodar os itinerários formativos.
Foram incluídos sete componentes curriculares: Práticas Comunicativas e Criativas, Núcleo de Inovação Matemática, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Humanidades e Ciências Sociais, Introdução ao Mundo do Trabalho, Tecnologia e Inovação e Projeto de Vida. Além disso, há duas eletivas, que, na verdade, não foram escolhidas pelos estudantes, e sim pelo corpo docente: preparação para o Enem em Língua Portuguesa e Matemática. O entendimento é que as(os) estudantes vão escolher a área que pretendem seguir a partir do 2o ano.
As(Os) estudantes apresentaram que o conteúdo de algumas matérias acabaram ficando parecidos. Por exemplo, Mundo do Trabalho e Projeto de Vida tem tratado das mesmas questões. No noturno, por questão de horário, elas(es) não estão fazendo os itinerários ainda. Apenas o que chamamos de “atividades”.
A secretaria promoveu algumas formações a respeito desse novo currículo, mas em nível orientativo. Ou seja, dando um cronograma, falando o que tem que ser tratado nessa disciplina, como trabalhar o conteúdo etc. Achei bem proveitoso o curso que fiz, sobre Tecnologia e Inovação. Mas ele indicava que era preciso ter uma sala multimídia, por exemplo – e aí começam os problemas em relação à estrutura da escola.
Para nós, é ainda mais complicado porque nossa escola é coabitada. Há mais de 8 anos dividimos o nosso espaço com outra escola da região, cujo prédio está em reforma desde então. Se estivéssemos só nós, teríamos bastante espaço. Mas por causa disso, temos limitações.
Então, no geral, a gente se vira nos 30. Sentimos falta de material de apoio mais específico para essas novas propostas de disciplinas, que tragam mais esse olhar interdisciplinar. É preciso que a secretaria faça mais investimento, dê mais capacitação, vá mais às escolas ouvir as(os) diretoras(es) e as(os) estudantes.
As(Os) professoras(es) também têm a necessidade de, para ter um salariozinho melhor, trabalhar em duas ou três escolas. Mas com a introdução do sexto horário de aula, algumas(ns) docentes tiveram que deixar o emprego em uma das escolas, porque não têm tempo de chegar a elas.
Apesar de tudo, eu posso dizer que vejo o projeto com bons olhos. Acredito que esses itinerários formativos podem abrir a mente das(os) estudantes, fazê-las(os) começar a empreender cedo e pensar no mercado de trabalho. Elas(es) poderão chegar ao 3o ano amadurecidas(os) e com uma visão mais ampla do que fazer da vida. Estamos começando, e tudo o que é novo traz dificuldades.”
“A minha experiência com o Novo Ensino Médio é muito particular e, de certa forma, mais cômoda. As disciplinas que leciono (Espanhol e Ensino religioso) sempre foram optativas, ou seja, as(os) estudantes podiam optar se queriam ou não cursá-las. Já tive turmas com um(a) ou dois(duas) estudantes apenas, então sempre foi mais difícil para mim.
Com o Novo Ensino Médio, as minhas disciplinas se tornaram eletivas. Atualmente, isso significa que a(o) estudante é obrigado a escolher duas entre as seis matérias eletivas oferecidas no cardápio pela escola. As eletivas estão disponíveis até acabarem as vagas. Se ela(e) escolheu espanhol, mas não tem mais vagas, ela(e) precisa mudar. Logo, agora eu tenho turmas cheias, de 30 alunas(os).“
“Além disso, uma das novas disciplinas do Ciep 441 Mané Garrincha, em Magé, região serrana do Rio, caiu como uma luva para mim: Tecnologia e Inovação. Eu sempre fui a referência de tecnologia na escola e já tocava o laboratório audiovisual – um legado da participação na Olimpíada de Língua Portuguesa há um ano. Foi muito natural que eu ficasse com essa disciplina.
Eu estou vendo que o interesse das(os) estudantes é muito maior, porque é algo que realmente fala a linguagem delas(es). É o que as(os) atrai e a forma como ela é trabalhada na BNCC acaba sendo muito agradável. A falta de recursos nunca me impediu de realizar as atividades com elas(es), porque sempre utilizamos os celulares que tinham e, quando precisávamos, roteava a minha internet. Atualmente, estamos totalmente equipados com equipamentos de ponta porque a unidade faz parte do projeto do Estado chamado “E-TEC Escola de Novas Tecnologias e Oportunidades”. Nunca imaginei que teríamos toda essa estrutura em um colégio de estado.
Como trabalho também no Colégio estadual Parada Angélica, em Duque de Caxias, baixada fluminense, eu percebo a diferença que a estrutura da escola tem sobre as(os) estudantes e a sua disposição para as aulas. Ambas as escolas são de tempo integral, mas, em Caxias, onde o prédio é fechado e o pátio é pequeno, vejo as(os) estudantes mais cansadas(os) já no segundo tempo de aula. Em Magé, o Ciep é muito rico, cheio de árvores embaixo das quais as(os) estudantes passam o tempo e podemos fazer aulas ao ar livre. É um espaço diferenciado, em que elas(es) se sentem mais leves.
Apesar de toda essa estrutura, é na escola de Magé que vejo mais colegas reclamando do Novo Ensino Médio. Eu mesma, confesso, fiquei muito assustada no princípio, achando que seria complicado trabalhar com os projetos e nessa nova perspectiva. Com o dia a dia, fui vendo que não era esse bicho de sete cabeças, e que as pessoas que reclamam muito têm medo da mudança.“
“Foi com uma trilha formativa oferecida pela Seduc que eu aprendi, entre outras coisas, a pedagogia de projetos e o rodízio de saberes. Eu achei fantástico e comecei a utilizar em aula. As formações acontecem, às vezes, em horários que as(os) professoras(es) estão na sala de aula, mas, como ficam disponíveis on-line, só precisamos ter disposição para entrar a qualquer horário e assistir.“
“Acredito que é importante a gente se ajudar. Por exemplo, a professora de matemática que ficou com o itinerário Protagonismo nas Redes, no Ciep, não tinha costume nenhum em trabalhar com tecnologia. Ela nem tinha instagram. Mas começamos a trocar figurinhas, dei dicas para ela e, hoje em dia, ela está tirando de letra. É natural sentirmos insegurança e medo no começo. Mas a partir do momento que ela abraçou a matéria, ela buscou conhecimento e está conseguindo. Mas temos que fazer isso juntas(os), sozinhas(os) não conseguimos.
Por isso, acho que vale a pena acreditar. Acreditar que as(os) estudantes têm maturidade para escolher o que querem cursar aos 16 anos; que têm potencial a ser explorado em diferentes áreas do conhecimento; que as mudanças e as inovações podem dar certo e trazer resultados. Eu vejo brilho nos olhos das(os) minhas(meus) estudantes e tenho tentado olhar o lado bom das coisas.“
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