Confira alguns dos principais pontos apresentados por quem defende a proposta e como eles podem ser falaciosos.
Por Stephanie Kim Abe
Aprovado em maio na Câmara dos Deputados, o projeto de lei que autoriza e regulamenta a educação domiciliar na educação básica (PL 1.338/2022) agora está sendo debatido na Comissão de Educação do Senado Federal.
Ontem (dia 27/6), ocorreu a primeira de seis audiências públicas sobre o PL, com a participação de representantes da Procuradoria da República em Pernambuco, da Universidade Federal do ABC, da Promotoria do Ministério Público do DF e Territórios, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), do Ministério da Educação (MEC), da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), do UNICEF, do Conselho Nacional de Educação (CNE) e da União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação (UNCME).
Confira abaixo a primeira audiência pública na íntegra:
Homeschooling e suas falácias
Conhecida também como homeschooling, a educação domiciliar permite que pais ou responsáveis eduquem suas(seus) filhas(os) apenas em casa, sem as(os) matricularem na escola. Atualmente, quem optar por essa prática pode ser incurso no Código Penal como crime de abandono intelectual (“art. 246 – Deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar”), já que, de acordo com o art. 208 da Constituição brasileira, a educação básica deve ser obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade.
Como explica o professor Romualdo Portela de Oliveira, diretor de Pesquisa e Avaliação do Cenpec:
Se aprovado, o homeschooling seria uma forma de desobrigar a escolarização das crianças e adolescentes, e, portanto, a prática deixaria de configurar crime de abandono intelectual.”
Romualdo Portela de Oliveira
Para contribuir com o debate, Romualdo reflete e contra-argumenta sobre alguns dos principais pontos trazidos pelos defensores da educação domiciliar – evidenciando por que é necessário ir contra a proposta.
“É importante nos organizarmos para participar dos debates que estão acontecendo no Senado Federal para que esse projeto não prospere”, alerta.
Confira abaixo os seis pontos e os respectivos contra-argumentos:
1. Legal ou inconstitucional?
Aprovar e regulamentar a educação domiciliar é uma atribuição do Congresso Nacional, já que a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) é competência privativa do Congresso. Ou seja, as leis aprovadas nesses estados são inconstitucionais. Assim, essas são apenas estratégias de luta dos defensores do homeschooling de propagandear o debate, não tanto uma estratégia viável. Neste momento, legalmente, a educação domiciliar é ilegal e só depois da aprovação pelo Senado e, posteriormente, a sanção presidencial é que ela poderá ser de fato praticada no país.”
Romualdo Portela de Oliveira
2. De quem é o direito?
O item 1 do art. 26 da Declaração Universal dos Direitos Humanos afirma que ‘todo ser humano tem direito à instrução’, e que ‘a instrução elementar será obrigatória’. O item 3, que declara que ‘os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos’, não pode ser analisado descolado do item 1. Ou seja, as famílias têm sim o direito de escolher o tipo de educação que vai ser oferecido às(aos) filhas(os) dentro de um contexto de escolarização.
Isso significa que eles podem escolher colocar a(o) filha(o) em uma escola religiosa, de uma determinada denominação, particular ou pública. As famílias têm o direito de ir à escola e discutir a linha pedagógica da instituição. Assim, usar apenas o item 3 sem mencionar o item 1 é utilizar um argumento falacioso.
É preciso lembrar que a legislação brasileira garante o direito da criança à educação escolar. Se existe o crime de abandono intelectual, ou seja, se a família não pode dizer que a criança não deve ou não pode ser educada e o Estado tem poderes para exercer a coerção da matrícula, está evidente que o sujeito do direito é a criança. Portanto, quando aplicado esse princípio ao homeschooling, não cabe às famílias definirem se as crianças vão ter a experiência da vida escolar ou não. Em termos jurídicos, o sujeito do direito à educação é a criança, e não a família.”
Não existe outra instituição na nossa sociedade que propicie a socialização diversa e plural que a escola proporciona. A socialização no clube, no condomínio, na igreja ocorre entre iguais, entre pessoas que, muitas vezes, pensam da mesma maneira, têm as mesmas tradições ou a mesma composição social, étnica, religiosa. Privar as crianças dessa experiência de socialização que acontece nas escolas, de cidadania republicana, é privá-las de uma parte importante de sua formação como cidadãs do mundo atual, que também é cada vez mais diverso e plural.”
Romualdo Portela de Oliveira
4. Vamos falar de qualidade?
A educação formal que temos na escola é de responsabilidade de profissionais. As(Os) docentes estudam, aprendem psicologia do desenvolvimento, aprofundam os conteúdos das suas disciplinas, têm didática. Mesmo pais que são professores – como eu – sabemos as dificuldades para educar nossas(os) filhas(os) no conjunto das disciplinas que fazem parte do currículo escolar. Além disso, é preciso considerar que a proposta de regulamentar o homeschooling incentiva a desvalorização da profissão docente, processo embutido na educação domiciliar, Então, a educação é uma tarefa designada a profissionais e que não será facilmente transferida para a família.”
Romualdo Portela de Oliveira
5. Como ficam os valores da família?
Eu não tenho dúvida de que é direito da família educar as crianças para esses valores – e, por isso, defendemos que não exista o ensino religioso na escola. A tarefa de formação religiosa e de valores, nesse sentido mais fundante, é da família – e, portanto, não se contrapõe à escola. Ao contrário, ela se complementa à escola.”
Romualdo Portela de Oliveira
6. E o que dizem as avaliações?
Como nós sabemos, os resultados em provas em larga escala têm uma correlação muito alta com o nível socioeconômico da família ou até com o nível de escolarização dos pais. Assim, quando eu comparo homeschoolers com as crianças da escola regular com o mesmo nível socioeconômico, elas(es) não apresentam vantagem acadêmica nenhuma.
As pessoas que se dedicam ao homeschooling fazem parte de um grupo privilegiado, que têm condições financeiras para que um dos pais abra mão de trabalhar, ou trabalhe uma jornada menor, de modo a ter tempo livre para educar os filhos em casa. É falacioso tomar esse grupo privilegiado como regra e o comparar a um conjunto de estudantes das redes públicas, que sabemos não terem as mesmas condições socioeconômicas. Assim, quando a comparação é feita adequadamente, não há evidência de melhores resultados acadêmicos das(os) homeschoolers.”
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