- Débora souza de britto
Por Breno Procópio e Liliene Dante
Dados de um relatório conjunto divulgado pela Unesco, o UNICEF e o Banco Mundial apontam que menos da metade dos países têm implementado estratégias para a recuperação das aprendizagens perdidas durante a pandemia. As crianças mais vulneráveis foram também as mais penalizadas. Segundo declaração publicada no site do UNICEF: “Apenas metade dos países de baixa renda tem um plano em vigor para avaliar onde os que retornaram estão em seu aprendizado”.
No sentido contrário ao da declaração, caminham 17 municípios do Consórcio Intermunicipal do Sul do Estado de Alagoas (Conisul Alagoas). Por meio da parceria Itaú Social-Conisul-Cenpec, a tecnologia Apoio Pedagógico Complementar (APC) tem apresentado às redes educacionais estratégias e metodologias com foco na recomposição e aceleração das aprendizagens. Esta é uma forma de diminuir as lacunas educacionais ressaltadas pela pandemia.
Como funciona o APC?
O APC é estruturado a partir de estratégias que norteiam o conjunto de atividades propostas para a recomposição das aprendizagens em Língua Portuguesa e Matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Dentro desse conjunto de ações estão:
– Acolhimento: a perspectiva aqui é de um acolhimento integral, capaz de perceber tanto as “fraturas afetivas” deixadas pela pandemia, como os impactos econômicos. É reconhecer a identidade dessa(e) aluna(o), o grupo social ao qual ela(e) pertence e valorizar isso. O resultado de um bom acolhimento pode dar suporte a(ao) professora(or) no planejamento das aulas, com a elaboração de atividades que estabeleçam relação com as experiências/vivências das crianças. Por isso se torna tão importante mapear o perfil das(os) estudantes com baixo desempenho e planejar processos de acolhimentos e acompanhamento marcados pela busca do avanço dos segmentos da sociedade que mais sofrem com as desigualdades educacionais;
– Priorização Curricular: estabelece o que vai ser ensinado, mas sempre pensando no ano escolar em que a(o) aluna(o) está matriculada(o). A(o) professora(or) deve ter clareza sobre o que a(o) estudante precisa saber, quais as habilidades necessárias para que ela(e) dê conta do novo conteúdo. Este é o olhar da aceleração, voltado para o presente e não para o que ficou para trás. No processo de recomposição/aceleração, a revisão de conteúdos deve ser gradual, sendo abordada conforme exigências para se trabalhar as habilidades correspondentes ao ano letivo em curso;
– Avaliação Diagnóstica contínua e acompanhamento das aprendizagens: avaliação não é só prova. Este componente consiste em um constante monitoramento para ver como a(o) estudante está avançando, no que avançou e onde não obteve resultados. O observar mais de perto permite a(ao) professora(or) identificar as demandas específicas de cada aluna(o) e realizar intervenções mais assertivas – o que também contribui para o planejamento das aulas e potencializa os resultados das atividades;
– Adaptação das práticas pedagógicas: a(o) professora(or) deve sempre estimular a participação e engajamento das(os) estudantes, com atividades que valorizem as particularidades dos saberes e vivências como o uso de jogos, atividades em grupo, sequências didáticas e desenvolvimento de projetos que levem a uma reflexão progressiva dos conteúdos. Na adaptação das práticas entra a expertise da(o) educadora(or) no uso de recursos de suporte/apoio aos(às) estudantes que apresentam lacunas no aprendizado. Isso significa que mesmo com dificuldades de aprendizado, a partir do uso de “andaimes” todas(os) consigam participar da experiência pedagógica.
Além dessas ações, o APC prevê também a formação de professoras(es), adaptação do tempo escolar de acordo com o contexto de cada rede e uma curadoria de materiais, que busca apoiar as secretarias na seleção de material didático adequado. Essas estratégias devem ser assumidas a partir de uma responsabilidade articulada entre todas as instâncias da rede: secretaria de educação, gestão escolar e professores(as).
– Busca Ativa Escolar: dados da pesquisa “Educação brasileira em 2022 – a voz de adolescentes” (Ipec/UNICEF) destacam que cerca de 2 milhões de crianças e adolescentes não estão frequentando a escola, sendo 17% da classe D e E. É preciso trazer essas(es) estudantes para a sala de aula com ações que articulam diferentes secretarias e níveis de acompanhamento. Esta tecnologia é desenvolvida no Conisul pelo UNICEF em parceria com o Itaú Social.
As etapas construtivas do processo de aceleração das aprendizagens
Diferente da recuperação, que tem o olhar voltado apenas para as lacunas de conteúdo, a recomposição precisa priorizar a abordagem da aceleração, com foco nas habilidades do ano letivo que está sendo cursado.
Tanto em Língua Portuguesa quanto em Matemática são estabelecidas a priorização curricular e as metas de aprendizagens para cada ano, conforme os resultados do diagnóstico alinhados às diretrizes da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Em Língua Portuguesa, por exemplo, segundo Patrícia Calheta, formadora de LP/alfabetização do APC:
Considerando desde a educação infantil até o final do terceiro ano, a gente vai construindo conhecimentos sobre o sistema de escrita, pensando na natureza alfabética, mas também olhando para a natureza ortográfica. Nas formações, traçamos um quadro com parâmetros de aprendizagem desse sistema. A partir de sua análise, discutimos como cada rede/escola vai estabelecer as metas de aprendizagens para o sistema de escrita”.
Patrícia Calheta
A integração dos eixos de ensino pela sequência didática também é fundamental. Ela deve ser planejada de forma conjunta, pela coordenação e professoras(es), de maneira a construir sequências que possibilitem trabalhar, no caso da Língua Portuguesa, com estes quatro eixos: oralidade, leitura/escuta, produção de texto e análise linguística. É importante que a sequência estabelecida faça parte das atividades desenvolvidas pela(o) professora(or) de apoio (contraturno) e não apenas pelo(a) da sala regular, numa ação colaborativa que permita às(aos) estudantes apreenderem melhor as habilidades curriculares propostas para Língua Portuguesa e Matemática.
Para garantir o aprendizado e a motivação dos(as) estudantes, o processo de aceleração envolve algumas etapas, consideradas fundamentais pela pesquisadora Suzy Rollins. Confira abaixo:
1. Mobilização de pensamento, propósito, relevância e curiosidade
Nesta etapa, a(o) professora(or) deve pensar numa forma de apresentar a proposta de conteúdo visando chamar a atenção e despertar o interesse das crianças, jovens e adolescentes a partir da valorização daquilo que elas já sabem (conhecimentos prévios).
A mobilização do pensamento é muito importante porque é isso que vai dar o combustível para a criança. Além de ajudar o professor a saber o que deve ser focalizado a partir de um conjunto prévio de experiências”.
Patrícia Calheta, formadora de LP/alfabetização do APC
2. Articulação clara do objetivo de aprendizagem esperada
As etapas 1 e 2 estão diretamente conectadas.
Aqui, a(o) docente deve explicitar para a criança quais habilidades serão desenvolvidas: a partir do que elas já sabem, até onde objetivam chegar. Estabelecer uma relação entre o que a(o) professora(or) precisa ensinar e aquilo que a criança precisa aprender é fundamental e isso só acontece de maneira clara e coerente se a etapa de mobilização for bem feita.
Uma sugestão da Rollins é trabalhar com “painéis de objetivos” que apresentem de forma clara para as crianças o que será trabalhado, o objetivo a ser alcançado. Eles devem ser construídos de forma coletiva, com a participação das(os) alunas(os).
3. Reflexão baseada em andaimes e habilidades essenciais que estruturam os conhecimentos novos
Sempre que possível, as(os) professoras(es) da sala regular e de apoio (contraturno) devem investigar juntas(os), a partir do conjunto de conhecimentos estabelecidos no mapa de foco, quais são as habilidades primordiais para um determinado aprendizado. Ou seja: quais lacunas precisam ser revistas para que ele possa seguir em frente.
Nesse contexto, o que são os andaimes e como elas(es) podem ajudar as(os) estudantes no processo de aceleração?
Andaimes são apoios, materiais ou não, que auxiliam a(o) estudante durante o desenvolvimento de alguma atividade. Podem ser muito utilizados nas salas de apoio (contraturno) e nas aulas regulares para otimizar o trabalho reflexivo das crianças, gerando resultados mais eficazes e consistentes.
Em Matemática, por exemplo, a criança pode fazer uso da tabuada, blocos para contagem, quadros multiplicativos etc. se isso contribuir para a resolução de uma situação problema.
É possível valer-se também do “apoio” das(os) colegas em atividades em grupo que exijam a participação e colaboração de todas(os). Em uma produção de texto, a(o) professora(or) pode fazer um agrupamento composto por crianças que apresentam hipótese de escrita pré-silábicas e crianças que já estão na hipótese alfabética ortográfica. A que está na fase pré-silábica pode contribuir com a produção ditando a história, recontando uma história ouvida, enquanto a que já tem autonomia na escrita faz o registro textual.
4. Introdução de novo vocabulário e revisão do vocabulário anterior
Esta é uma etapa que pode ser alternada ou vivenciada junto com a etapa 3.
Ao introduzir um novo vocabulário a(o) professora(or) não trabalha apenas com as palavras em si, mas explora a questão das ideias que as permeiam, provocando as crianças para que possam avançar e ampliar o conhecimento, sempre partindo do que ela já sabe para chegar ao que ela precisa aprender.
Um dos recursos sugeridos nas formações de Língua Portuguesa é o uso do dicionário analógico digital Aulete. Além de favorecer o contato com outras palavras, a ferramenta ajuda a criança a evitar repetições, ampliando o vocabulário de maneira a fazer substituições de palavras sem comprometer o sentido do texto.
Ao trabalhar fábulas, por exemplo, há termos e expressões recorrentes (exclamou, salientou, retrucou etc.) e, às vezes, as crianças têm dificuldades de compreender o que são. A ideia é trabalhar esses vocabulários sempre em função do texto proposto, qual efeito determinado termo tem naquele contexto em particular para que a criança possa ir ampliando a sua condição e retendo esse vocabulário, passando a construir textos mais ricos e significativos”.
Patrícia Calheta, formadora de LP/alfabetização do APC
5. Exploração de um novo conceito
Esta é uma etapa que nunca pode ser pulada. É nela que se revela o conhecimento já construído pelas(os) estudantes nas aulas de apoio, ao mesmo tempo em que abre a porta para o novo.
Isso vale para os conteúdos de Matemática e Língua Portuguesa.
A(o) professora(or) de apoio pode ajudar não só a avançar, mas também a construir conhecimentos. Para isso, o diálogo e a colaboração entre as(os) docentes da sala regular e do contraturno são fundamentais. No apoio, a(o) professora(or) pode contextualizar o conteúdo que será introduzido nas aulas regulares utilizando materiais e abordagens diferentes. Dessa forma, ao ter contato com esse conteúdo junto com a turma, as crianças da recomposição não apenas terão “ouvido falar” do assunto como se sentirão estimuladas a partilhar o que já sabem.
6. Realização da avaliação formativa com frequência
O monitoramento das aprendizagens de cada estudante é fundamental. O acompanhamento processual e periódico das habilidades adquiridas ou não deve ser feito tanto na sala regular quanto na de apoio.
Esse processo de avaliação formativa é o que vai garantir um avanço na aprendizagem. As crianças avançam quando são bem acompanhadas, quando o professor sabe exatamente quais lacunas precisam ser preenchidas para que elas se apropriem de novos conhecimentos” – Patrícia Calheta.
Patrícia Calheta, formadora de LP/alfabetização do APC
Recomposição e Aceleração: como trabalhar os conceitos nas práticas em sala de aula?
Toda a proposta conceitual do APC para a recomposição e aceleração das aprendizagens é reforçada nas formações e laboratórios por meio de dinâmicas e oficinas que permitem aos participantes extrapolar o âmbito das ideias e fomentar a prática.
Segundo Érica Catalani, coordenadora de projetos do Cenpec, as(os) professoras(es) devem, sempre que possível, desenvolver atividades em que as alunas são estimuladas(os) a expor/relatar o que fizeram, como fizeram e chegaram a “tal conclusão”.
Atividades lúdicas, como o uso de jogos, e desenvolvimento de projetos, além de proporcionarem a participação de todas(os) permitem que diferentes níveis de aprendizagens sejam trabalhados ao mesmo tempo.
Por meio de uma brincadeira, a criança aprende e o professor consegue detectar como está o conhecimento da(o) aluna(o) para determinada habilidade, diagnosticando quais ainda precisam ser revistas. Não podemos restringir as intervenções aos reagrupamentos das turmas, que preveem a presença de estudantes com níveis de conhecimento mais equilibrados; é preciso integrar as(os) alunas(os) ainda que apresentem níveis diferentes, fomentando o aprendizado colaborativo”.
Érica Catalani, coordenadora de projetos do Cenpec
A proposta com jogos é reforçada por Sandra Amorim, formadora de Matemática do APC:
A experiência com jogos ajuda tanto no desenvolvimento das habilidades prioritárias e essenciais quanto no desenvolvimento das habilidades socioemocionais. Os resultados vão além do conceito matemático, promovendo interação, raciocínio lógico, o pensar com o outro, antever rodadas…”
Sandra Amorim, formadora de Matemática do APC
A(o) professora(or) deve estar sempre atento a tarefas que potencializem as aprendizagens das(os) estudantes e as(os) motivem. Ao mesmo tempo, estar aberta(o) para aproveitar as oportunidades que surgem no próprio ambiente da sala de aula.
Abaixo, compartilhamos parte de uma das atividades trabalhadas por Sandra Amorim durante uma formação com gestoras(es), técnicas(os) e formadoras(es) das redes municipais de educação do Conisul Alagoas.
Compartilhando a aula de Rafael
Rafael dá aulas no 3º ano do Ensino Fundamental e no início da aula, as(os) estudantes estavam conversando sobre os tipos de doces que foram oferecidos na festa de aniversário de um colega. Elas(es) estavam eufóricos em dizer que se deliciaram com os diferentes tipos de doces na festa e que na mesa do bolo tinha mais de 400 doces. Aproveitando a conversa, Rafael perguntou: Como vocês sabem que tinha mais de 400 doces? Alguém contou um a um?
O docente escutou com atenção as diferentes respostas e considerações dos(as) estudantes:
Aluno A: “Eu não contei, mas sei que tem mais de 100 doces, pois na minha festa de aniversário minha mãe fez essa quantidade e, comparando, lá tinha bem mais.”
Aluno J: “Eu sei que só de brigadeiro o aniversariante me disse que teria 150. Como tinha mais outros três tipos, e se de cada tipo mais 100 doces, daria um total de 450.”
Após ouvir as considerações das(os) estudantes, o professor propôs que resolvessem a seguinte situação:
Na festa de aniversário de um colega da escola foram preparados 150 brigadeiros, 120 beijinhos, 75 casadinhos, 50 canudinhos de doce de leite e 110 trufas de diferentes sabores. Mariana disse que foram preparados mais de 700 doces. Você concorda com ela? Justifique a sua resposta.
Mas antes de começarem a resolver a situação, Rafael fez perguntas para apoiar a compreensão da situação proposta:
O que a situação está relatando? Tem alguma palavra que vocês não conhecem? Se sim, qual (is)? Alguém pode me ajudar a explicar para esse colega que tem dúvida sobre essa palavra? O que é preciso solucionar? Por qual motivo? Como podemos justificar uma resposta?
Depois de se certificar que não havia dúvidas, incentivou-as(os) a resolver a situação. Enquanto as(os) estudantes resolviam o problema, Rafael circulou pela sala e percebeu que estavam solucionando o problema de diferentes maneiras. Findado o tempo destinado à resolução, Rafael, solicitou a elas(es) que mostrassem como pensaram para chegar às respostas, escrevendo no quadro.
Neste exemplo é possível detectar várias ações propostas pelo APC para a recomposição e aceleração das aprendizagens como o acolhimento, a escuta, o monitoramento, o apoio (andaimes), mobilização do pensamento etc.
O professor começou de um contexto que a criança gosta. Pediu para desenvolverem uma atividade a partir do que estava sendo discutido dentro de sala. A proposta do professor exige algo que não é só a resolução de um problema, exige mais do que só a operação. O aluno tem que concordar ou não, falar, argumentar, se expressar”, explica.
Sandra Amorim, formadora de Matemática do APC
Vale destacar que ao longo do processo evolutivo de cada etapa é indispensável que a(o) aluna(o) tenha constantes retornos (feedbacks) sobre seu próprio aprendizado. A partir dos painéis de metas, a(o) docente consegue apontar para as crianças até onde elas já caminharam para atingir os objetivos.
A(O) aluna(o) precisa saber o que ela(e) já aprendeu, o quanto avançou. O professor deve ajudá-las e ajudá-los a reconhecer que estão caminhando e superando as lacunas. Esse é um dos principais elementos de engajamento e é motivador para as(os) estudantes”, conclui.
Érica Catalani, coordenadora de projetos do Cenpec
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