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Mais que um projeto, um plano municipal de educação antirracista
O programa PVE Quilombola tem apoiado municípios do Recôncavo Baiano a garantir a equidade racial na educação e implementar a lei 10.639/03; conheça mais
- Débora souza de britto
Por Stephanie Kim Abe
A construção de uma educação antirracista é fundamental quando se intenciona a emancipação e a liberdade dos sujeitos aprendentes. Afinal, não existe democracia sem o desmantelamento do racismo que estrutura a sociedade brasileira. A educação, enquanto formadora de pessoas, tem o importante papel de protagonizar este processo.
(Plano Municipal de Educação Antirracista de Cachoeira – BA)
Foi preciso superar muitos desafios para que Viviane dos Santos da Conceição conseguisse realizar o trabalho que ela faz hoje com maestria na Escola Otávio Pereira, na Comunidade do Tabuleiro da Vitória, em Cachoeira (BA).
A começar pelo trauma de trabalhar em escola rural, que ela desenvolveu logo nos primeiros anos de sua carreira docente: “Eu saía às cinco horas da manhã e chegava na escola às oito. Era tudo bem precário mesmo: da estrada ruim, que dificultava essa questão do percurso, à infraestrutura da escola e à carência de bons materiais didáticos”, lembra.
No começo da sua experiência na Escola Otávio Pereira, ela ainda enfrentou problemas de acesso por causa das estradas ruins que faziam o trajeto de sua casa em Muritiba até a comunidade quilombola durar cerca de duas horas. Mas o que mais a tem preocupado desde que entrou na instituição em 2019 é um assunto de outra ordem:
Lembro que logo no começo, em uma aula de história, eu tentei problematizar o que era ser quilombola. Com essa sondagem, eu pude perceber que, mesmo inseridos em um território quilombola, os alunos não se reconheciam enquanto negros. Eles não tinham essa identidade, não valorizavam a ancestralidade. E isso me motivou a trabalhar assuntos referentes a questão étnico-racial.”
Viviane dos Santos da Conceição, professora e coordenadora pedagógica
Tendo em vista que as(os) estudantes são oriundas(os) de Cachoeira, cidade que foi palco de batalhas populares importantes, com grande e expressiva presença de africanas(os) e filhas(os) de africanas(os) que foram escravizadas(os), ela se sentiu na obrigação de abordar com mais ênfase as temáticas referentes a História da África e afro-brasileira para problematizar a história local.
Foi então que ela passou a desenvolver o projeto Meu cabelo, minha raiz em parceria com outras professoras da escola. O objetivo é trabalhar assuntos referentes à Lei 10.639/03, que instituiu a obrigatoriedade do ensino de cultura e história afrobrasileira e africana em todas as escolas de Educação Básica do Brasil.
“Nós trabalhamos assuntos referentes a essa temática o ano todo e, em novembro, temos a culminância desse projeto com um desfile de beleza afro. Estamos já na quarta edição e o mais interessante tem sido perceber o quanto esses estudantes passaram a se entender enquanto quilombolas e elevar sua autoestima em relação às suas origens e ancestralidade“, explica Viviane, que hoje é também coordenadora pedagógica da escola.
Há outras catorze escolas em territórios quilombolas no município de Cachoeira, que se situa às margens do rio Paraguaçu e está distante 120 km de Salvador, capital do estado. Elas chegam a ser quase 50% das escolas da rede municipal, mas a grande maioria não realiza um trabalho voltado para as relações étnico-raciais, tal qual o que tem sido desenvolvido pela professora Viviane na Escola Otávio Pereira.
Ao contrário, foram identificados casos em que a fala de professoras(es) ou estudantes da rede demonstravam não só uma total insensibilidade para essa questão, como até preconceito e racismo, como conta Sandra Liss Sant’Ana, coordenadora de Educação para Diversidade na Secretaria Municipal de Educação de Cachoeira (BA), que engloba a educação quilombola e do campo:
Nós temos um material de educação quilombola produzido pelo próprio município e ouvimos os relatos de pessoas que se recusavam a trabalhar com o material porque ele começava a apresentar os conteúdos a partir dos orixás. ‘Como eu vou trabalhar isso com os meus professores?’, questionou uma gestora evangélica uma vez.”
Sandra Liss Sant’Ana, coordenadora de Educação para Diversidade na Secretaria Municipal de Educação de Cachoeira (BA)
A partir dessa e de outras questões que inquietaram a atual gestão da secretaria, a equipe técnica, em consulta e com participação da comunidade escolar, passou a trabalhar na construção de um Plano Municipal de Educação Antirracista de Cachoeira (BA) (PMEAC).
O texto, que começou a ser discutido em 2021, foi sancionado em outubro de 2022 pela Câmara de Vereadores da cidade, e deve ser sancionado pelo prefeito e publicado nesta sexta-feira (dia 25/11).
O documento joga luz às barreiras do território para a implementação da Lei 10.639 em sua plenitude, como o fato de muitas(os) professoras(es) das escolas quilombolas não serem do território e não saberem trabalhar as questões étnico-raciais em sua prática didática, a infraestrutura precária, a falta de material didático adequado e a desconexão do currículo com o conhecimento das próprias comunidades – questões essas que se refletem na história da educadora Viviane.
A construção de uma Educação Antirracista está atrelada à ideia de reparações de injustiças sociais, historicamente estabelecidas para os grupos mais vulneráveis da sociedade brasileira. Está assentada também, na promoção da consciência crítica dos indivíduos, fazendo com que vejam-se como protagonistas da própria história, capazes de transformar a realidade.
(Plano Municipal de Educação Antirracista de Cachoeira – BA)
Sentimos essa necessidade de construir esse plano principalmente para trabalhar a formação de professores, porque eles não conseguiam aplicar a lei em sala de aula. Por isso, no Plano, colocamos 15 metas que buscam implementar projetos de intervenção pedagógica, que garantam materiais didáticos adequados e um currículo cujos conteúdos partam dos saberes locais das comunidades. Também estamos olhando para as questões estruturais, como a implementação de bibliotecas e brinquedotecas afrocentradas nas escolas em territórios quilombolas. Queremos mudar essa realidade que temos hoje.”
Sandra Liss Sant’Ana, coordenadora de Educação para Diversidade na Secretaria Municipal de Educação de Cachoeira (BA)
A construção do PMEAC foi subsidiada por discussões que têm acontecido no município desde 2019, como parte das formações do programa Parceria pela Valorização da Educação (PVE) Quilombola, que acontece nos municípios de Cachoeira e Maragogipe.
Ambos estão na Bahia, em regiões atravessadas pelo rio Paraguaçu, onde está instalada a Usina Hidrelétrica de Pedra do Cavalo, administrada pela Votorantim Energia (cujo instituto financia o projeto).
Atualmente em seu último ano de execução, o programa tem como foco a formação de gestoras(es) escolares e da equipe técnica das secretarias municipais de educação em duas vertentes: equidade racial na educação e implementação da Lei 10.639.
Para tal, o projeto busca fortalecer e/ou implementar alguns processos junto às secretarias, como:
– a implementação de agenda para uma rotina de estudo junto à equipe técnica da secretaria;
– o apoio na identificação e no mapeamento do perfil de profissionais da educação que atuam em escolas quilombolas e na elaboração de instrumento para realização de mapeamento das(os) profissionais;
– a sensibilização da Secretaria para dialogar sobre equidade racial;
– e a utilização de um plano de ação territorializado, com ações planejadas de forma contínua para 2023.
As formações acontecem com as(os) gestoras(es) escolares (diretoria e coordenação pedagógica) de escolas quilombolas e com a equipe técnica da Secretaria de Educação.
Durante as formações, que ocorreram de forma on-line com a pandemia e voltaram a ser presenciais, a(o) formadora(or) procura sempre ressaltar a importância de se trabalhar essa agenda o ano todo, desde a concepção do diagnóstico, passando por todo o planejamento, a implementação, o monitoramento e a avaliação das ações no decorrer do ano. Procura-se também garantir que elas cheguem até outros atores da comunidade escolar, principalmente o corpo docente.
Em uma dessas formações com o PVE Quilombola, nós incluímos não só o pessoal da área pedagógica da Secretaria, mas também os motoristas, as funcionárias da cozinha, o pessoal do administrativo etc. Foi muito boa, porque trouxeram conceitos e explicitaram a questão racial e o racismo no Brasil. Queríamos garantir que todos os funcionários entendessem bem esse cenário e a importância da construção do PMEAC. Todos elogiaram”.
Sandra Liss Sant’Ana
Para João Gabriel do Nascimento Nganga, assessor do PVE Quilombola, o movimento da Secretaria e da comunidade escolar em elaborar um documento como o plano municipal antirracista é muito motivado pelo histórico local de luta contra a escravização:
Cachoeira é um dos maiores municípios do Recôncavo Baiano com maior território quilombola. Ele se destaca por ter tido essa iniciativa de criar o plano, que sistematiza um conjunto de ações, individuais e coletivas, para implementar de fato a Lei 10.639 na cidade. Além disso, o processo de construção do plano garantiu momentos de escuta, com assembleias nas comunidades quilombolas, comunidades de terreiro, escolas e igrejas.
João Gabriel do Nascimento Nganga, assessor do PVE Quilombola
Nós, enquanto PVE, contribuímos por meio dos debates e das reflexões que suscitamos nos nossos encontros, e com uma leitura crítica do documento, com sugestões para que ele pudesse ser lançado e aprovado.”
Com essa iniciativa, a Secretaria de Educação de Cachoeira se inscreveu no Prêmio Espírito Público 2022, que busca reconhecer e compartilhar trajetórias de profissionais públicos. O PMEAC foi um dos três finalistas na categoria Votação Popular, que reconhece iniciativas que contribuem de maneira efetiva e relevante para a promoção da diversidade.
Quando tratamos de educação antirracista, compreendemos que só é possível torná-la efetiva por meio da ação. Assim, não se trata, apenas, de combater pensamentos, falas e atitudes racistas, mas sim da valorização e fortalecimento das identidades dos/as estudantes, descendentes de diferentes povos africanos que fazem parte da nossa trajetória. É na escola que podemos e devemos conscientizar, transformar e formar cidadãos e cidadãs antirracistas, conscientes do seu valor, da grandeza das suas identidades e ancestralidade.
(Plano Municipal de Educação Antirracista de Cachoeira – BA)
A equipe do PVE Quilombola empenha esforço tanto no município de Cachoeira quanto em Maragogipe para que a gestão escolar esteja alinhada com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na Educação Básica, garantindo que essa legislação seja cumprida no cotidiano escolar de forma prática.
O conteúdo formativo tem uma base única, mas está aberto para personalização – ou seja, é montado a partir de um diagnóstico, fruto da escuta da comunidade escolar e do território onde estão atuando, levando em consideração as demandas locais.
Isso significa que, ainda que trabalhe a questão da ancestralidade ou das religiões de matriz africana em ambos os municípios, o tempo e o grau de atenção dados a cada uma dessas temáticas podem divergir conforme elas aparecem – ou não – para a comunidade escolar local.
“Em Cachoeira, houve uma demanda maior por um documento sobre religiões de matriz africana, pois era uma questão que aparecia muito nas escolas. Já em Maragogipe, reservamos mais tempo para a questão da identidade, do pertencimento. Mas, em ambos, buscamos elaborar junto com os gestores e as secretarias práticas pedagógicas para que este valor que está nas Diretrizes chegue até o aluno”, explica João.
Eu gosto muito dessa maneira como o João aborda as questões, porque ele não faz algo verticalizado, no sentido de impor ideias, de lá pra cá. A gente constrói a partir da nossa realidade.”
Emanuela Nascimento da Cruz Ramos, coordenadora de Educação Quilombola na Secretaria Municipal de Educação de Maragogipe (BA).
Os resultados do trabalho são percebidos por meio de visitas presenciais realizadas às escolas, que demonstram que as práticas trabalhadas com as(os) gestoras(es) têm chegado até o chão da escola.
“Nós identificamos muito dos conteúdos que nós estamos trabalhando nessas formações ali no dia a dia da prática deles. Por exemplo, os materiais que temos curado para trabalhar a temática e indicado aos gestores já estão presentes na mesa dos professores. Também vemos atividades realizadas atualmente em parceria com a comunidade, enquanto antes a escola se mantinha afastada do que acontecia do lado de fora. Estes são resultados palpáveis“, explica João.
Fernanda Fraga, coordenadora pedagógica do PVE, acredita que o fortalecimento da identidade também é outro ponto forte e essencial do trabalho realizado no programa:
É fundamental trabalharmos o pertencimento dessas comunidades, dessas famílias, desses estudantes. É um processo de fora pra dentro, e de dentro pra fora da escola, ou seja, ele ultrapassa os muros. A partir do momento que a nossa grande aposta é essa identidade quilombola fortalecida do estudante, ele vai permanecer mais na escola – o que, a nosso ver, impacta nos índices de evasão, de abandono, de distorção idade-série, no sentido de diminuí-los, contribuindo assim para minimizar as desigualdades educacionais.”
Fernanda Fraga, coordenadora pedagógica do PVE
A coordenadora Sandra Liss Sant’Ana também consegue ver evidências no dia a dia escolar da mobilização em prol de uma educação antirracista no munícipio de Cachoeira:
“No início deste ano, quando fomos visitar as escolas no primeiro dia de aula, já conseguimos ver que a identidade visual dela não era só voltada para as pessoas brancas. Esse é um ponto muito positivo. Além disso, temos visto muitos projetos e atividades voltadas para refletir a identidade negra. Já caminhamos até aqui – e não foi pouco”, afirma.
Já Emanuela espera que todo o trabalho realizado agora dê frutos no futuro que sejam perenes:
Estou feliz que tudo o que traçamos no plano de ação foi cumprido. Mas a minha vontade mesmo é ver isso diluído no currículo, no dia a dia do chão da escola – e não apenas comemorado em datas específicas, como o 20 de novembro. A prática antirracista precisa despertar tanto pertencimento, para que os estudantes entendam como aquela comunidade e aquela escola surgiu no território, como para desconstruir estigmas e estereótipos.”
Emanuela Nascimento da Cruz Ramos, coordenadora de Educação Quilombola na Secretaria Municipal de Educação de Maragogipe (BA).
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