Questionar as propostas de terceirização da gestão escolar é entender que a educação não é um fim em si mesmo e que não é só medida por resultados acadêmicos; saiba mais
Por Stephanie Kim Abe
Há exatamente um mês, no dia 10/03, uma audiência pública na Comissão Permanente de Educação, Cultura e Esportes da Câmara Municipal de São Paulo discutiu a parceria assinada pela prefeitura da capital paulista com o colégio particular Liceu Coração de Jesus.
O termo de fomento prevê o repasse de R$ 388,3 mil por mês para que sejam oferecidas 500 vagas, metade delas de educação infantil e a outra metade de ensino fundamental. Além disso, há o pagamento de R$ 139, 4 mil pelo aluguel do espaço.
A discussão desse termo acontece desde o final do ano passado, quando o colégio localizado no centro de São Paulo anunciou que fecharia as portas por não conseguir mais manter as suas atividades.
O vereador Celso Giannazi (Psol) abriu as discussões reconhecendo a importância do colégio Liceu e da sua tradição, com mais de 130 anos de serviço, e enfatizando que a questão é a possível inconstitucionalidade do termo assinado e da falta de fiscalização. Ele lembrou que a Constituição Federal proíbe o repasse de verba pública para escolas particulares a não ser que haja falta de vagas – o que não acontece no ensino fundamental da rede pública da cidade.
Art. 213. Os recursos públicos serão destinados às escolas públicas, podendo ser dirigidos a escolas comunitárias, confessionais ou filantrópicas, definidas em lei, que:
I – comprovem finalidade não-lucrativa e apliquem seus excedentes financeiros em educação; II – assegurem a destinação de seu patrimônio a outra escola comunitária, filantrópica ou confessional, ou ao Poder Público, no caso de encerramento de suas atividades.
§ 1º Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio, na forma da lei, para os que demonstrarem insuficiência de recursos, quando houver falta de vagas e cursos regulares da rede pública na localidade da residência do educando, ficando o Poder Público obrigado a investir prioritariamente na expansão de sua rede na localidade
“Se a gente abrir esse precedente hoje, contrariando inclusive a Constituição Federal, a gente estaria possibilitando que amanhã o prefeito ou qualquer outro que venha a assumir o cargo transfira recursos para salvar qualquer outro colégio particular de São Paulo“, disse o vereador.
Há dois inquéritos no Ministério Público de São Paulo (MP-SP) para investigar o convênio, sendo um na Promotoria do Patrimônio Público e outro no Grupo de Atuação Especial de Educação.
Projetos de terceirização
A parceria da prefeitura com o Colégio Liceu é vista como uma ameaça à educação pública e a concretização do PL (Projeto de Lei) 573/202, que acendeu alertas no ano passado por propor que OSCs (organizações da sociedade civil sem fins lucrativos) sejam autorizadas a gerir escolas municipais de ensino fundamental e médio.
A ideia é implementar um programa de “gestão compartilhada” em algumas escolas. Em seu art. 10, o PL permite que as organizações sociais estruturem “a matriz curricular, o projeto político pedagógico, as metodologias de ensino e organização escolar, assim como os materiais pedagógicos da escola assistida desde que aprovados previamente pela Secretaria Municipal de Educação”. E, segundo o art. 11 do PL, as OSs poderão contratar professoras(es), diretoras(es), vice-diretoras(es) e secretaria escolar.
Mas esse não é o primeiro projeto que aparece no Brasil com a mesma intenção de terceirizar a gestão de escolas públicas. Muito pelo contrário. Nos últimos 10 anos, outros diversos projetos similares apareceram em diferentes estados brasileiros.
Em 2015, o então governador de Goiás, Marconi Perillo (PSDB), lançou um programa em que previa o repasse da administração de 23 escolas da rede estadual para organizações sociais. Houve embates e ocupações de estudantes às escolas.
No ano passado, o governo do Paraná lançou o Projeto Parceiro da Escola, que também busca repassar à iniciativa privada a administração de 27 escolas localizadas em Curitiba e na região metropolitana.
Em Minas Gerais, essa terceirização já ocorre desde janeiro de 2022 em três escolas estaduais que oferecem o ensino médio e que fazem parte do intitulado Projeto Somar: Adelino Castelo Branco, em Sabará, e Maria Andrade Resende e Francisco Menezes Filho, em Belo Horizonte.
Novo gerencialismo
Por mais que esses diferentes projetos não sejam exatamente iguais, Marcelo Donizete da Silva, professor doutor da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) no Departamento de Educação e diretor da Associação dos Docentes da UFOP (Adufop), enfatiza que a lógica por trás de todos eles é a mesma: a do Novo Gerencialismo.
Nesta perspectiva do Novo Gerencialismo, ligado às ideias trazidas pelo sociólogo Stephen J. Ball, o espaço escolar é visto como um espaço de produção, e a educação como uma atividade produtiva como outra qualquer. Ou seja, a educação é vista como uma atividade fim, e não como uma atividade meio. Assim, foca-se apenas em resultados e a avaliação – como o Ideb – passa a ser o principal instrumento para avaliar esse processo.”
Marcelo Donizete da Silva
Assim, olhando para a educação com esse caráter extremamente prático, coloca-se como central o papel da gestão escolar no “sucesso”– ou não – da instituição escolar. Em outras palavras, a gestão passa a ter uma concepção de gerência.
Ao passar a terceirizar a gestão escolar para uma organização social, a participação do Estado diminui. As OSs ficam responsáveis pela contratação de pessoal e administrar os recursos. O Estado passa a ser responsável apenas por repassar os recursos – e esse seria o suposto ganho para o Estado, ao realizar parcerias como essas. Daí muitos críticos a essas propostas entenderem a terceirização da gestão ou os conveniamentos como um caminho para a privatização.
“Uma vez que você transfere a administração para o setor privado, o Estado pode deixar de realizar concursos para professores, por exemplo. A contratação passa a ser feita de forma direta na escola ou por contrato temporário. O salário das(os) professoras(es) pode ser atrelado aos resultados apresentados no Ideb. Uma contratação temporária significa que você não precisa mais discutir ou pensar planos de carreira docente“, diz Marcelo.
O professor também lembra que essa lógica gerencial é um reflexo do neoliberalismo que vem se estruturando no mundo todo e que acaba por influenciar também a forma como são pensadas as políticas públicas em educação:
Não podemos esquecer que a forma de empregabilidade mudou hoje em dia. A nova lógica do emprego tem como centro a ideia do empreendedorismo, da pessoa ser a sua própria patroa, não mais ter uma carteira assinada ou um emprego formal. Isso se reflete na escola e na forma como ela é pensada.”
Marcelo Donizete da Silva
Por que a lógica empresarial não funciona na escola
Em 2021, o filho do professor Marcelo estudava na Escola Estadual Francisco Menezes Filho, uma das três que estão dentro do Projeto Somar. À época, por ser professor da UFOP, Marcelo foi chamado para conversar com os familiares dos estudantes sobre o projeto e as suas implicações.
“Notei que muitas famílias veem esse modelo de terceirização como extremamente positivos, porque é uma maneira, por exemplo, de fazer a vigilância sobre os professores. Aquele profissional que não estiver dando conta ou apresentando bons resultados pode ser demitido. É muito comum vermos pais que se preocupam apenas com as notas dos filhos nas disciplinas”, relembra.
Mas ele enfatiza, tal como fez na conversa com a comunidade escolar da Francisco Menezes, que o que funciona para uma empresa não funciona para uma escola, pois elas têm objetivos totalmente diferentes. Ainda que seja importantíssimo pensar na empregabilidade das(os) estudantes, a lógica da educação não é somente de mercado e voltada para o mercado.
A escola tem uma outra realidade e uma outra função. Claro que é importante olhar para os resultados acadêmicos dos estudantes. Mas não podemos pensar a educação no seu caráter extremamente tecnicista. Ela é feita para educar, para produzir conhecimento e, principalmente, para formar cidadãs(ãos) em todos os seus aspectos: social, humano, ético, estético, antropológico, social, cultural”.
Marcelo Donizete da Silva, professor doutor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
Vale lembrar também que a educação pública tem como base a gestão democrática, ou seja, aquela que é construída a partir da participação de toda a comunidade escolar. “A gestão escolar vai muito além do seu caráter administrativo. É preciso pensar na questão pedagógica, principalmente, e no seu viés político também”, reforça o professor da Ufop.
Marcelo defende que a própria formação integral das(os) estudantes é uma maneira também de ajudar a dar mais empregabilidade para as gerações que vêm, assim como para que elas possam pensar de forma mais crítica sobre sua participação na sociedade e as políticas públicas que as afetam.
Quando você não discute cultura, política, questões sociais, o fosso da desigualdade aumenta, porque não estimulamos a participação da população e a discussão sobre que tipo de educação queremos, qual a melhor formação que a escola precisa dar etc.”
Marcelo Donizete da Silva, professor doutor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
Além disso, é apenas com uma gestão democrática de fato, por meio da participação da população, que a educação poderá melhorar, e as funções da gestão escolar, assim como da gestão educacional, poderão ser mais bem discutidas e planejadas.
Para que as(os) professoras(es) possam exercer melhor sua função, é preciso garantir, por exemplo, condições de trabalho adequadas, que lhes permitam planejar pedagogicamente suas aulas. Assim como para que a gestão escolar possa apoiar seu corpo docente nas questões pedagógicas, é preciso que tenham tempo para tratar delas para além dos aspectos administrativos.
“O que acontece hoje é que as(os) professoras(es) têm que trabalhar em três ou quatro escolas para ter um salário que lhes permita sobreviver. Como vão fazer uma discussão pedagógica com essa carga de trabalho? Existe uma série de demandas para que a gestão tenha uma atuação mais específica e para que possamos pensar numa educação de qualidade“, diz Marcelo.
Por isso, o professor acredita que a comunidade escolar precisa participar mais e ter maior clareza do seu papel também na fiscalização do poder público:
Entender o todo do processo educacional passa por quem vivencia a escola no seu cotidiano – que são as(os) diretoras(es) de escola, coordenadoras(es), professoras(es), estudantes, familiares etc. São elas e eles quem entendem justamente quais são as demandas necessárias para se ter uma educação de qualidade. Para se ter uma gestão democrática de fato, esses sujeitos precisam ser mais participativos. A comunidade precisa participar mais da vida escolar“.
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