Teatro e educação: o legado de Zé Celso e o Teatro Oficina

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Teatro e educação: o legado de Zé Celso e o Teatro Oficina

Entenda a importância do dramaturgo Zé Celso, morto no dia 06/07, e da sua companhia Teatro Oficina, e veja como potencializar o trabalho com a arte cênica na escola

Por Stephanie Kim Abe

O poder do teatro é o poder da pessoa humana. O poder que a pessoa humana tem de intervenção nas coisas.”

Zé Celso. Foto: Garapa

(Zé Celso)

A morte do dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, mais conhecido como Zé Celso, na última quinta-feira (dia 06/07) pegou a todas(os) de surpresa. O diretor teatral estava internado no hospital por ter 53% do corpo queimado devido a um incêndio que atingiu a sua residência na capital paulista. Ele tinha 86 anos.

Desde então, diversas homenagens têm sido feitas a Zé Celso – desde os aplausos e os cânticos que embalaram o seu velório no Teatro Oficina até artigos em jornais e podcasts especiais sobre a sua vida e obra. 

Zé Celso foi o criador, junto com Renato Borghi e outros estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, do Teatro Oficina, em 1958, no bairro do Bixiga, na capital paulista.

O teatro no Brasil foi constituído em bases europeias desde o princípio, primeiro com os jesuítas, depois com a colônia portuguesa. “As companhias portuguesas que chegavam aqui eram maravilhosas. O nosso teatro vinha, portanto, de manifestações muito eurocêntricas, que sempre eram vistas como mais importantes que as manifestações populares brasileiras“, conta Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora.

Foto: João Caldas

Desde o começo, o Teatro Oficina já teve uma relevância muito forte no cenário teatral nacional. Junto com o Teatro de Arena, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e outros movimentos, ele construiu uma cultura de boas interpretações, uma cultura de construção de identidade dos atores brasileiros que deixou um importante legado para o teatro nacional e internacional”. 

Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora

Teatro Oficina. Foto de Henrique Artuni

Zé Celso e o Teatro Oficina trouxeram não só formas inovadoras de trabalhar as peças, como deram vida a produções brasileiras críticas, em plena ditadura militar. Entre as mais famosas, estão a apresentação de O Rei da Vela, de Oswald de Andrade, em 1967, e a produção de Roda viva, de Chico Buarque, em 1968 – em cuja apresentação no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, a atriz Marília Pêra e outros atores foram agredidos pelo Comando de Caça aos Comunistas (CCC).

O teatro sempre é político, mas, na estrutura que o Zé Celso estabeleceu de fazer teatro, tornou-se extremamente político. Ele provocava o engajamento do ator político, aquele que vai além das palavras concretas. É sobre o modo d’ele estar no palco, pensar o personagem, se relacionar com a obra e a plateia. E era, sobretudo, sobre a contextualização da peça, que passa a ser muito importante, ou seja, a questão social ou política do momento na ação de fazer teatro”, explica. 

Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora

Antes de falecer, Zé Celso trabalhava na montagem da produção A Queda do Céu, adaptação do livro homônimo escrito pelo yanomami Davi Kopenawa.

Para Pê Braga, doutoranda em Educação e pedagoga na Escola de Aplicação da Universidade de São Paulo, era na forma de fazer teatro de Zé Celso que estava o seu maior encantamento. As produções do diretor eram, para ela, como rituais próprios, que convidavam as(os) espectadoras(es) a ser mais que meras(os) espectadoras(es):

Foto: acervo pessoal

Quando íamos assistir uma peça do Oficina, nos sentíamos impelidas a participar daquela grande festa que era a peça. Era uma experiência de intensa participação da plateia, porque as peças tinham música, dança, às vezes até comida. Era como se Zé Celso criasse rituais próprios, uma experiência comunitária de uma comunhão, algo muito vivo e carnal. Me lembro de, em uma de suas peças, estar deitada no chão do Teatro Oficina, olhando para o teto, muitas luzes, cantando uma música que de tanto ser cantada já tinha aprendido. Era algo inigualável“. 

Pê ressalta que Zé Celso nunca foi um teórico das artes cênicas, tendo trabalhado muito com a prática – mas é justamente isso, aliado ao seu posicionamento político sempre muito presente e combativo, que deixa memória:

Foto: Garapa

Zé nos lega um espírito de desobediência: estética, civil, artística, de gênero. É um espírito de irreverência também, que nos faz pensar o teatro como esse espaço onde tudo é possível e como alguma coisa profundamente transformadora pra plateia. E isso é muito inspirador por si só“, diz.


O que o teatro ensina? 🎭

O teatro é uma linguagem artística muito potente para se trabalhar diversos aspectos. “O teatro é corpo, é emoção e é pensamento. É muito complexo. Por isso ficamos assim tão mobilizados diante de uma peça. Quando ela é boa, nos dá existência de vida. Quando é ruim, queremos ‘matar’ todo mundo. O teatro mobiliza, e faz com que essa efemeridade fique eterna”, explica Lígia, que é também diretora artístico pedagógica do Célia Helena Centro de Artes e Educação.

Ele trabalha muito com o corpo, mas também ajuda a desenvolver outras habilidades e características importantes – e por isso vale muito ser trabalhado com crianças e adolescentes nas escolas. Para a diretora teatral:

O teatro é poderosíssimo. Ele é uma ação bastante sofisticada, complexa e, enquanto formação, é uma ação potencialmente incrível. O teatro é uma arte que junta todas as outras artes em cena: agrega as artes visuais, a música, a literatura, enfim, vários conceitos de criação artística“. 

Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora

A mais evidente dessas habilidades, como costuma ocorrer com as linguagens artísticas no geral, é a criatividade. “O teatro é esse ambiente onde podemos ser quem quisermos, criar as histórias que quisermos, inventar novos mundos, fantasiar sobre a realidade. Isso é o que há de mais bonito no teatro”, diz a pedagoga Pê.

O trabalho em grupo é outro aspecto muito presente e essencial nas produções teatrais – e, ao contrário do que ocorre em outras disciplinas, é difícil escapar dessa coletividade, explica a pedagoga:

O trabalho com o teatro é radicalmente grupal. Ou seja, todo mundo precisa estar ciente da função de todas(os) para que a peça ocorra. Num trabalho teórico em grupo de escola, é comum que os membros se dividam, cada um faz uma parte, um aqui, outro ali, meio separado e, no final, eles se juntam. No teatro, isso não têm como acontecer”. 

Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora

Como consequência, o teatro acaba sendo, inevitavelmente, um lugar de conflito e, portanto, “ele nos ensina a lidar com diferentes pessoas e a estar em coletivo sempre. O teatro não acontece sozinho”, afirma Pê. 

Fazer uma peça tomar vida também requer concentração e estar presente. “Se você não está atenta, não está no ‘aqui e agora’, não está totalmente voltada para aquilo que está fazendo naquele momento, a cena não acontece. O teatro nos ensina a nos colocar de corpo e alma no que estamos fazendo”, lembra a pedagoga. 

Por fim, ao nos colocar em papeis de representação de personagens distintos(as) e a nos apresentar diante de uma plateia, o teatro apura o nosso olhar: sobre nós mesmas(os) e sobre as(os) outras(os). É, portanto, um exercício constante de autorreflexão e alteridade.

O teatro nos força a olhar no espelho e a rever os nossos valores, as nossas questões, a nossa imagem de nós mesmos. Quando você constrói uma personagem, você parte da sua memória, da sua imaginação, daquilo que você conhece, daquilo que você já viu de outras pessoas, da observação que você faz no mundo para construir uma personagem. Então o teatro nos põe em intensa observação sobre o humano: seus gestos, suas ações, seus defeitos, suas virtudes. E nos coloca todas essas questões de forma encarnada, não teórica“, reforça Pê.

Pê Braga, doutoranda em Educação e pedagoga

Lígia Cortez ressalta ainda outros aspectos que florescem com oficinas ou aulas de teatro:

Ter contato com o público, estar perante uma plateia, falar e acreditar no que pensa e desenvolver ideias são outras habilidades importantes. A improvisação também é um lugar muito potente de adaptação e de liderança“.

São Paulo 04/03/1026 Ato da Cultura pela Democracia no Teatro Oficina . Foto Paulo Pinto/Agencia PT

No caso das produções do diretor Zé Celso, a pedagoga ainda destaca que é possível inspirar-se para atividades na escola, entre outros aspectos do fazer artístico do dramaturgo, no seu trabalho com os coros:

Zé Celso costumava usar coros nas suas peças, e muitas vezes quem participava deles não eram artistas. Esse trabalho do Oficina com pessoas que não têm preparo técnico, mas que participam, pode nos ajudar a pensar como incluir e trabalhar com aqueles estudantes que são mais tímidos, que não necessariamente querem ter um papel de protagonista, mas que podem muito bem fazer parte do coro, juntas, e assim se sentir mais à vontade para participar“.

Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora


Apoio para as artes na escola 

Um trabalho de qualidade nas escolas, para ser efetivo e possibilitar o desenvolvimento de todo esse potencial intrínseco às artes cênicas, só pode ser realizado se houver condições adequadas nas instituições escolares e incentivo das secretarias de educação. 

Para Pê Braga, isso vai desde a formação das(os) educadoras(es), inicial e continuada, à garantia de infraestrutura adequada e recursos para realizar saídas culturais. 

“É comum vermos professoras(es) que se formam na faculdade e não voltam a estudar. E esse estudar, a meu ver, tem um sentido amplo: não só estudar teoricamente sobre as artes, mas repertoriar-se culturalmente. Ir ao teatro, exposições, museus, para estarmos na sala de aula como agentes culturais que somos”, defende. 

Lígia chama atenção para a forma como as(os) educadoras(es) precisam estar dispostas(os) a trabalhar com as(os) estudantes no fazer teatral

Mais importante do que a preparação da(o) professora(or) para dar aula, é a preparação para escutar as crianças. Existe uma responsabilidade muito grande sobre aquilo que acolhe ou não dentro do processo de criação de uma criança – e isso pra ela é muito significativo. A(O) professora(or) também tem que estar preparada(o) para dialogar com esse material”, diz.

Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora

No quesito estrutura escolar, Pê Braga acredita que falta apoio financeiro para que o trabalho se realize com sucesso:

A maioria das escolas não tem uma sala de artes própria. Não estou nem falando de um teatro. Estou falando de uma sala sem carteiras, com espaço vazio, chão limpo, em que os estudantes possam deitar no chão se quiserem circular livremente. É preciso dinheiro nas escolas tanto para garantir essa estrutura básica, como para viabilizar o transporte para passeios, para ver uma exposição, assistir uma peça etc.”. 

Pê Braga, doutoranda em Educação e pedagoga

Para a diretora teatral Lígia Cortez, a qualidade do trabalho com as artes está muito ancorado no projeto político pedagógico da instituição escolar, na forma como ela está aberta ao fazer artístico e toda a sua “desorganização”:

Qualquer atividade artística bagunça, gera caos, desestrutura. Arte pede pra puxar cadeira pra cá, colocar pra lá, sujar a parede, fazer uma música, gritar, demanda uma apresentação no fim de semana. Essa ‘desorganização’ é muito criativa e muito formadora. Mas, para que exista, precisa ter espaço e acolhimento dentro da escola. O pensamento da escola precisa estar aberto a essas práticas“.

Lígia Cortez, atriz, diretora teatral, arte-educadora e pesquisadora

Com 12 anos de experiência como professora de teatro em escolas públicas e particulares, a pedagoga Pê ressalta que o currículo escolar precisa também dar o devido valor e espaço às linguagens artísticas

Nas escolas municipais de São Paulo, por exemplo, só temos uma hora de Artes para as crianças do ensino fundamental I. Isso é um crime. Em muitas escolas do ensino médio, como institutos federais, os estudantes têm duas horas de aula de Artes no primeiro ano apenas. Então essa é a desvalorização que vemos da nossa disciplina atualmente, sendo relegada a segundo plano – o que atrapalha muito que as linguagens artísticas sejam desenvolvidas plenamente na escola, entre elas o teatro“, lembra.

Pê Braga, doutoranda em Educação e pedagoga


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