E se você conhecesse o perfil socioeconômico das suas turmas?
Entenda por que a rede municipal de Capão Bonito (SP) resolveu aplicar um questionário socioeconômico com suas(seus) estudantes e conheça as ações programadas com base nos resultados
Por Stephanie Kim Abe
Vamos começar com uma reflexão? Pense nas suas turmas para responder às seguintes perguntas:
📍 Quantas(os) estudantes são pretas(os)? E brancas(os)? 📍 Quantas(os) moram perto da escola? Quanto tempo levam para chegar na escola? 📍 Com quem vivem? Somente com os pais? Com a mãe? Com a avó? 📍 Qual a renda mensal da família? 📍 Quantas vezes vão ao cinema ou ao teatro na semana? Aliás, será que já foram ao cinema ou ao teatro na vida? 📍 Em quais áreas do conhecimento elas(es) têm mais facilidade nas aulas?
O mais provável é que a maioria das(os) professoras(es), coordenadoras(es) pedagógicas(os) e gestoras(es) tenha uma noção geral dessas questões, mas não uma resposta exata.
Era o caso, por exemplo, da professora de inglês Emmiliane Savoldi Varela. Ela trabalha na rede municipal de Capão Bonito, interior de São Paulo, desde 2015, tendo passado pelas seis escolas que ofertam os anos finais do ensino fundamental.
“Eu olho para o meu aluno e não tenho ideia do que ele passa. Apesar de passarmos bastante tempo com a turma, convivemos pouco com eles para de fato saber que a questão é mais embaixo”, relata.
A “questão mais embaixo”‘ a que ela se refere é, por exemplo, o fato de que metade de suas(seus) estudantes sobrevivem com uma renda familiar menor que dois salários mínimos – sendo que 38,5% sobrevivem com menos de um. Ou que praticamente 60% delas(es) nunca ou raramente leem e nunca foram ao teatro ou ao cinema.
Eu imaginava que os estudantes tivessem uma condição mais baixa, porque a escola onde trabalho é uma das mais vulneráveis da região, mas não achava que era tanto. Os dados da renda familiar me deixaram bem surpresa, ainda mais se considerarmos que eles vivem em casas com oito, dez pessoas”, diz.
Emmiliane Savoldi Varela, professora de inglês
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Do nacional para o local
Desde a década de 1960, com o Relatório Coleman (1966), sabe-se que o nível socioeconômico das(os) estudantes tem o maior impacto nos resultados de avaliações de rendimento. Esse é considerado um fator externo à escola que influencia no aprendizado, assim como o “capital cultural” das famílias (conceito de Bourdieu).
O documento mostra, entre outros achados, que, enquanto as(os) alunas(os) com deficiência apresentam mais matrículas nas regiões de maior nível socioeconômico, a maioria das(os) estudantes pretas(os), pardas(os) e mais pobres estão matriculadas(os) nas escolas de nível socioeconômico mais baixo.
“Os grupos mais excluídos, que são geralmente as crianças de famílias mais pobres, que vivem no campo, pretos, indígenas e quilombolas vivenciam as situações mais precárias de escolarização. Sendo assim, acabam enfrentando todas as formas de exclusão e marginalização, bem como desigualdades no acesso, na participação e nos resultados de aprendizagem”, lê-se no documento. (p. 7)
Ao serem confrontados com levantamentos nacionais sobre as desigualdades, os então professores formadores e orientadores de Projetos Educacionais Fagner Augusto Amâncio e Lucas Rafael de Barros decidiram olhar para a realidade da rede municipal de educação de Capão Bonito, município que conta com a parceria do programa Parceria pela Valorização da Educação (PVE).
Ao participar das formações do PVE, fomos apresentados a levantamentos de dados em nível nacional de desigualdades educacionais, com recorte de cor e raça. Elas serviram como uma provocação, e nos questionamos: será que aqui em Capão Bonito, cidade pequena com cerca de 50 mil habitantes mas de grande extensão territorial, essas desigualdades também ocorrem?”
Fagner Augusto Amâncio, professor e formador de Capão Bonito
Para investigar essa tese, eles criaram um questionário com o objetivo de levantar o perfil socioeconômico do alunado da rede, distribuído para todas(os) as(os) estudantes, da educação infantil aos anos finais do ensino fundamental. Aplicado em maio de 2023, o questionário teve cerca de 80% de respostas.
O questionário trouxe perguntas sobre autodeclaração de raça/cor, situação familiar e de renda, condições de moradia, acesso e frequência a bens e atividades culturais e esportivas, hábitos de leitura e, inclusive, sobre atendimento psicológico. Daí o nome do Questionário Psicossocial – Avalia CB.
João Gabriel do Nascimento Nganga, formador do PVE, conta que:
Um dos diferenciais do PVE é justamente esse de, ao mesmo tempo, sensibilizar e instrumentalizar essa dupla gestora da escola, porque, como nós não chegamos até os professores, estamos criando condições para que esse gestor, diretor ou coordenador pedagógico tenha possibilidades, habilidades, argumentos para falar com os docentes.”
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Descobrir o que impacta na aprendizagem
O objetivo principal da aplicação do questionário foi correlacionar esses dados com os da avaliação de rede – que, desde o ano passado, abrange todas as áreas do conhecimento para os anos finais, não apenas Língua Portuguesa e Matemática.
Hoje ocupando o cargo de diretor formador, Lucas de Barros explica por que essa nova avaliação é inovadora:
Colocamos questões de todas as disciplinas, de forma a conseguir acompanhar o aprendizado dos estudantes por área de conhecimento. Isso ajuda os professores e as famílias, principalmente de alunos do 9o ano, a apoiar o estudante que está prestes a entrar no ensino médio e pensar em uma carreira para o vestibular. Além disso, nós passamos a usar a tecnologia na prova, o que permitiu fazer diferentes exercícios e explorar as habilidades dos estudantes”.
Lucas de Barros, professor e formador de Capão Bonito
Essa análise dos dados de rendimento com perfil socioeconômico foi feita para as 21 turmas de 6o e 20 turmas de 9o ano, e a devolutiva realizada com as(os) professoras(es) das seis escolas logo depois.
“Queríamos fazer isso o mais rápido possível, porque sabemos que, se demoramos muito, o aluno já não é mais o mesmo. Se ele tinha uma dificuldade em uma determinada habilidade, talvez daqui a dois meses ela tenha se agravado“, explica Fagner.
“Focamos no 6o ano porque são os estudantes que ainda não conhecíamos, que estão chegando nessa etapa do ensino fundamental. E, no caso dos estudantes do 9o ano, pensamos nas avaliações externas que eles fariam”, conta Lucas.
As turmas que tiraram notas mais altas na avaliação, tanto do 6o ano (nota 72) quanto do 9o ano (nota 58), têm mais estudantes brancas(os), com renda familiar mais alta, e mais estudantes que leem com mais frequência e têm acesso a atividades culturais e esportivas, entre outros fatores.
Na escola com turmas com melhores notas, 30% das estudantes vêm do centro da cidade, há mais familiares de estudantes com ensino superior completo (27% no caso das mães, e 16% no caso dos pais) e a taxa de repetência é a menor entre as seis escolas de ensino fundamental II (3,2%).
Já na escola com as menores notas, a taxa de repetência é mais que o dobro (7%) da escola com melhor resultado e metade das(os) estudantes vivem com renda familar mensal menor que um salário mínimo.
“Nós conseguimos ter uma visão melhor do público que cada escola atende e a diversidade entre eles”, diz Fagner.
Para João Gabriel, além de ser louvável a rapidez com que Capão Bonito tem realizado esse trabalho de tabulação e análise de dados, são as ações que têm surgido com base nele que mostram quão significativa é essa iniciativa:
O que fazer a partir dessas evidências para que não sejam apenas uma produção de dados? Quando você tem resultados de questionário socioeconômico e de aprendizagem, você sabe qual escola e turma lê menos, acessa menos equipamentos públicos, é mais vulnerável. A partir disso, qual projeto encaminhar para realizar com essa sala, com esses adolescentes? Qual a melhor atividade para recompor aprendizagens de forma mais efetiva? Como dar mais acesso a quem mais precisa?“, questiona.
João Gabriel do Nascimento Nganga, formador do PVE
Para trabalhar a questão das desigualdades com base nos marcadores de cor/raça, a rede realizou o primeiro ciclo de formação antirracista e tem buscado incorporar uma perspectiva antirracista no currículo.
Muitos alunos carregam hábitos racistas sem perceber. O Currículo em Ação bate muito nessa tecla do combate ao racismo e ao bullying. No 6o ano, por exemplo, ao trabalhar as questões das características físicas em inglês, falo sobre a importância de ser respeitado, de cada um ter orgulho de seu próprio jeito e de suas próprias características”, diz.
Emmiliane Savoldi Varela, professora de inglês
Capão Bonito é uma cidade predominantemente branca e, quando discutimos sobre esses assuntos, ouvimos diretores que contam que é a primeira vez que estão tendo contato com essa temática. Isso mostra o quanto ainda precisamos avançar na educação antirracista”, diz.
João Gabriel do Nascimento Nganga, formador do PVE
No caso do acesso a equipamentos e programações culturais, a Frente de Mobilização do PVE (composta por diferentes atores da sociedade civil e de outras secretarias, como Transporte e Cultura) propôs uma parceria com um cineasta local para a exibição de filme com debate. Também houve uma ida ao teatro em setembro.
🎞️ Assista ao vídeo do Cenpec sobre o papel da escola no combate ao racismo, a produção faz parte da campanha sobre importância da autodeclaração de raça/cor na construção de uma sociedade mais justa e equitativa:
Ao pensar esses projetos da prefeitura, discutimos com supervisores, equipe técnica e gestora sobre a distribuição dessas viagens e dessas atividades. Será que é justo eu dar o mesmo número de viagens para a escola periférica e para a escola central? Não seria melhor distribuir de acordo com a necessidade de cada realidade?“, questiona Fagner.
Fagner Augusto Amâncio, professor e formador de Capão Bonito
“Com isso, eles querem trazer as escolas rurais para assistir o cinema, as escolas que estão mais distantes do centro urbano – que são, inclusive, onde também há um maior número de estudantes pretos e pardos, mais pobres etc”, diz João Gabriel.
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Planos futuros
Para Lucas, um dos maiores ganhos desse processo todo foi trabalhar esses resultados com as escola e o corpo docente, trazendo evidências que têm dado base para que o trabalho que a rede já realizava fosse legitimado e ganhasse o apoio de quem está na ponta:
“Passamos a olhar para a questão da equidade de forma diferente. O questionário trouxe algo concreto de como diferentes aspectos dificultam a aprendizagem dos estudantes. Por exemplo, saber quantos e quais estudantes vêm de zonas muito distantes, acordando às 4h para vir à escola, pode nos ajudar a pensar melhor nos projetos municipais para apoiá-los. Acredito que os professores conseguiram entender isso, e ver sentido no nosso trabalho e no deles.” Lucas de Barros
Como construir educação de qualidade com equidade? Conheça nossa missão e ações para atingi-la:
“Também tratamos da importância de não comparar um aluno com o outro ou uma escola com a outra, devido a essas particularidades de cada realidade”, acrescenta Fagner.
As(Os) professoras(es) contam que a meta, no ano que vem, é fazer esse diagnóstico da rede em março, tabulando e analisando os dados do questionário socioeconômico para todas as séries.
Priscila Beltrame Franco, técnica do PVE pelo Cenpec, ressalta a importância de iniciativas como a de Capão Bonito para realizar mudanças e combater as desigualdades educacionais:
Realizar um questionário como esse, que pergunta sobre raça e cor, por exemplo, requer disposição para errar em assuntos sensíveis. Há melhoramentos a serem feitos no questionário, mas o mais interessante foi essa vontade dessa equipe de fazer e de aprender no meio do processo. Precisamos sim começar a falar sobre o que gera incômodo para gerar mudanças”.
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