Caminhos para trabalhar o currículo dos anos finais do ensino fundamental
Olhar mais para o sujeito de aprendizagem, garantir a participação na construção do currículo, contextualizar os conhecimentos e buscar a interdisciplinaridade são alguns dos caminhos apontados; saiba mais.
Por Stephanie Kim Abe
A organização curricular é um entre os muitos problemas que encontramos nos anos finais do ensino fundamental – como uma transição entre 5o e 6o anos conturbada, com muitas mudanças e pouco apoio, e a não consideração das questões de desenvolvimento pelas quais passam as(os) adolescentes dessa etapa.
À primeira vista, a fragmentação do currículo no ensino fundamental II parece ser um dos principais complicadores para a aprendizagem das(os) estudantes dessa etapa de ensino. Mas a verdade é que uma organização pedagógica é necessária, como explica Erica Catalani, coordenadora de programas e projetos do Cenpec:
“A fragmentação em componentes curriculares é feita para que possamos mapear estudos que serão garantidos. Mas precisamos organizar a experiência pedagógica de maneira a superar essa fragmentação total, pois, na realidade, nada está de fato fragmentado. Por exemplo, podemos planejar um estudo do meio e proporcionar a percepção de que os conhecimentos de ciências, de matemática, de geografia e de história podem nos ajudar a compreender melhor os desafios dessa região. Se não organizamos experiências escolares em que os estudantes percebem como o conhecimento é importante para convivermos cada vez melhor ao protagonizar processos investigativos com autonomia, há grande chance de haver desinteresse e, consequentemente, dificuldade de aprendizagem.”
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) traz essa explicação e ressalta a importância de fortalecer a autonomia das(os) estudantes nesse processo:
“Ao longo do Ensino Fundamental – Anos Finais, os estudantes se deparam com desafios de maior complexidade, sobretudo devido à necessidade de se apropriarem das diferentes lógicas de organização dos conhecimentos relacionados às áreas. Tendo em vista essa maior especialização, é importante, nos vários componentes curriculares, retomar e ressignificar as aprendizagens do Ensino Fundamental – Anos Iniciais no contexto das diferentes áreas, visando ao aprofundamento e à ampliação de repertórios dos estudantes. Nesse sentido, também é importante fortalecer a autonomia desses adolescentes, oferecendo-lhes condições e ferramentas para acessar e interagir criticamente com diferentes conhecimentos e fontes de informação.” (BNCC, 2018, p. 60)
Como educadoras e educadores podem ajudar a enfrentar as desigualdades educacionais nos anos finais do ensino fundamental? E quais caminhos e estratégias podemos adotar para fortalecer a recomposição das aprendizagens nessa etapa?
Essas são as perguntas que norteiam a conversa descontraída entre professoras no quinto episódio do podcast Educação na ponta da língua. Ouça já!
Do que está escrito na BNCC para o que acontece dentro da sala de aula, há um processo que inclui a construção do documento curricular do estado ou município, e a sua tradução para prática pedagógica em cada escola.
“O Brasil é um país de extensão territorial muito grande, além de diverso. Assim, quem acaba fazendo esse diálogo entre os documentos curriculares e a sala de aula é o professor”, explica Érica.
Por isso é tão importante que as(os) docentes façam parte da construção do currículo, assim como as(os) estudantes e toda a comunidade escolar, garantindo uma gestão democrática.
Outro aspecto fundamental para garantir um trabalho com o currículo mais conectado com os anseios e os interesses das(os) adolescentes é justamente colocá-los no centro do processo de aprendizagem.
Eduardo de Moura Almeida, professor doutor formado em Letras e pesquisador de pós-doutorado na Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, explica que:
“A própria BNCC tem uma exigência de trabalhar com foco nas habilidades. O que acontece muito é o professor olhar para essa questão apenas, pensando em como desenvolver o conteúdo e então como isso se dará na prática. Nisso, uma prática que poderia ser mais abrangente e significativa acaba se perdendo”.
“É comum que as(os) professoras(es) dos anos finais tenham esse olhar mais para a área do conhecimento do que para o sujeito da aprendizagem. Porém, se não olhamos para as necessidades e os interesses das(os) estudantes, não vamos conseguir estabelecer uma educação voltada para a equidade. É preciso considerar onde o estudante mora, em qual contexto ele vive, quais os seus anseios”, diz Érica.
Diferentes maneiras de trabalhar
O professor Eduardo ressalta que é fundamental identificar e considerar as experiências sociais e emocionais das(os) estudantes quando se pensa em uma educação que quer promover o desenvolvimento integral de suas(seus) estudantes.
Ao fazer isso, é inevitável à(ao) professora(r) buscar diferentes maneiras de contextualizar o conhecimento ou trabalhar de forma transdisciplinar.
“Essa ideia de aprofundar conhecimentos específicos dentro de uma área e promover trabalhos por projetos ou transdisciplinares parece até um paradoxo e confunde muitos profissionais”, diz Eduardo.
Além do estudo do meio, exemplo citado anteriormente, é possível trabalhar com metodologias ativas ou projetos. No campo literário artístico, pode-se pensar em trabalhar discursos históricos e pedir para as(os) estudantes desenvolverem um podcast. Ou, a partir de um livro como Percy Jackson, trabalhar as mitologias e questões ambientais.
“Esses projetos, além de integrarem o currículo, dialogam com as culturas juvenis – o que é essencial para garantir uma escuta a esses adolescentes”, explica o professor.
A professora Érica lembra de uma prática citada pelo professor Wilson Queiroz, que atua na EMEFEJA Oziel Alves Pereira, em Campinas (SP) e faz parte do Coletivo Negro com Práticas Pedagogicas em Africanidades (CONEPPA), na qual utiliza as bonecas abayomis para refletir sobre aspectos da geometria no projeto que foi denominado Matemáfrica.
“Ele trabalha conceitos de geometria, já que as abayomis são bonecas feitas apenas com nós em tecidos. Não há costura alguma. Ele consegue dar uma sustentação à boneca abayomi ao produzir uma saia com um molde no formato de um tronco de cone. A partir dessa atividade, ele também discute a questão da valorização da cultura africana e da identidade étnico-racial com os estudantes”, explica Érica.
A coordenadora de projetos lembra que instituir esses movimentos de diferentes práticas e projetos integradores não significa dizer que todo conteúdo será desenvolvido na forma de projetos que articulam várias disciplinas.
“Talvez não seja possível trabalhar um determinado conteúdo em um projeto interdisciplinar ou transdisciplinar. Mas, nestes casos, é possível tratá-lo em uma oficina, em contextos em que esse conhecimento terá mais sentido para o estudante. Pensar: ‘como esse conhecimento se constituiu como algo importante para a humanidade, e como ele se relaciona com esse território e essa comunidade?'”, diz.
Propondo formações e reflexões
Conectar o conteúdo com a realidade da(o) estudante não é nenhuma tarefa nova, e tampouco é uma demanda exigida apenas das(os) professoras(es) dos anos finais do ensino fundamental. Mas, como os conhecimentos são mais complexos nessa etapa, muitas vezes eles acabam ficando mais distantes do dia a dia das(os) alunas(os).
“Na matemática, é muito comum que operações como adição, divisão, multiplicação – que são foco do trabalho nos anos iniciais – estejam presentes no cotidiano das crianças. Agora, embora o estudo uma equação do 2o grau (conteúdo dos anos finais) seja um conhecimento base para muitas tecnologias utilizadas no dia a dia do estudante, essa identificação não é tão evidente”, exemplifica Érica.
Como são conhecimentos mais aprofundados, eles requerem também professoras(es) mais bem preparadas(os) – o que não é a realidade em alguns estados brasileiros.
“Há alguns estados brasileiros em que nem todos os professores que ministram aulas de matemática são graduados na área de matemática. Isso pode acarretar , maior dificuldade em fazer a ponte entre o que é valorizado localmente pelo estudante e o que é de fato exigido em termos de desenvolvimento e avanço por conta de uma competência matemática descrita nos documentos curriculares”, aponta.
Diante dessa realidade e dos desafios de se trabalhar o currículo nos anos finais do ensino fundamental, Érica ressalta a maneira como o Cenpec costuma trabalhar diante desse cenário:
“Em projetos e assessorias, nós sempre organizamos com a rede uma reflexão sobre o currículo, pois queremos estabelecer um processo de aprendizagem que tenha maior coerência, seja mais significativo e pense no desenvolvimento do estudante em todas as suas dimensões. Nós proporcionamos ferramentas, discussões e diretrizes para a construção conjunta de um documento curricular, formulado no princípio da gestão democrática, e o fortalecimento de ações e percursos formativos que promovam o compartilhamento de práticas pedagógicas voltadas para a aprendizagem das(os) estudantes que apresentam dificuldades, algo que ainda representa um desafio para as equipes das secretarias”.
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