Artigo de Richard Romancini publicado originalmente em 2014 na Plataforma do Letramento
Richard Romancini*
Em “Dimensões do letramento digital”, discutimos a existência tanto de definições operacionais como conceituais do letramento digital. Pode-se perceber, então, a relativa analogia com o debate sobre as práticas de leitura e escrita relacionadas à alfabetização e ao letramento, processos distintos embora complementares.
Como discutem vários autores, a alfabetização envolve uma apreensão individual do sistema alfabético, com a aquisição de capacidades que se desdobram nas práticas sociais de leitura e escrita, em que se desenvolve o letramento. Enfim, este vai além da aquisição das competências fundamentais por um indivíduo, com preocupações relacionadas a usos mais desenvolvidos e críticos dos recursos culturais (digitais ou não).
Ao abordar a questão dos múltiplos letramentos digitais, é interessante observar que o letramento relaciona-se à participação competente em “eventos de letramento”, conforme discute Magda Soares (2002). Mas o que são tais eventos e como podemos levar essa ideia ao mundo digital?
Os eventos de letramento podem ser entendidos como qualquer ocasião em que o escrito está presente numa interação entre indivíduos, sendo relevante na própria interpretação do acontecimento.
Nesse sentido, no atual contexto, o desdobramento do letramento analógico para a realidade digital é evidente. Um exemplo: você informa ao taxista o endereço aonde quer ir e junto com ele consulta um guia de ruas impresso. Mas, com a disseminação do GPS, é provável que a leitura do mapa envolva agora um dispositivo tecnológico que atua como mediador na interação. Em ocasiões como essa, em que o texto se torna eletrônico e a leitura passa a ter por suporte tais aparelhos, podemos falar em letramento digital.
Entretanto, se cada vez mais a produção e a leitura de textos escritos envolvem tecnologias digitais, faz sentido separar o letramento do letramento digital? Para alguns, não; e o letramento digital seria a condição letrada padrão hoje. Essa é a opinião do professor e pesquisador Marcelo Buzato, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por exemplo.
Em entrevista à Sociedade de Linguística Aplicada (Sala), da Unicamp, Buzato afirma:
Esta cada vez mais claro que linguagem e tecnologia hoje não são coisas que se pode olhar separado. Letramento digital é apenas um dos conceitos em que se vê claramente que essa intersecção é problemática e merece pesquisa.”
Marcelo Buzato
Porém, se o paralelismo e o entrelaçamento de sentidos entre o letramento analógico e o digital funcionam bem, é necessário reforçar que, no contexto digital, quando se produzem textos escritos, podem-se desenvolver comunicações com o som, com a imagem estática ou em movimento. Por vezes, ainda, tais linguagens são combinadas, o que é chamado de multimodalidade ou multimídia.
Em suma, o ambiente digital comporta diferentes formas de representação simbólica. O “novo” dos novos letramentos (inclusive o digital) se associa a uma série de práticas sociais (o blog, o podcast, o compartilhamentos de fotos, áudios ou vídeos por meio de plataformas com essa finalidade, o meme etc.) e linguagens emergentes, como enfatizam Lankshear e Knobel (2008).
É por isso que esses autores salientam um conceito de letramentos digitais (no plural) alicerçado nas diversas práticas sociais contextualizadas em que os indivíduos se envolvem com o uso de tecnologias.
Estamos no terreno de “múltiplos letramentos”. Para Lankshear e Knobel (2008), a amplitude de definições sobre o letramento digital, a conexão entre esse conceito pluralizado e a noção de “letramento como prática”, da perspectiva teórica sociocultural, e o fato de que dar mais abrangência ao letramento digital e seus significados pode favorecer a reflexão sobre questões de aprendizado justificam essa alteração na nomenclatura.
Ao mesmo tempo, essas práticas que envolvem o digital, no contexto da “cultura da convergência” (JENKINS, 2009), relacionam-se, dialogam, sendo eventualmente ampliadas com outros formatos e linguagens, desde analógicos/tradicionais, como o cinema, as histórias em quadrinhos, os programas de televisão, até os digitais, desenvolvidos nos ambientes virtuais.
Esse fluxo comunicativo compete pela atenção dos jovens e estudantes, dando sentido ao modo como vivemos no mundo atual, e, por isso, afeta os contextos educativos.
Não por acaso, parte significativa do debate sobre a necessidade de os jovens desenvolverem competências relacionadas com a comunicação no mundo contemporâneo (tanto em termos de consumo crítico como de produção) se dá na discussão sobre a chamada media education (educação midiática), englobando dimensões relacionadas com o letramento digital. Este é o caso do influente trabalho de Jenkins e colaboradores (2006, p. 29), que observa:
Quase todos os novos letramentos envolvem habilidades sociais desenvolvidas por meio da colaboração e práticas de rede. Tais habilidades são desenvolvidas a partir de fundamentos do letramento tradicional, habilidades de pesquisa, habilidades técnicas e habilidades crítico-analíticas ensinadas em sala de aula.”
JENKINS e outros, 2006, p. 29
Pareceria natural, portanto, que as práticas envolvendo os letramentos digitais fossem assumidas pela escola, mas isso nem sempre acontece – e, dependendo do contexto, talvez raramente ocorra. Por quê? Na avaliação de Jenkins et al. (2006), porque muitas pessoas, inclusive educadores, acreditam que os letramentos que envolvem o visual, o audiovisual e o digital podem deslocar (e talvez prejudicar) o letramento tradicional.
Em vez de simplesmente expor minha opinião sobre este ponto (tema para outro artigo), prefiro indagar a você, professor ou professora: O que pensa sobre o assunto? Os letramentos digitais, os novos letramentos com base nas linguagens não necessariamente textuais podem contribuir para as atividades de letramento mais tradicionais e valorizadas pela escola?
Referências
JENKINS, Henry. Cultura da convergência: a colisão entre os velhos e novos meios de comunicação. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2009.
LANKSHEAR, Colin; KNOBEL, Michele. Introduction. In: LANKSHEAR, Colin; KNOBEL, Michele (ed.). Digital Literacies: Concepts, Policies and Practices. New York: Peter Lang, 2008, p. 1-16.
SOARES, Magda. Novas práticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Educação & Sociedade. Campinas, v. 23, n. 81, p. 143-160, dez. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/es/v23n81/13935.pdf.
Acessos em: 15 ago. 2019.
*Jornalista, professor universitário e doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). É pesquisador do Núcleo de Pesquisa do Mercado de Trabalho em Comunicações e Artes (Nupem-ECA/USP) e atua na área de Comunicação e Educação, no Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de São Paulo (NCE/USP).
Entrevista de Marcelo Buzato à TV Sala (Unicamp). O professor menciona pesquisas sobre linguagem e tecnologia desenvolvidas em diversas regiões pelo Brasil. Assista.
Mais do que endeusar ou condenar as tecnologias, é cada vez mais necessário refletir sobre tais elementos, pois é fato que os jovens já formam suas subjetividades em constante interação com as novas tecnologias…”
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