Literatura LGBTQIA+: representatividade é bom pra todo mundo

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Literatura LGBTQIA+: representatividade é bom pra todo mundo

Entenda por que ter cada vez mais pessoas autoras e personagens diversos é importante não só para o público LGBQTIA+, como para toda a sociedade

Por Stephanie Kim Abe

Era noite e um casal andava pela rua escura. Apressavam o passo.
Tinham medo que alguém chegasse de repente.

Uma das coisas mais incríveis de ler um livro é poder deixar a imaginação fluir. Quando lemos o trecho acima, por exemplo, formamos uma imagem na nossa cabeça dessa situação. Que cena você imaginou? Quem e como são esses seus personagens?

Quem propõe esse desafio é o autor Caluã Eloi, que questiona:

Muito provavelmente, você deve ter imaginado um homem e uma mulher. Dependendo da sua experiência, você os imaginou brancos. Isso ainda acontece muito, porque o nosso imaginário está moldado dentro de certos padrões. Mas quando eu não dou a descrição física de um personagem, você tem que ser capaz de imaginar um personagem negro, um personagem indígena, um casal de dois homens ou duas mulheres etc. Se você só está pensando em pessoas brancas, cisgêneras, héteras, ainda estamos falhando em nossa discussão sobre diversidade.”

Naturalizar as existências LGBTQIA+

Caluã é mineiro e autor do livro Bairro dos Corvos Elétricos. Sua obra conta a história de uma criança que sai sozinha em busca de um mundo novo e vai parar em um lugar macabro, controverso, cheio de suspense e magia. 

Inspirado em mitologias celta, nórdica, grega e egípcia, contos de fadas e deusas matriarcais, o livro é a materialização de uma vontade própria do autor, que se considera uma pessoa trans não-binária, em se ver representado na literatura de uma forma diferente de como ele — fã também de cinema e música — costuma notar em diferentes obras artísticas:

Foto: acervo pessoal

Eu escrevi um livro que, além de ser uma história que eu gostaria de ler, é uma naturalização das existências LGBT. Isso quer dizer que a personagem lésbica sofre não porque ela é lésbica, mas por outras questões que ela enfrenta na história. A sua sexualidade ou o seu gênero não é um problema — pelo contrário, é justamente o que dá esperança para esses personagens saírem da sua situação. Eles estão fazendo o que têm que fazer, sendo super-heróis, e não tendo uma história trágica ou triste.”

Caluã Eloi

Ao longo de sua formação leitora e escritora — que incluiu autores e autoras clássicos, como Cecília Meireles, Pablo Neruda e Vinicíus de Morais —, Caluã sempre teve um interesse especial pelo outro lado da história. No caso dos contos de fadas, por exemplo, ele adorava as vilãs, como a Malévola. 

Eu tinha um apreço pelo macabro e também por essa outra perspectiva da história. Há sempre outras visões sobre as coisas que são dadas. E dar aos meus personagens LGBT um arco narrativo próprio é de certa forma isso, porque eles costumam ser representados apenas como melhor amigo do protagonista ou o engraçado da história”, diz.

Reconhecer-se e se ver representada(o)

Caluã reconhece que é importante também que as obras tratem do processo de autodescoberta de pessoas diversas, como as transgêneras. 

É o caso, por exemplo, da obra Conectadas, da escritora Clara Alves. Voltado para o público infanto-juvenil, ela conta a história de Raíssa, uma menina gamer que começa a conhecer e a se interessar por outra menina no mundo on-line, a Ayla. O único problema é que ela usa um avatar masculino — ou seja, Ayla não sabe que está conversando com uma menina.

A autora conta que muito do seu próprio processo de autodescoberta serviu de inspiração para o livro:

Foto: Ana Rosa

Eu já me entendia como bissexual na época, mas eu não falava muito sobre isso. Acho que não era algo que eu aceitava muito bem ainda. Então a escrita foi um processo de autoterapia, foi o momento em que a Clara adolescente que nunca teve oportunidade de se ver representada em histórias de romance conseguiu se enxergar. Foi esse o pontapé da minha trajetória escrevendo para o público LGBTQIA+.”

Clara Alves

Assim como Caluã, Clara amava ler desde pequeninha, e já sonhava em ser escritora. Ela lia muitos romances, como Jane Austen e Meg Cabot, mas também histórias fantásticas, como Jogos Vorazes e Eragon.

Por mais que a gente consiga se identificar com histórias de protagonismo hétero, não é a mesma coisa, porque temos os nossos medos, as nossas inseguranças. Não queremos ficar trocando o nome do protagonista e imaginar um casal gay. Queremos poder ter a oportunidade de ler um romance bobinho e clichê adolescente de duas meninas ou dois homens com final feliz”, explica Clara.

Entender os dilemas da adolescência

Além de Conectadas, Clara Alves tem uma segunda obra autoral, Romance Real, também com protagonistas diversas. Ao voltar as suas obras para o público jovem e adolescente, ela busca tratar de dilemas que são típicos de quem esta nessa fase da vida:

Ouvi recentemente uma pessoa comentar que eu adoro escrever personagens que vão fazer meu público ficar irritado com elas. Achei engraçado porque isso é compreensível. As minhas protagonistas não são perfeitas: elas erram, fazem besteira. A Raíssa, de Conectadas, está mentindo sobre quem é. A Daiana, de Romance Real, é estourada e desbocada, dá patada em todo mundo. Eu gosto de fazer isso porque sei que a adolescência não é uma fase fácil e que tudo o que a gente sente parece dez vezes pior quando somos adolescentes.”

Clara Alves

Para a autora, o mais importante é a evolução pela qual essas personagens passam ao longo do desenrolar da trama — que segue muito o processo pelo qual todos (inclusive ela) passamos nessa época da vida:

É uma responsabilidade muito grande escrever para adolescentes. Por isso, eu tento sempre trazer temáticas que sejam relevantes e tragam crescimento pessoal para quem está lendo. Eu preciso que essas protagonistas passem por isso para que amadureçam e se tornem personagens mais conscientes de quem elas são e mais felizes com elas mesmas”, conta Clara.

Respeitar o outro e abrir a sua perspectiva de mundo

Clara não gosta de ver a literatura LGBTQIA+ como um gênero, nem apenas como um público-alvo a ser atingido. “Eu prefiro usar ‘protagonismo LGBTQ’, porque senão parece que a gente nicha a obra — e, na verdade, qualquer pessoa pode ler essas histórias com protagonistas diversos”, explica.

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Esses enredos podem ser a ajuda que muitos pais e mães precisam para entender melhor essa nova geração e os dilemas pelos quais as crianças e adolescentes de hoje estão passando. A própria Clara escutou o depoimento de uma mãe nesse sentido, durante a última Bienal do livro em São Paulo:

Eu estava participando de uma mesa formada por autores LGBT e uma mãe se levantou e nos agradeceu, porque ela encontrou ajuda em nossas obras para entender melhor a sua filha. Eu fiquei muito emocionada com o relato, porque um dos propósitos de trazer literatura diversa é fazer com que as pessoas enxerguem outras vivências e consigam entender que elas também merecem ser respeitadas e que essas pessoas também merecem ser felizes”, diz.

Além do respeito às diferentes existências, Caluã reforça que obras que tratam da temática LGBTQIA+ para crianças e adultos ajudam a tornar essa jornada de autodescoberta menos traumática e dolorida. 

“Eu costumo brincar que as pessoas acham que as pessoas LGBTQ nascem iguais à deusa Atenas, da mitologia grega: já adultas e armadas, prontas para se proteger. Mas não: elas já foram ou são crianças, pessoas vulneráveis e sem proteção em uma sociedade discriminatória. É um processo de violência muito grande quando uma criança que começa a se perceber diferente de outras não encontra ninguém em quem se apoiar, ou alguma representação na qual se espelhar”, diz. 

Para ambos os autores, a escola e os profissionais da educação têm um papel muito importante de acolhimento e de combate às discriminações que são estruturais na nossa sociedade. 

“Recebo muita mensagem de bibliotecários que estão buscando histórias diversas para compor a biblioteca da escola. Isso é muito importante, porque esse é um espaço que pode ajudar os jovens a se encontrarem, tanto pelas histórias dos livros como por pessoas que os entendam e conversem com eles”, diz Clara. 

Se a gente continuar a ler apenas textos, tanto acadêmicos quanto literários, escritos por homens brancos, heteros, cis, vamos ficar limitados às nossas bolhas. E o mundo é muito maior que isso. A perspectiva de uma mulher negra é diferente de uma mulher negra trans e que também é muito diferente entre si — porque tampouco somos todos iguais. Mas ter múltiplas perspectivas permite que tenhamos mais empatia e respeito”, defende Caluã.

Veja uma dica de sarau sobre a temática LGBTQIA+ do Programa Escrevendo o Futuro

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