Para que serve a educação escolar indígena?

-

Para que serve a educação escolar indígena?

No Dia Internacional dos Povos Indígenas, conversamos com a educadora Guarani Poty Poran, que fala sobre os desafios para uma educação escolar indígena com sentido para os povos originários e como é importante garantir esse direito

Por Stephanie Kim Abe

Desde 1995, o Dia Internacional dos Povos Indígenas (9/8) busca reafirmar os direitos dessas populações, homenagear e promover as tradições culturais e demais contribuições dos povos originários para a humanidade. 

Entre esses direitos, estão o de liberdade, de autodeterminação, às terras, à preservação da sua língua e cultura etc. Eles estão elencados nos 46 artigos que compõem a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.

O Brasil tem 1,7 milhões de indígenas, o que corresponde a 0,83% da população total, segundo dados do Censo Demográfico 2022. 51,25% das pessoas indígenas brasileiras vivem na região da Amazônia Legal (composta pelos estados do Norte, Mato Grosso e Maranhão), mas todos os estados têm populações indígenas.

São, ao todo, cerca de 630 mil domicílios com pelo menos uma pessoa moradora indígena, sendo que 21,79% deles estão localizados em Terras Indígenas e 78,21% fora delas.

Em comparação com o último Censo, de 2010, a população indígena cresceu 89% – em 2010, foram contabilizados quase 900 mil indígenas. Mas o IGBE ressalta que esse aumento pode ser explicado por mudanças metodológicas.

Ter a real dimensão da população indígena brasileira é importante não só para planejar e direcionar políticas públicas, mas também para combater mitos que rondam o imaginário de muitas pessoas sobre essas populações, que ainda as veem como “paradas no tempo”.

Foto: reprodução

Fernando Damasco, gerente de Territórios Tradicionais e Áreas Protegidas, falou sobre a importância de buscar essa população para além das Terras Indígenas, um desafio necessário encarado pela equipe do Censo: 

Toda a estrutura do IBGE foi mobilizada para fazer o mapeamento que representasse a diversidade territorial indígena. Os povos indígenas estão presentes nas cidades, em áreas urbanas, em áreas rurais, em áreas remotas, em favelas e todos precisam ser recenseados.”

Fernando Damasco, IBGE

🗣️ Confira nossa entrevista com o historiador Antonio Simplicio de Almeida Neto sobre o olhar que temos em relação aos povos indígenas

Direito a qual educação escolar? 

Poty Poran Turiba Carlos tem 45 anos e desde criança mora na Terra Indígena Jaraguá, localizada na zona noroeste de São Paulo, a maior cidade do Brasil. De etnia Guarani-Mbya, é pedagoga formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC), com licenciatura no curso de Formação Universitária do Professor Indígena para educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Fe-USP). 

Com mais de 20 anos de experiência na Educação, Poty atua, desde 2021, como gestora na UBS Aldeia Jaraguá Kwaray Djekupe. “É realmente a área que eu mais gosto”, diz. Entre 2001 e 2020, foi professora e diretora de três Escolas Estaduais Indígenas (EEI): EEI Djekupé Amba Arandy, na aldeia Ytu; EEI Guarani Guyra Pepo, na TI Tenondé Porã; e EEI Krukutu, na aldeia Krukutu.

Foto: arquivo pessoal

É dessa rica bagagem de experiências profissionais que Poty tira as suas reflexões e provocações sobre como deve ser uma educação escolar indígena – um dos direitos presentes na Declaração das Nações Unidas, inclusive – que realmente faça sentido para as populações originárias.


Lembro-me muito de um professor da faculdade que lembrava a classe que o futebol não é uma invenção brasileira, mas os brasileiros se tornaram os melhores no futebol. O mesmo pode acontecer com a educação escolar: a escola não é uma invenção indígena, ela é uma instituição ‘juruá’ (dos brancos). Mas nós podemos ter uma pedagogia realmente indígena se quisermos.

Poty Poran

Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas

Artigo 14

“1. Os povos indígenas têm o direito de estabelecer e controlar seus sistemas e instituições educativos, que ofereçam educação em seus próprios idiomas, em consonância com seus métodos culturais de ensino e de aprendizagem.

2. Os indígenas, em particular as crianças, têm direito a todos os níveis e formas de educação do Estado, sem discriminação.

3. Os Estados adotarão medidas eficazes, junto com os povos indígenas, para que os indígenas, em particular as crianças, inclusive as que vivem fora de suas comunidades, tenham acesso, quando possível, à educação em sua própria cultura e em seu próprio idioma.”

Para que isso aconteça, a primeira coisa a se questionar é: para que serve a escola? Que tipo de cidadãos queremos formar? 

Poty ressalta que essas perguntas devem estar na base e serem feitas por todas as escolas, não somente as indígenas. Mas, no caso destas, esse questionamento tende a ser mais profundo:

Como se forma um indígena? Como um Guarani aprende a ser Guarani? Não precisamos de uma escola para nos ensinar a ser indígenas. A escola tem esse papel definido de formar cidadãos no meio dos juruá, da sociedade dos não indígenas, principalmente porque nos tempos atuais a própria família não tem mais centralidade. Mas, para nós, faz sentido alfabetizar as crianças em português, e ter aula de língua e cultura indígena na escola? Isso é uma adaptação da pedagogia de juruá, uma escola não indígena dentro da aldeia”.

Poty Poran

Esses e outros questionamentos aparecem no artigo “Escolarizar os Guarani ou ‘guaranizar’ a escola?”, que faz parte do livro Povos indígenas entre olhares, organizado por André Roberto de A. Machado e Valéria Macedo e publicado pela Edições Sesc São Paulo e Editora Unifesp.

🎧 Ouça o primeiro episódio do podcast Educação na ponta da língua sobre educação escolar indígena

Sala de aula ampliada 

A ideia de se questionar sobre qual o objetivo da escola não é encontrar uma resposta correta – mesmo porque ela não existe. Para cada contexto escolar e territorial, ou projeto político pedagógico, essa missão muda. E não seria diferente nas escolas indígenas.

Sempre achei a escola da Tenondé Porã mais à frente nessa discussão, porque ela já ocorre há mais tempo na comunidade. Enquanto eu estava trabalhando lá, por exemplo, a aula de Guarani era dada até o 5o ano do ensino fundamental, e a partir do 6o introduzíamos o português como língua estrangeira. As lideranças da comunidade sempre se reuniam para discutir e tentar entender para que estávamos formando nossos indígenas.”

Poty Poran

Ela lembra inclusive que já estavam colocando em prática um ensino médio adaptado aos objetivos das(os) jovens.


Se elas(es) queriam sair da comunidade e ir para a faculdade, seguiam uma linha de educação, com matérias mais focadas em passar no vestibular. Se queriam continuar na aldeia, tinham aulas mais voltadas para a tradicionalidade, a subsistência, a valorização da cultura e identidade Guarani.”

Poty Poran

Mas algumas práticas e conceitos básicos eram comuns a todas as escolas – características essas que fazem parte da sabedoria e das tradições Guarani. Por exemplo, o fato de as(os) professoras(es) não se limitarem a dar aulas apenas no espaço escolar. “Todos utilizavam a comunidade como área de aprendizagem e conhecimento”, lembra Poty. 

Eram comuns os passeios para a represa ou a casa de reza, para trabalhar na horta ou falar com as pessoas mais velhas da comunidade. “O principal era integrar a comunidade à escola”, ressalta.

🎵 Acesse a oficina A cultura indígena dançada e cantada

Formação para professoras(es) indígenas

Apesar de ter cursado pedagogia e viver na aldeia Jaraguá desde a infância, Poty Poran lembra que foi por causa do curso de formação de professoras(es) indígenas que conseguiu entender as diferenças de pensar essa pedagogia Guarani própria: 

Participar de um curso que olhava para o modo de viver indígena foi realmente ampliador, porque abriu a minha cabeça para pensar em coisas que não pensava antes, tornando a ideia da pedagogia Guarani uma realidade.”

Poty Poran

Ela critica justamente o fato de não haver políticas públicas de incentivo à formação docente para professoras(es) indígenas, o que resulta em defasagem na formação dessas(es) profissionais – e, consequentemente, na educação ofertada às populações originárias. 


Vale lembrar que, na sociedade Guarani-Mbya, ninguém é obrigado a nada, e sempre escutamos as crianças. Isso se reproduz na sala de aula. Ou seja, as(os) estudantes não são obrigadas(os) a ir para a escola. Assim, a(o) professora(or) precisa ser mais interessante do que o campo de futebol ou o rio. Ela(e) precisa despertar o interesse da(o) aluna(o) de querer aprender e ouvi-la(o), ser mais atrativa(o) que as brincadeiras. É preciso, principalmente, criar um vínculo com a criança.”

Poty Poran

Ela também aponta a importância de um currículo que seja criado pelos povos indígenas e leve em conta as suas tradições e culturas:

Uma matriz curricular é importante para que os governos tenham ferramentas para que a educação escolar indígena seja implantada de maneira a valorizar a tradição, a cultura e a identidade dos povos indígenas.”

Poty Poran

Apesar de ter sido diretora por muito tempo, Poty conta que sua paixão sempre esteve em lecionar. “A parte que eu mais gosto da educação é que cada professora(or) é seu mestre na sala de aula. A(O) diretora(or) ou o coordenadora(or) pedagógica(o) pode até dar algum direcionamento, mas quem precisa realmente ser criativo na hora de passar os conteúdos é a(o) professora(or)”, defende. 

Assim, seu papel como diretora sempre foi dar subsídios para que seu corpo docente pudesse atuar da melhor maneiras possível – e é esse o conselho que ela dá para demais diretoras(es) por aí. 

Sempre segui o conselho de uma colega não indígena que me ajudou bastante na parte administrativo, que dizia que quando a administração vai bem, a parte pedagógica voa. A minha intenção como gestora sempre foi fazer com que as(os) professoras(es) não se preocupassem com salário, com a reforma da sala, ou com a merenda, para que pudessem ser livres para dar sua aula como deve ser dada.”

Poty Poran

🏹 Quiz: confira o quanto você sabe sobre os povos originários brasileiros

Priscila Tapajowara, apresentadora do programa #OutrosGiros, fala sobre o Dia Internacional dos Povos Indígenas.

Veja também