Por João Marinho
No último dia 2 de janeiro, o Decreto nº 9.465/2019 fez alterações na estrutura do Ministério da Educação (MEC) e criou a Subsecretaria de Fomento às Escolas Cívico-Militares, com a função de “promover, fomentar, acompanhar e avaliar, por meio de parcerias, a adoção por adesão do modelo de escolas cívico-militares nos sistemas de ensino municipais, estaduais e distrital”.
O decreto não detalha as características do novo modelo de escola, mas o artigo 16 deixa claro que os programas didático-pedagógicos e o sistema de gestão serão desenvolvidos pela subsecretaria. Nesse sentido, desde o início do ano letivo, quatro escolas públicas do Distrito Federal, que somam cerca de 7 mil alunos, fazem parte de um projeto-piloto que inclui militares na gestão: a Secretaria de Educação do DF fica responsável pela área pedagógica, enquanto militares assumem a administração e a disciplina.
Equívocos e preocupações
Em nota técnica divulgada nesta terça-feira (12/03), o CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária faz uma série de questionamentos e exterioriza preocupações quanto à militarização das escolas públicas.
A nota faz uma retomada da expansão da escola pública civil no Brasil, que, desde a Lei nº 12.796, requer que os sistemas de ensino recebam qualquer estudante sem distinção, e contrasta essa lei com a situação das escolas militares, que “foram criadas, prioritariamente, para prover educação básica aos dependentes de militares. Estudantes que não estejam nessa condição são selecionados por meio de um concurso público, a partir do 6º ano do Ensino Fundamental”.
A nota técnica aponta, ainda, a grande diferença no orçamento destinado a escolas civis e militares: “enquanto o Estado gasta anualmente, em média, R$ 19 mil por aluno da escola militar, empenha três vezes menos no aluno na escola pública civil: apenas R$ 6 mil/ano”.
A responsabilidade sobre o currículo é outra preocupação, já que atualmente estados e municípios têm autonomia para defini-los. Finalmente, o CENPEC alerta para o fato de que a militarização das escolas passa a mensagem de um modelo disciplinar ideológico, que remete à restrição da liberdade e à rigidez hierárquica, com o risco de confundir política educacional e segurança pública.
Em fevereiro, 12 entidades nacionais já haviam comentado a proposta das escolas cívico-militares em nota pública. Segundo as organizações, a medida pretende responder aos anseios da população por ensino de qualidade e segurança, mas há equívocos, como o fato de que tanto escolas públicas não militares como militarizadas apresentam dados de excelência, além do fato de que a política educacional tal como proposta pelo novo governo fere o direito universal à educação de qualidade para todos. O CENPEC também apoia esse documento.
Leia abaixo a nota técnica do CENPEC, na íntegra.
NOTA TÉCNICA
Militarizar não resolve problemas da escola pública
Ao associar a militarização das escolas públicas ao sucesso de aprendizagem dos alunos, seus defensores incorrem em afirmações que demonstram desconhecimento dos sistemas de educação pública. As características determinantes da qualidade das escolas militares não se aplicam, necessariamente, ao contexto das escolas públicas civis. O melhor desempenho de seus estudantes, na comparação com os alunos da rede pública, não decorre necessariamente de suas metodologias.
Não é raro ouvirmos que a escola pública de antigamente era melhor. Como não havia vaga para todos, os exames de seleção e de admissão acabavam por filtrar, entre os interessados, aqueles que tiveram melhores condições de aprender, desenvolver-se e ampliar o repertório cultural. Uma vez selecionado, o grupo formado pelos alunos com esse perfil acabava por constituir uma clientela de excelência. As escolas de qualidade tornavam-se um privilégio para poucos.
A obrigatoriedade do ensino gratuito para todos, determinada pela Lei nº 12.796, de 4 de abril de 2013, impôs uma nova realidade. Os sistemas de ensino devem receber, sem distinção, qualquer estudante. Seus pais ou responsáveis são cobrados quanto a essa obrigação. As salas de aula do ensino civil são abertas a todo e qualquer cidadão, sem distinção de raça, classe social e, mais recentemente, deficiências – mas, se a lei eliminou o funil da seleção, ela trouxe consigo o desafio de compatibilizar a universalização do acesso com a qualidade de ensino.
A expansão obrigatória impactou seriamente os custos da educação pública. Para atender à demanda, a rede de atendimento teve que se organizar muito rapidamente e ainda enfrenta enormes dificuldades, em razão do grande salto de escala na prestação de seus serviços.
Para melhor compreensão do desafio que é prover educação a todo brasileiro dos 4 aos 17 anos de idade, como obriga a lei, considere-se que, entre 1960 e 1990, a escolaridade média da população brasileira foi de 2 anos para 5 anos. Entre 1970 e 1994, com o crescimento populacional do período, o atendimento escolar por faixa etária quase duplicou, percentualmente. A absorção dessa enorme massa de estudantes exigiu a construção de muitas salas de aulas, a compra de muitas carteiras e a contratação de muitos professores. Eram cerca de 90 milhões de habitantes no Brasil de 1970. Em 1994, já atingiam 160 milhões. Hoje, são mais de 208 milhões.
O cenário de crescimento exponencial exigiu uma organização sem precedentes do sistema educacional. Da formação de professores e capacitação de gestores à produção de materiais de ensino e o provimento de uniformes e de transporte escolar, houve impacto em tudo. O fato é que, hoje, a escola pública tem que estar preparada para atender aproximadamente 50 milhões de estudantes, distribuídos em 150 mil escolas. Toda a responsabilidade pela gestão desse sistema está a cargo dos estados e municípios, por meio de suas secretarias de Educação, que têm autonomia para definir as formas como cumprirão a obrigatoriedade legal.
Já as escolas militares têm uma situação absolutamente distinta. Embora presentes nos estados e municípios, estão subordinadas ao Departamento de Educação e Cultura do Exército – um ente federal. Foram criadas, prioritariamente, para prover educação básica aos dependentes de militares. Estudantes que não estejam nessa condição são selecionados por meio de um concurso público, a partir do 6º ano do Ensino Fundamental. Cerca de 22 mil concorrentes, entre civis e dependentes de militares, disputam anualmente as vagas disponíveis. No total, perto de 15 mil estudantes frequentam os bancos das 13 escolas militares existentes.
Essa breve comparação entre os dois modelos já suscitaria desconfiança sobre a viabilidade dos programas de militarização das escolas públicas. Em análise mais aprofundada, compreende-se que a qualidade da educação oferecida pelas escolas militares é decorrente de um conjunto de fatores, na maioria das vezes ausentes nas escolas públicas. A começar do orçamento. Enquanto o Estado gasta anualmente, em média, R$ 19 mil por aluno da escola militar, empenha três vezes menos no aluno na escola pública civil: apenas R$ 6 mil/ano.
Por outro lado, a melhoria da escola pública já tem um rumo traçado. Está confirmado, por inúmeras pesquisas, que a quantidade adequada de alunos por docente, os processos seletivos e os regimes de dedicação docente exclusiva representam um ganho de qualidade educacional. Os programas de escolarização em tempo integral, que vêm sendo realizados em diversos estados, confirmam diariamente essa tese.
Se o caminho virtuoso já está aberto, que ganho teria a sociedade brasileira com a militarização da escola pública? Militarizar corresponderia a “transformar” as escolas públicas nos modelos já existentes das escolas militares? Isso é viável? É desejável?
Outra questão a ser respondida é: sob qual “comando” ficariam as escolas, numa possível militarização? Devemos observar que, na forma como o sistema educacional está definido em lei e organizado, a possível militarização implicaria mudanças legislativas. Elas impactariam não somente os orçamentos federais, estaduais e municipais, mas também toda a organização das redes de ensino, o que envolve desde a gestão da infraestrutura (manutenção e construção de prédios, aquisição de materiais etc.), passando pela formação continuada dos docentes, avaliação e monitoramento, e desaguando nos sistemas que regem as carreiras – de educadores e agentes educacionais. Sempre considerando que o sistema educacional público tem por obrigação não deixar de atender nenhuma criança ou jovem. Portanto, não lhe é permitido selecionar estudantes.
Vale ressaltar ainda que estados e municípios têm autonomia para definir seus currículos, a partir de seus Planos de Educação. Como isso seria tratado, no novo modelo? Sob quem ficaria a responsabilidade pela definição e implementação curricular? A proposta de militarização das escolas públicas não deve se esquivar de responder, objetivamente, sobre a profunda transformação que ela implica.
Há que se destacar, finalmente, que a ideia de militarização das escolas passa a mensagem de um modelo disciplinar ideológico, que remete à rigidez hierárquica e à restrição de liberdades. Um modelo contraditório com as metodologias educacionais mais modernas em debate no mundo, que recomendam a participação, a colaboração e o envolvimento das escolas com os territórios onde estão inseridas. O território das 13 escolas militares existentes hoje é, de certa forma, conhecido e controlado por elas, uma vez que o perfil dos pais dos estudantes – militares, na sua maioria – está alinhado aos objetivos das escolas.
No entanto, como se daria essa relação entre escola e militares nos territórios de extrema desigualdade social e alta vulnerabilidade? É impossível desconsiderar que a missão da escola é prover educação, e não resolver problemas de segurança pública. O confinamento compulsório dos estudantes em espaços militarizados e a imposição de um modelo disciplinar que não é o mesmo da vida civil é política educacional ou de segurança?
Espera-se de qualquer política pública, em especial para a educação, respostas claras sobre o objetivo a alcançar. Todo argumento que favoreça a qualidade da educação é bem-vindo, mas é indispensável observar se a busca pela qualidade não resultará no aumento das desigualdades educacionais, já tão alarmantes no nosso país, e considerar se a disciplina visada no ambiente escolar deve ser buscada com mentalidade e práticas autoritárias.
Qualidade, quando oferecida a poucos, é somente privilégio. Disciplina imposta sem diálogo é mera obediência. O desafio brasileiro está em garantir o direito à educação para todos na idade certa, em escolas bem equipadas, com professores preparados e valorizados, em ambientes de ampla liberdade de pensamento e expressão – e a melhor qualidade pedagógica possível.
Leia também a nota pública das 12 outras instituições
Confira o Decreto nº 9.465/2019