Por Stephanie Kim Abe
O edital de convocação para o Programa Nacional do Livro e do Material Didático (PNLD) 2022 para Educação Infantil foi publicado no Diário Oficial da União no dia 21 de maio. Entre as novidades, destacam-se a previsão de livros didáticos para alunos da pré-escola I (crianças de 4 e 5 anos) e, para os professores, um guia de preparação para a alfabetização.
Na divulgação do edital em uma rede social, o Ministro da Educação Abraham Weintraub comemorou o fato: “Pela 1ª vez, teremos livros didáticos para a Educação Infantil. Crianças da pré-escola terão contato com as palavras, a partir de 2022. Isso faz parte de uma grande mudança no ensino! (…)”.
O que para o Ministério da Educação (MEC) é visto como um avanço, para muitos especialistas da área de educação é, na verdade, um retrocesso na concepção dos princípios e objetivos da Educação Infantil.
Educação Infantil não é preparatória para a alfabetização
O edital do PNLD faz referência a dois documentos para embasar suas proposições, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Política Nacional de Alfabetização (PNA), e busca fazer um paralelo entre eles. Porém, os documentos adotam concepções divergentes de Educação Infantil e de alfabetização.
Homologada em dezembro de 2017, a BNCC estabelece as aprendizagens essenciais que todos estudantes devem desenvolver em cada etapa de ensino. No caso da Educação Infantil, ela consolida a concepção de tratar as crianças por campos de experiência, tendo como eixos estruturantes as interações e as brincadeiras, e entendendo a particularidade e independência dessa etapa.
“A Base da Educação Infantil tem um foco muito grande na observação do que emerge da criança e que a põe em evidência”, explica Cisele Ortiz, coordenadora adjunta do Instituto Avisa Lá. A Base também estabelece a alfabetização como um processo que inclui não só dominar o sistema de escrita alfabético ortográfico, mas também entender a leitura e a escrita em um contexto de práticas sociais.
Já a PNA, instituída por decreto em abril de 2019 e que estabelece diretrizes para a redução do analfabetismo no país, recupera um outro paradigma da Educação Infantil, há muito tempo superado, como uma etapa “preparatória” para o Ensino Fundamental e a futura alfabetização formal. Ela também é criticada por priorizar o que é conhecido como método fônico.
Na medida que o PNLD muda a produção de livros didáticos, voltando-os para a decodificação e deixando de lado práticas sociais de leitura e escrita na Educação Infantil, ele empobrece o processo de aprendizagem e propõe um retrocesso imenso em termos de projeto educacional para o país.
Maria Alice Junqueira, coordenadora do Projeto Letra Viva
Conheça melhor a metodologia do projeto Letra Viva, do CENPEC Educação
Liberdade de prática para professores e crianças
“É até ofensivo o Ministro da Educação falar ‘agora as crianças vão ter contato com o mundo das palavras’, como se antes elas estivessem alheias ao mundo das palavras na escola”, diz Genecilda dos Santos, professora da Educação Infantil da rede municipal de São José do Rio Preto (SP) há mais de oito anos.
Muito pelo contrário. Cisele Ortiz explica que desde cedo a criança já começa a ter contato com a oralidade, por meio de cantigas de ninar, das parlendas, das histórias contadas pelos pais. Essa musicalidade da voz humana é fundamental para o desenvolvimento dos pequenos. Conforme eles crescem, começam também a observar e perceber naturalmente as práticas sociais de leitura e escrita que o mundo adulto faz – o que é conhecido como letramento.
Saiba mais sobre os termos letramento e literacia
Considerando o conhecimento e as experiências do cotidiano das crianças, desenvolvemos projetos de pesquisa, aproveitamos brincadeiras locais, fazemos ateliê, propomos rodas de leitura, trabalhamos com a culinária e as receitas de família. Tentamos não separar o pensamento do corpo e envolver as crianças no mundo letrado de uma maneira muito natural e que tem a ver com o seu contexto social.
Genecilda dos Santos, professora da Educação Infantil da rede municipal de São José do Rio Preto (SP)
Para a educadora Genecilda dos Santos, o material estruturado previsto no PNLD retira muito potencial, tanto da criança quanto do professor, de realizar um trabalho que atenda às demandas da sua turma e da sua comunidade.
Cisele Ortiz lembra também da importância da diversidade cultural, que traz novos conhecimentos para a criança vindos da cultura local, conforme previsto pela BNCC. Adotar um livro nacional é perder essa riqueza, assim como as dinâmicas de cada grupo.
“A tendência das escolas é centrar-se muito no acompanhamento do material, e menos na criança. O material traz uma trilha de construção de conhecimento já pronta, o qual a criança apenas obedece. Ela acaba ficando muito tempo sentada, em sala, e se prioriza mais o conteúdo da sequência didática dos materiais”, diz Cisele.
Formação também é necessária
Cisele reconhece a importância de dar apoio ao professor no planejamento do seu trabalho – e é justamente a falta de um processo formativo que valorize os conhecimentos dos professores que faz com que alguns educadores vejam o livro didático e o guia como um facilitador de sua prática na Educação Infantil.
A solução, para ela, é a construção de um material guia, em conjunto com a rede, que sistematize a produção dos professores ao longo do tempo.
Revisitar esses materiais, fazer reflexões e modificá-los a partir das novas realidades pode até levar mais tempo, mas é muito mais significativo do que se apoiar em um material já pronto, feito por terceiros
Cisele Ortiz, coordenadora adjunta do Instituto Avisa Lá.
As especialistas também reforçam a importância de uma formação que pudesse acompanhar esses materiais e trabalhar como utilizá-los em toda a sua potência na sala de aula. A ideia de um guia de formação de professores e de contemplar a equipe gestora como público desse material se mostra pertinente na visão das educadoras, não fosse a premissa que diverge daquela proposta na BNCC.
“Eu não sou uma pessoa resistente àquilo que é novo e que vai melhorar, mas não consigo imaginar como encaixar práticas de alfabetização numa turma de primeira etapa da pré-escola, a partir da concepção de Educação Infantil que eu acredito”, defende a professora Genecilda.
No lugar de livros didáticos, mais livros literários
Que tipo de material, então, poderia apoiar de fato o trabalho dos professores da Educação Infantil? As três entrevistadas foram unânimes em apontar os livros literários de qualidade como o material essencial para garantir que as interações das crianças da pré-escola com os livros seja rica e crie uma comunidade de leitores.
O que todas as avaliações (ANA, Prova Brasil) nos mostram? As crianças decodificam, sim. O problema é que elas não constroem sentido quando leem um texto. E pra construir sentido nada melhor do que bons textos de literatura. É nesse ponto que deveríamos investir
Maria Alice Junqueira, coordenadora do Projeto Letra Viva
Esses
volumes devem chegar em grande quantidade nas escolas, permitindo que os livros
preencham as bibliotecas e circulem entre a casa dos alunos e a escola. Devem contemplar
também os mais variados gêneros e assuntos, diversificando os tipos de textos
para além dos narrativos, mais comum nas escolas.
A professora Genecilda chama atenção, por exemplo, para a importância de livros informativos, que tratem da natureza, de diferentes culturas e demais universos que são do interesse da criança. Eles são usados como fonte para saciar a curiosidade dos pequenos e apoiar as atividades de pesquisa.
Em relação às obras literárias, o edital do PNLD traz especificações de temas que podem ser contemplados pelas obras inscritas. Também versa sobre a qualidade das imagens e ilustrações, que devem ser “vivas, atrativas e adequadas, ficcionais ou não, claras, precisas, não dando margem a ambiguidade na identificação de personagens, objetos e cenários retratados, com cores fortes e contrastantes, altamente correlacionadas ao texto”.
“Nós temos hoje uma grande variedade de livros: de contos tradicionais e modernos, só de textos e só de imagens, nos quais a imagem contradiz o texto e outros em que a imagem o acompanha. Nessa literatura mais contemporânea, há muitas camadas de leitura que são muito mais enriquecedoras e que abrem o universo dos professores e das crianças”, diz Cisele Ortiz.
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