#DefendaoLivro: a leitura como direito e a democratização do acesso ao livro
Entenda como o projeto de lei da reforma tributária impacta consumidores, editoras, livrarias e bibliotecas comunitárias, e segue na contramão da democratização do livro
Por Stephanie Kim Abe
A primeira parte da proposta do governo federal para reforma tributária (PL 3887/2020), entregue ao Congresso no dia 21 de julho, pegou de surpresa a indústria do livro.
Atualmente, o mercado editorial é isento dos atuais tributos federais sobre o consumo (Programa de Integração Social – PIS e Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – Cofins) pela Lei 10.865 de 2004. A medida segue a Constituição Federal, que em seu artigo 150 proíbe a taxação de livros, jornais, periódicos e papel destinado à impressão, considerando o livro um bem de caráter social e que deve ser democratizado.
A proposta do Ministro da Economia Paulo Guedes, porém, é de substituir esses tributos pela Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com uma alíquota de 12% – e essa taxa recairia também sobre os livros. Atualmente o texto tramita na Câmara dos Deputados.
Manifestações em defesa do livro
Semana passada, a Rede LEQT – Leitura e Escrita de Qualidade para Todos, que reúne mais de 80 organizações da sociedade civil que atuam no campo da promoção da leitura, da educação e da cultura, entre elas o CENPEC Educação, se posicionou contra a proposta.
“A Rede LEQT considera que a medida afetará negativamente toda a cadeia produtiva do mercado editorial e colocará em risco o direito ao acesso ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas, cujas políticas públicas já estão bastante fragilizadas, apesar de asseguradas pela lei 13.696/2018, da Política Nacional de Leitura e Escrita, ainda não implantada pelo Poder Executivo”, diz o documento.
“A Rede LEQT considera que a medida afetará negativamente toda a cadeia produtiva do mercado editorial e colocará em risco o direito ao acesso ao livro, à leitura, à literatura e às bibliotecas, cujas políticas públicas já estão bastante fragilizadas, apesar de asseguradas pela lei 13.696/2018, da Política Nacional de Leitura e Escrita, ainda não implantada pelo Poder Executivo.”
No começo de agosto, entidades que representam toda a cadeia de produção de livros – como a AbreLivros, a CBL (Câmara Brasileira do Livro) e o Snel (Sindicato Nacional dos Editores de Livro) – já tinham elaborado o Manifesto em Defesa do Livro. A petição “DEFENDA O LIVRO: Diga Não à Tributação de Livros” já tem mais de um milhão de assinaturas on-line.
Livros só para os ricos?
Questionado sobre essa taxação, o Ministro Paulo Guedes afirmou que uma forma de compensar a medida seria a doação direta de livros à população de baixa renda, no sentido de “focalizar a ajuda”, pois as classes mais ricas são as que compram livros e podem arcar com os seus preços.
Os livros já são considerados caros no Brasil, o que dificulta o acesso à população. Pelas projeções do mercado, com a taxação o preço para o consumidor final pode aumentar em 20%.
Mas isso varia de editora para editora. Tomaz Adour, da Liga Brasileira de Editores (LIBRE), explica que os livros das pequenas editoras podem aumentar em 40 a 50%. Isso porque as tiragens nesses casos são pequenas – algumas chegam a ter 300 exemplares apenas. “Isso permite que publiquemos trabalhos acadêmicos, que têm um público restrito”, explicou Tomaz, durante a live Impactos da taxação do livro no Brasil, organizada pelo Centro de Cultura Luiz Freire e a RNBC (Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias) em 27 de agosto.
Esse aumento acarretaria na perda de competitividade desses livros no mercado, que são importantes para a disseminação do conhecimento.
“Livros mais caros podem impactar a realização de importantes festivais literários, como os que têm sido realizados nas periferias de diferentes cidades brasileiras, como a FELIZ (Zona Sul de SP), a FLUP (RJ), a FRICT e a de São Miguel Paulista (ambas na Zona Leste de SP). Essas literaturas têm nos proporcionado uma discussão crítica de mundo. É isso que a taxação dos livros procura atacar.”
Bel Santos Mayer, coordenadora do Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário) e co-gestora da Rede LiteraSampa/RNBC, no posicionamento público da Rede LEQT.
Luiz Schwarcz, editor da Companhia das Letras, também recorre à FLUP (Festa Literária das Periferias) para indicar que há sim leitores entre as classes mais baixas. Em artigo publicado na Folha de S. Paulo em 10 de agosto, ele diz que 97% do público total do evento se declaram leitores frequentes de livros, 51% têm entre 10 e 29 anos, 72% são de não brancos e 68% pertencem às classes C, D e E.
Importância da leitura
A literatura é, acima de tudo, um direito humano, conforme Antonio Candido já dizia:
“[…] a literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação, entrando nos currículos, sendo proposta a cada um como equipamento intelectual e afetivo. Os valores que a sociedade preconiza, ou os que considera prejudiciais, estão presentes nas diversas manifestações da ficção, da poesia e da ação dramática. A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas”
CANDIDO, Antonio. Direitos Humanos e literatura. In: A.C.R. Fester (Org.) Direitos humanos (p. 113)
“A leitura é imprescindível, é um dos eixos do componente da Língua Portuguesa, mas é uma experiência muito intensa. É com a leitura que você realmente vai conhecer, se aprofundar, criticar, discutir, construir sentidos”, diz Maria Aparecida Laginestra, coordenadora do Programa Escrevendo o Futuro e da Olimpíada de Língua Portuguesa no CENPEC Educação.
Para ela, a leitura como prática social proporciona experiências significativas e exige atenção, esforço, disposição e interação com outros leitores para contar o que leu, confirmar sua percepção do texto, conhecer o ponto de vista do autor.
“A leitura tem uma abrangência e um espectro muito grande de intencionalidades. Mas para isso tem que ter uma mediação bastante intensa”, defende Maria Aparecida.
Bibliotecas comunitárias
Não é porque as classes mais baixas não compram livros que elas não são leitoras. O argumento de Paulo Guedes esquece do importante papel que as bibliotecas – e principalmente as bibliotecas comunitárias – têm no acesso aos livros e na formação de uma população leitora.
“Quando Paulo Guedes fala que o livro é coisa da elite, ele reforça a ideia de que os livros não chegam nas periferias. E isso é um equívoco, porque as bibliotecas comunitárias cumprem esse papel da democratização do acesso. Nós sabemos que estamos distantes de termos uma população letrada, mas na periferia também tem leitores e também tem escritores”
Viviane Peixoto, da RNBC, durante a live Impactos da taxação do livro no Brasil, organizada pelo Centro de Cultura Luiz Freire e a RNBC em 27 de agosto.
Bibliotecas comunitárias são equipamentos culturais que partem de uma iniciativa coletiva da sociedade, cujo acervo bibliográfico é mantido por uma comunidade, sem intervenção do poder público, e que têm como objetivo ampliar o acesso da população do entorno à informação e à leitura, tendo o papel social do livro como referência.
De acordo com o e-book O Brasil que lê: Bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores, que traz os principais resultados da pesquisa Bibliotecas comunitárias no Brasil: impactos na formação de leitores, de 2018, as bibliotecas comunitárias estão presente em todo o território nacional, a maioria localizada na periferia de zonas urbanas, que sofrem com a carência de serviços públicos de qualidade.
Além de contarem com gestão compartilhada (81% das bibliotecas pesquisadas), elas também realizam atividades como contação de histórias, empréstimo de livros, oficinas, rodas de leitura e saraus poéticos, e possuem mediadores, a maioria da própria comunidade. Assim, são também espaços de acolhimento e que contribuem para a formação de leitores nesses territórios.
Viviane chama atenção para o fato de que as bibliotecas comunitárias não vivem apenas de doações, sendo que a maioria do seu acervo é comprada. Assim, a composição de seu acervo seria afetada pela taxação, que tornaria o produto mais caro. “Nós temos contabilizado que 100% das bibliotecas comunitárias compram os livros, e atualmente nós temos 349 mil livros distribuídos nas 119 bibliotecas da Rede Nacional”, explica.
“Os dados desta pesquisa indicam que a leitura faz parte da agenda de demandas por direitos e que é uma necessidade sentida por vários grupos que se percebem excluídos do acesso aos bens culturais e às práticas de leitura, especialmente quando falamos em direito à leitura literária e ao acesso a livros”
E-book O Brasil que lê: Bibliotecas comunitárias e resistência cultural na formação de leitores
Políticas de incentivo à leitura
Democratizar o acesso e valorizar o livro, fortalecer esses espaços, fomentar a leitura e a formação de mediadores de leitura. São essas as ações que deveriam ser promovidas pelo governo federal, como uma diretriz nacional que pudesse então ser seguida pelos estados e municípios, de acordo com Maria Aparecida Laginestra, coordenadora do CENPEC Educação.
“Já estamos sofrendo com o esvaziamento de políticas públicas que fomentam o acesso aos livros e a formação de leitores. Hoje o que vemos é muito mais iniciativas de instituições do que de ações governamentais”
Maria Aparecida Laginestra, coordenadora do Programa Escrevendo o Futuro e da Olimpíada de Língua Portuguesa no CENPEC Educação.
Ela cita, por exemplo, algumas ações do Programa Escrevendo o Futuro, como o Literatura em Movimento, um espaço sobre literatura e ensino de leitura literária no Portal do projeto. O Programa, iniciativa da Fundação Itaú Social, com coordenação técnica do CENPEC Educação, visa contribuir para a melhoria do ensino e aprendizagem da leitura e escrita nas escolas públicas de todo país, por meio de ações de mobilização para a formação de professores(as) de língua portuguesa.
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