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María Nieves Tapia: Aprendizagem Solidária para reconectar saberes e práticas
Diretora do Centro Latino-americano de Aprendizagem e Serviço Solidário (CLAYSS) fala sobre o potencial dessa pedagogia em tempos de crise e após a pandemia
- Gustavo Paiva
Por Stephanie Kim Abe
O 1º Prêmio Aprendizagem Solidária – Experiências que transformam foi lançado no Brasil em 25 de agosto, para identificar, reconhecer e valorizar práticas de aprendizagem que promovam ações de solidariedade, a partir do diagnóstico e intervenção em problemas reais de comunidades e territórios.
Para falar sobre essa proposta pedagógica, sua disseminação na América Latina e no Brasil e os benefícios que ela pode trazer em contextos de crise como o da pandemia de Covid-19, o Portal CENPEC Educação entrevistou María Nieves Tapia, diretora do Centro Latino-americano de Aprendizagem e Serviço Solidário (CLAYSS). Nessa conversa, ela fala das origens e influências do conceito e também destaca experiências de aprendizagem solidária que têm sido desenvolvidas mesmo durante a pandemia. Confira!
Inscreva-se no 1º Prêmio de Aprendizagem Solidária
Organizações da Sociedade Civil, instituições de ensino superior e escolas de todos os níveis da Educação Básica, públicas ou privadas, podem inscrever seus projetos ou experiências até 5 de outubro.
O prêmio é uma iniciativa da Rede Brasileira de Aprendizagem Solidária (RBAS), com coordenação técnica de CENPEC Educação, Instituto Singularidades, Movimento Futuro, OEI Brasil e da Mori Educação e apoio do CLAYSS.
Acesse aqui o site do Prêmio com todas as informações!
Portal CENPEC Educação: O que é a pedagogia da aprendizagem solidária e qual é o seu objetivo?
María Nieves Tapia: As origens da aprendizagem solidária têm muito a ver com a pedagogia do “aprender fazendo” de John Dewey, que começa nos finais do século 20, e se encontra com a pedagogia de reflexão e ação que transforma a realidade de Paulo Freire, nos anos 60 e 70. Então, por um lado, a aprendizagem solidária tem essa raiz pragmática norte-americana, e por outro, essa raiz na pedagogia crítica brasileira.
Saiba mais sobre John Dewey nesta matéria de Nova Escola
Ainda que essa prática seja muito antiga na América Latina, ela foi se difundindo a partir dos anos 60, quando foi chamada de service learning por um grupo de universidades norte-americanas.
Com o passar dos anos, a aprendizagem solidária foi entrando na cultura de diferentes regiões e sofrendo diversas influências. Na África, ela tem a ver com o Ubuntu (eu sou porque nós somos), e na Ásia se relaciona com tradições como a de Gandhi e de Confúcio.
Apesar das raízes pedagógicas e culturais diversas, uma prática de aprendizagem solidária se reconhece por três características:
Basicamente, a aprendizagem solidária é uma pedagogia que promove o protagonismo dos estudantes e jovens, para contribuir com a resolução de problemas concretos e com a melhoria das aprendizagens.
Portal CENPEC Educação: Quais as diferenças no desenvolvimento de projetos de aprendizagem solidária em diferentes etapas de ensino?
María Nieves Tapia: Poderíamos dizer que a aprendizagem solidária é uma forma de aprendizagem baseada em projetos. Não é um projeto padrão, pelo contrário: cada grupo, de acordo com a idade das crianças, as características da comunidade e a temática tratada, vai desenvolver um projeto diferente.
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Em termos gerais, podemos dizer que os projetos desenvolvidos na primeira infância, tendem a ser projetos breves, em que as crianças têm que ver resultados concretos para que sejam motivadas. Já os projetos feitos com adolescentes podem ter maior duração, para que desenvolvam a paciência, a perseverança, a determinação.
Na educação superior, é importante que os projetos estejam vinculados à pesquisa, com o desenvolvimento dos perfis profissionais.
Em relação à educação não-formal, devemos lembrar que todas as organizações têm um currículo, ainda que oculto. Seja um grupo da Cruz Vermelha ou de escoteiros, há conteúdos concretos que são ensinados – e essas aprendizagens devem estar explícitas nos projetos.
Em todos os casos, se trata de uma reflexão sobre a prática, para que não sejam práticas ingênuas.
Portal CENPEC Educação: O CLAYSS foi criado em 2002 na Argentina. O que se passava na Argentina na época e como esse contexto influenciou a criação do Centro?
María Nieves Tapia: A aprendizagem solidária começou a ser promovida pelo Ministério da Educação na Argentina no final dos anos 90, no marco de uma reforma que havia sido feita pela ampliação da obrigatoriedade da educação pública até os 15 anos. Os três anos do Ensino Médio ficaram como ensino não obrigatório. O governo federal propôs às províncias projetos para esses últimos anos, e um deles se chamava “Pesquisa e intervenção comunitária”, que eram projetos de aprendizagem solidária.
Assim, em 2000, eu fui colocada no Ministério da Educação à frente do que “Programa Nacional de Escola e Comunidade”, que foi o primeiro programa de promoção de aprendizagem solidária a nível nacional da Argentina.
Mas como sabemos que a política e a economia da Argentina têm as suas idas e vindas, ao final de 2001, nós tivemos uma grande crise econômica, que se converteu em uma crise política. Tivemos cinco presidentes em onze dias. Nesse contexto, o Ministério da Educação sofreu algumas mudanças, e entre tantas coisas, desfez o programa de aprendizagem solidária.
Tínhamos visto os enormes impactos que as práticas de aprendizagem solidária ocasionaram em um grupo de escolas com os quais estávamos trabalhando no âmbito do Programa do Ministério. Em fevereiro de 2002, nos reunimos com eles e decidimos continuar trabalhando a serviço dessas escolas, para seguir promovendo a aprendizagem solidária. Assim fundamos o CLAYSS.
Portal CENPEC Educação: Como essa proposta pedagógica tem se desenvolvido em termos de política pública na América Latina?
María Nieves Tapia: Na Argentina, ela começou como política pública. Com a crise, essa continuidade foi quebrada, e ela foi abraçada pela sociedade civil. Em 2003, ela foi retomada como política pública, e desde então segue-se ininterruptamente o Programa Nacional de Educação Solidária.
No Chile, também começou como política pública e depois se interrompeu e seguiu sendo difundida pela sociedade civil e pelas universidades. No Uruguai, a proposta nasce da sociedade e depois chega à política pública.
Nos Estados Unidos, houve durante quase 25 anos um programa que distribuía todos os anos milhões de dólares para projetos e pesquisa de aprendizagem solidária, e isso ajudou muito a fortalecer esse campo no país. Em 2008, os republicanos apagaram a política de aprendizagem solidária, mas ela já estava muito instalada no sistema e seguiu adiante.
Educação para o século XXI
A aprendizagem solidária envolve a prática ativa dos quatro pilares da educação estabelecidos pela UNESCO no Relatório Delors e que, no Brasil, foram desdobrados nas 10 competências gerais da Base Nacional Comum Curricular.
Saiba mais: Baixe aqui o Guia para o desenvolvimento de projetos de aprendizagem solidária – edição brasileira
Portal CENPEC Educação: A aprendizagem solidária só se fortalece e dissemina quando se transforma em política pública?
É fato que quando a aprendizagem solidária é promovida pelas políticas públicas, facilita-se a capacitação dos docentes, a difusão e a possibilidade de que haja recursos genuínos para apoiar os projetos dessa pedagogia. Quando não temos esses recursos, alguns projetos enfraquecem ou se desfazem.
Mas, ao olhar a história e experiência dos diferentes países, vemos que é possível difundir a aprendizagem solidária e desenvolver boas práticas nas instituições educativas, ainda que as políticas públicas não as apoiem.
A verdade é que a aprendizagem solidária é uma proposta muito atrativa para os educadores, porque é muito concreta e prática, e porque gera muito entusiasmo nos estudantes. E para os estudantes também, pois são atividades que de cara lhes dão sentido sobre porque estudar. Porque até as crianças e adolescentes em condições mais vulneráveis são capazes de fazer algo com os demais, porque são projetos que se tratam de reconectar, de usar as mãos e a cabeça.”
María Nieves Tapia, Diretora do Centro Latino-americano de Aprendizagem e Serviço Solidário
Portal CENPEC Educação: Em relação à formação docente, que tipo de práticas ou ensinamentos são necessários e que são diferentes daqueles que os professores estão acostumados?
María Nieves Tapia: Falamos muito das teorias das pedagogias ativas na formação docente, mas as estratégias concretas de como desenvolver uma pedagogia ativa não são ensinadas. Se um docente não tem formação sobre como colocar a aprendizagem solidária ou baseada em projetos em prática, cedo ou tarde tende a reproduzir a maneira que lhe foi ensinado. Lembrando que a forma como nos ensinaram é aquela da “educação bancária”, aquela forma tradicional com o docente na frente, ensinando, e os estudantes quietos e calados, sentados.
Há sim muitos docentes criativos, que conseguem inventar um projeto de aprendizagem solidária, ainda que não sejam capacitados, que não saibam da bibliografia ou como se chama.
Nós temos desenvolvido atividades de formação docente há 18 anos, sobretudo on-line, mas também de forma presencial. Nosso modelo propõe, por um lado, conhecer a bibliografia e as ferramentas metodológicas e práticas; por outro, mostrar boas práticas. Isso é muito importante para nós – porque no final, o que realmente convence um professor é ver que já foi feito por outro.
Saiba mais sobre a formação em aprendizagem e serviço solidário do CLAYSS
Portal CENPEC Educação: Com a pandemia, as escolas e a educação em geral tem enfrentado muitos desafios. Como a aprendizagem solidária pode ajudar nesse contexto?
María Nieves Tapia: Para uma pedagogia que se propõe a ir para fora e se relacionar com a comunidade, como a da aprendizagem solidária, a pandemia se coloca como um grande desafio, ao fechar escolas e não permitir que as pessoas saiam de suas casas.
Ao mesmo tempo, justamente porque estamos em tempos de pandemia, é mais evidente do que nunca a importância de se desenvolver uma solidariedade responsável, já que temos visto as consequências de um individualismo egoísta e irresponsável de alguns cidadãos.
No atual contexto, não é tão importante não sabermos resolver um problema de Matemática, ou não nos lembramos a altura do Himalaia, mas sim formar a empatia e a solidariedade, e educar para que tenhamos cidadãos responsáveis por si mesmos e para cuidar dos demais.”
Portal CENPEC Educação: Temos bons exemplos de práticas de aprendizagem solidária sendo realizadas durante essa pandemia?
María Nieves Tapia: Sim, temos visto instituições que já vinham fazendo aprendizagem solidária e seguiram suas práticas. Muitas começaram projetos movidas pela pandemia.
Na Argentina, por exemplo, muitas escolas técnicas têm utilizado suas impressoras 3D para fabricar telas protetoras para profissionais de saúde. Milhares de telas distribuídas nos hospitais foram fabricadas na escola pública. Também vimos escolas que começaram a desenvolver projetos virtuais de aprendizagem solidária. Vi vídeos preciosos de crianças que organizaram tutoriais pelo YouTube e programas educativos com a professora pensando nos colegas que não tinham acesso a materiais educativos.
Estudantes universitários viraram tutores a distância de crianças que talvez não tivessem em sua casa alguém para as ajudar com as tarefas. Também foram desenvolvidos projetos de pesquisa em várias universidades para reparar ventiladores ou produzir equipamentos mais econômicos para testagem do coronavírus.
Tudo isso, ainda que tenha sido organizado às pressas para atender a uma emergência, tem um valor formativo enorme. Eu estou convencida de que a aprendizagem solidária não só contribui para a pandemia, mas também vai nos ajudar a pensar em novas maneiras de pensar o mundo.
Portal CENPEC Educação: Mas nem toda iniciativa solidária das escolas e instituições é considerada prática de aprendizagem solidária, certo? Como as escolas podem transformar, por exemplo, uma simples campanha de coleta de alimentos em um projeto educativo solidário?
María Nieves Tapia: Nós consideramos que qualquer iniciativa solidária é positiva. A diferença principal está em quais são os seus objetivos. Nos projetos de aprendizagem solidária, há objetivos de aprendizagem, que estão orientados para que os objetivos do serviço solidário se cumpram melhor, gerando uma aprendizagem com sentido para os estudantes.
Uma campanha solidária organizada porque houve uma inundação ou um terremoto procura atender uma emergência. No projeto de aprendizagem solidária, há também outro objetivo, além do citado acima: a aprendizagem. Então,
O caminho é pensar não só o que é necessário para solucionar essa emergência, mas também para que essa experiência seja educativa.”
Essa dimensão é importante inclusive porque uma campanha solidária pode até “deseducar” quando, por exemplo, ela consiste em apenas pedir uma doação aos pais, em uma escola em que as crianças têm todas as suas necessidades satisfeitas. O que o estudante aprende? A pedir aos pais que façam um gesto solidário? Ou que é fácil ser solidário? Sabemos que não é assim que se muda o mundo.
Portal CENPEC Educação: Quais os desafios para o desenvolvimento da aprendizagem solidária no Brasil?
María Nieves Tapia: O Brasil tem uma cultura educativa muito fértil para o desenvolvimento da aprendizagem solidária. Primeiro porque já desde muitos anos há muita gente trabalhando nesse campo. Há uma tradição pedagógica – em Paulo Freire e outras práticas que vem se desenvolvendo nos últimos 30 anos – que também torna o sistema educativo propício para essa prática solidária.
Por isso também a importância da rede que se construiu no Brasil, a Rede Brasileira de Aprendizagem Solidária (RBAS), liderada pelo CENPEC Educação, que engloba instituições com muita tradição, com muita experiência de trabalho ao nível federal, e com muito conhecimento e equipe de qualidade. Vejo que ela tem muitas oportunidades pela frente, de sistematizar, fortalecer e difundir esse patrimônio.
Arte: Karine Oliveira
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