E-book: Criança, adolescente e educação antirracista
E-book gratuito traz uma série de artigos que olham para diversos aspectos do ECA à luz das questões étnico-raciais; saiba mais e veja outros materiais sobre a temática
Por Stephanie Kim Abe
O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), Lei no 8.069/90, é uma legislação muito celebrada – não só no Brasil, mas no mundo todo – por alcançar diversas conquistas para a garantia e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes. Entre elas, estão a concepção da prioridade absoluta, a doutrina da proteção integral e o reconhecimento das crianças e adolescentes como sujeitos de direito, não mais como objetos.
Mas nem tudo, infelizmente, são flores. Desde que foi publicada, há 32 anos, o ECA não avançou muito, segundo especialistas. Ele tampouco conseguiu contemplar, desde a sua aprovação, um olhar para recortes específicos como de gênero, raça, sexo.
Como explica Marília Rovaron, doutoranda e mestre em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que atua há 10 anos com medidas socioeducativas e formação de educadoras(es) sociais:
O ECA foi um grande avanço, e precisamos lutar por ele. Mas depois de sua publicação, não conseguimos dar grandes saltos. Por isso, é importante falarmos que questões relacionadas ao racismo e outras vulnerabilidades sofridas pelas crianças e adolescentes não aparecem nessa legislação. É como se todas as crianças e adolescentes estivessem numa mesma condição – e a gente sabe que isso não é verdade.”
Marília Rovaron
Questão étnico-racial no ECA
Marília é uma das pesquisadoras que assina um dos 12 artigos que compõem o e-bookCriança, adolescente e racismo – 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente. Cada artigo trata de uma temática específica referente aos direitos desse público, como direito à cidade, medidas socioeducativas, adultização de meninas pretas, direito à leitura, adoção, primeira infância etc.
O livro, disponível para download gratuito, é uma iniciativa do Grupo Ylê-Educare & Coletivo de Esquerda Força Ativa, e tem como organizadoras(es) Djalma Lopes Góes, Daniela Pinheiro de Oliveira, Flávia Abud Luz e Mônica Abud Peres de Cerqueira Luz.
Djalma Góes, sociólogo, doutorando em Educação para as Relações Étnicos-Raciais (Uninove); Mestre em Gestão e Práticas Educacionais (Uninove), militante do Coletivo de Esquerda Força Ativa e integrante do Fórum Hip Hop Municipal-SP, explica a importância de olhar para a questão:
O ECA tem 267 artigos, sem contar as mudanças que foram inseridas desde a sua aprovação, há 32 anos. No art. 3º, fala-se de ‘raça’ ao tratar da não discriminação; no art. 16 não se fala especificamente de raça, mas da questão do direito à liberdade. Tirando esses artigos, o ECA não trata das questões étnico-raciais. Em um país de bases coloniais, em que foi implementado um sistema escravocrata e em que, historicamente, as leis (tanto do Império quanto da República) sempre estiveram no sentido de marginalizar a população preta e os filhos de trabalhadores e trabalhadoras escravizadas, como pode haver uma lei que não discute essa questão do racismo para essas faixas etárias? A pergunta que fica é: seria o Estatuto o negligenciador dessa temática ou a sociedade, como um todo?”
Djalma Góes
Especial CENPEC Explica: 30 anos do ECA
Em comemoração aos 30 anos do ECA, o Portal Cenpec publicou, em 2020, uma série de reportagens que exploram diversos aspectos dessa importante legislação brasileira.
A obra, por tratar de diferentes áreas relacionadas à infância e adolescência à luz das questões étnico-raciais, traz reflexões importantes sobre como os marcadores sociais de gênero, raça, sexo deveriam ser determinantes para a formulação de políticas públicas.
Washington Lopes Góes, mestre em Educação pela PUC-SP e educador especialista em cultura, educação e relações étnico-raciais, por exemplo, assina o artigo 30 anos do ECA e a efetivação do direito à leitura junto com Suilan de Sá do Vale. O direito à leitura é um direito fundamental e, de acordo com ele, para ser assegurado é preciso olhar para três pontos: acesso, qualidade e produção.
Os dados mostram que nos bairros mais distantes, nas periferias – onde sabemos que a maioria das pessoas são pretas – a dificuldade de acesso ao livro é maior. Mas também é preciso assegurar leitura de qualidade, de obras de escritores e escritoras pretos e pretas, porque isso vai influenciar diretamente na construção da identidade de uma criança. Se ela não se reconhece nas histórias ou ilustrações disponíveis em um espaço de leitura, sua formação enquanto pessoa preta fica prejudicada.”
Washington Lopes Góes
Daí, continua Góes, a importância de políticas públicas que fomentem a leitura e produção de escritoras(es) negras(os). Isso significa a instalação de bibliotecas públicas de qualidade em todos os territórios, salas de leitura e práticas de incentivo, como mediação de leitura e promoção de atividades relacionadas à cultura do letramento, tais como slams e saraus.
A mesma problematização pode ser feita quando se olha para o perfil dos(as) adolescentes e jovens que estão cumprindo medidas socioeducativas – tema do artigo de Marília Rovaron, assinado junto com Paulo Cardoso. Em 2016, havia cerca de 26 mil adolescentes nessa situação. A falta de dados, aliás, indica o quanto a questão racial não é foco na determinação das políticas:
O último levantamento que temos acesso traz dados de 2016, onde apresentava que 40% das(os) adolescentes que cumpriam medidas socioeducativas eram negras(os). No entanto, 36% das(os) adolescentes nessa situação não tinham sua autodeclaração informada, porque alguns estados não levantam esse dado. Isso revela o quanto o país não lida com a questão racial, seja porque não se importa em problematizar essa questão ou porque as desigualdade racial já foi, infelizmente, naturalizada.”
Marília Rovaron
Pesquisar, refletir e agir
A quem fizer esses questionamentos e investigar, por meio das estatísticas, quem são as crianças e adolescentes mais vulneráveis, Djalma já dá a resposta:
Quem são as crianças que não são adotadas? As que estão em situação de trabalho infantil? As que estão fora da escola? As que cumprem medidas socioeducativas? Que sofrem abusos? Quando você olha para esses dados, você vê as crianças pretas e indígenas.”
Djalma Góes
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PnadC), em 2019, havia 1,8 milhão de crianças e adolescentes de cinco a 17 anos em situação de trabalho infantil, sendo a maioria deles meninos (66,4%) negros (66,1%).
Já os dados de 2020 sobre a violência e os maus-tratos contra crianças e adolescentes mostram que em 53% das quase 30 mil notificações de negligência e abandono de menores de 19 anos as vítimas eram negras e 52,5% do sexo masculino, como mostra a publicaçãoCenário da Infância e Adolescência no Brasil 2022, da Fundação Abrinq.
Para Djalma, uma das consequências de não se tratar da questão étnico-racial no ECA é que acabou abrindo espaço para a não criação de outras políticas públicas, como uma política nacional de igualdade racial para crianças e adolescentes:
O movimento da infância e da juventude negligenciou as políticas de igualdade racial, mesmo o ECA tendo sido obra das crianças de maioria preta, que faziam parte do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Nós, que trabalhamos com infância e juventude, precisamos lutar pela implementação dessa política de igualdade racial para essa faixa etária que englobe todos os setores, como educação, saúde, assistência social etc.”
Djalma Góes
“Queremos que esses textos cheguem não só às escolas, mas também às(aos) educadoras(es) sociais, porque traz reflexões importantes para ambos – e para a população em geral. Precisamos falar sobre como existe um silenciamento em relação ao racismo na infância e discutir os avanços e os retrocessos que têm acontecido nessa área”, complementa Washington.
Dicas para uma #EducaçãoAntirracista
Se o ECA é apenas um reflexo da sociedade, como bem colocou Djalma, então é preciso que toda a sociedade se engaje nessa discussão – inclusive as escolas e as redes de ensino.
O Cenpec tem buscado contribuir com essa temática, tendo realizado, entre outras ações, o projeto Educação para as relações étnico-raciais em 2020. O projeto de formação, iniciativa da Comunidade Cenpec, aconteceu com profissionais de educação de cinco Centros de Educação Infantil (CEIs) da capital paulista, no intuito de apoiá-las(os) na implementação da Lei 10.639/2003 e de uma educação antirracista.
Um dos materiais utilizados foi o vídeo educativo abaixo, que explica os conceitos de preconceito, discriminação e racismo:
Outro material audiovisual que vale assistir é a minissérie Por uma educação antirracista. Em cinco episódios, a produção acompanha cinco famílias em suas vivências com atividades didáticas relacionadas à temática, com o objetivo de apresentar boas práticas e caminhos para construir uma sociedade mais igualitária.
Iniciativa da Ação Educativa e da Fundação Mozilla, o edital é direcionado a escolas, universidades, organizações da sociedade civil, coletivos, movimentos sociais, profissionais de educação formal e não formal que tenham propostas de planos de aula e atividade que articulem raça, gênero e diversidade sexual em uma perspectiva interseccional na educação com internet e tecnologias digitais.
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