A brincadeira é o próprio aprendizado

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A brincadeira é o próprio aprendizado

A brincadeira é uma necessidade humana, uma forma de conhecer o mundo e a si mesmo. Leia a reportagem publicada originalmente na Plataforma do Letramento (Cenpec) em 2015

Mônica Cardoso

Uma caixa de papelão se transforma em automóvel. Depois, se torna boneca. E ainda vira berço. Nas mãos e na imaginação das crianças, frascos vazios, tampinhas de garrafas e folhas de árvores ganham vida e se transformam em brinquedos. Nessa brincadeira, é possível descobrir a si próprio, o outro e o mundo ao redor, de forma divertida e prazerosa. Algo tão simples e inerente à criança, mas que foi depreciado pelo modelo de educação vigente.

Para a educadora Maria Lúcia Medeiros:

Foto: arquivo pessoal

A brincadeira é uma necessidade própria do ser humano. O brincar brota espontaneamente na criança, que desde bebê brinca com as próprias mãos, depois com objetos, explorando o mundo de forma própria, sem regras. É uma ação de autoconhecimento que permite fazer relações, reflexões e determinar coisas importantes para toda a sua vida. É por meio da brincadeira que ela cria, imagina, constrói imagens e memórias, se desenvolve corporal, cognitiva e emocionalmente.”

Lucia foi coordenadora do Projeto Brincar, parceria entre o Cenpec e a Fundação Volkswagen. A iniciativa, desenvolvida de 2005 a 2016, tinha por objetivo a formação de professoras(es) da educação infantil de escolas públicas para sensibilizá-las(os) sobre a cultura da infância e ajudá-las(os) a rever suas práticas.

Muitas(os) professoras(es) relatam que as crianças estão mais felizes porque estão brincando mais e com isso têm vontade de ir à escola. Por meio da brincadeira, elas adquirem conhecimento de si, ficam mais autônomas, criam e inventam mais, se relacionam melhor com os outros e aprendem coisas que levarão para o resto da vida. Para os professores, o brincar proporciona mais leveza e alegria, porque muda o seu olhar em relação às crianças e instiga a buscar soluções para as dificuldades que enfrentam. A escola ganha vida.”

Maria Lucia Medeiros

Valorizar as brincadeiras e a vivência da infância, transformando as práticas educativas, vai na contracorrente de um modelo de educação que percebe o brincar como perda de tempo ou mero instrumento para aquisição de conteúdos curriculares.

Esse modelo de educação também separa as crianças por faixas etárias, dificultando a interação e o rico aprendizado que se dá quando crianças de idades diferentes interagem. Isso se verifica especialmente quando se trata de bebês e crianças pequenas, que muitas vezes ficavam confinados em berços ou em espaços reduzidos, por conta da ideia de que são extremamente frágeis e necessitam de absoluta proteção.

Em vez disso, as experiências do Brincar mostraram que a integração entre diferentes faixas etárias só traz ganhos. Renata Cristina Dias Oliveira, coordenadora pedagógica da Prefeitura de São Paulo e membro do grupo gestor do Fórum Paulista de Educação Infantil, conta:

Foto: arquivo pessoal

Na escola onde trabalho, o Centro Educacional Unificado (CEU) Alvarenga, a integração é total. As crianças mais velhas acolhem os bebês de forma generosa, aprendendo que eles têm outro ritmo e outra forma de pensar. E os bebês aprendem com a linguagem dos maiores e suas formas de brincar.”

Renata Cristina Dias Oliveira

Vídeo Caramba, carambola: o Brincar tá na escola

A extensão do brincar a todo o período escolar seria uma boa saída para os horários rígidos e a falta de espaços voltados a brincadeiras nas escolas, que dissociam os momentos de brincar e de estudar. Além das brinquedotecas e do parque, todos os locais da escola poderiam ser utilizados. Afinal, as crianças constroem brincadeiras em qualquer lugar e a todo momento, mesmo que os adultos nem percebam.

Foto: reprodução

Para Marcos Ferreira-Santos, professor de mitologia da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP):

Nossa cultura adota uma concepção cartesiana, que separa corpo e mente, e isso se reflete na escolarização. Nesse modelo de ensino, o aprendizado é entendido como um processo cognitivo que só ocorre no ambiente escolar e é segmentado por disciplinas.”

Marcos Ferreira Santos

O educador entende que, no modelo escolar vigente, predomina a reprodução do conhecimento baseado na memória. Já a brincadeira e a experimentação produzem o conhecimento e uma postura crítica.

No mesmo sentido, Renata reflete:

A nossa forma de pensar inclui a configuração lúdica e imaginativa, que é interligada à brincadeira. Um engenheiro, por exemplo, exerce uma profissão extremamente racional, mas ele projeta o que não existe e que começa na sua imaginação. Essa separação entre raciocínio e criatividade, imaginação e ciência, não faz parte do humano.”

Renata Cristina Dias Oliveira


Primeira Infância — Estúdio Nono

Educadoras e educadores entram na brincadeira

Um dos desafios à presença das brincadeiras na escola é a mudança na postura e no pensamento das(os) professoras(es), concebendo a educação de forma mais ampla e interdisciplinar. Muitas vezes, elas(es) se veem oprimidas(os) pela cobrança, da gestão escolar e da família, em seguir uma rígida rotina escolar e um programa pedagógico que prioriza os conteúdos estruturados e na obtenção de bons resultados.

Ao reduzir a brincadeira a um instrumento de aprendizado, ela perde seu valor. É preciso desvencilhar o brincar da finalidade didática de transmitir conteúdo, já que ele é a própria forma de a criança aprender.

O professor Marcos pondera:

A brincadeira é o aprendizado e a produção de conhecimento. A brincadeira não auxilia no aprendizado, ela é o próprio aprendizado. Se a pessoa não se arrisca a passar pela experiência, não tem como produzir conhecimento. Hoje as(os) professoras(es) acham que é bom ampliar o período do recreio de 15 minutos para 30 minutos. Mas as crianças deveriam brincar o tempo todo quando estão na escola.”

Marcos Ferreira Santos

As(Os) educadoras(es) podem construir e preparar o espaço brincante, estimulando as crianças, mas não podem prever quais brincadeiras serão criadas. Elas(es) se integram a esse espaço, não de forma invasiva nem diretiva, mas sendo convidadas(os) a participar das brincadeiras. Muitas vezes, as(os) educadoras(es) podem acompanhar a distância, de forma indireta, para que, mais tarde, as crianças compartilhem com elas(es) suas descobertas.

As brincadeiras são uma via de mão dupla, que fortalecem o relacionamento e nutrem educadoras(es) e crianças. Ao brincar com elas crianças, as(os) professoras(es) participam da construção do conhecimento e são capazes de oferecer novas propostas.

As educadoras(es) podem trazer objetos para incorporar às brincadeiras ou propor algo que tenha feito parte da sua infância e que talvez as crianças não conheçam. Também podem estimular as crianças a trazer brincadeiras para compartilhar com o grupo.

“Nas minhas aulas na graduação, eu faço uma provocação e substituo a palavra ‘pedagogia’, que tem origem no grego e significa conduzir a criança, por ‘brincalogia’, que seria conduzir as brincadeiras. Isso para despertar a ideia de que educadoras(es) e crianças podem brincar juntos na construção de um saber mais universal, que possa dialogar com os outros e com outras culturas”, observa o professor da FE-USP.


PARA EDUCAR: Cantigas

Tudo vira brinquedo

Os recursos utilizados nas brincadeiras são muitos e diversos: brinquedos, sucata, cantigas de roda, contação de histórias, música, dança, desenho, modelagem, entre outros. Bastar ter vontade e tempo disponível, pois as crianças sabem brincar e fazem isso muito bem.

“A brincadeira proporciona a integralidade das crianças, que se desenvolvem por inteiro. A brincadeira desenvolve a humanização, a criatividade, a interação com o outro, as linguagens, o enfrentamento das desigualdades, o poder de diálogo e negociação”, diz Renata.

Entre outros aspectos, o brincar estimula a linguagem oral à medida que, durante as atividades lúdicas, a criança pode cantar uma música ou contar uma história, desenvolvendo a expressão e a comunicação.

Brincadeiras orais

A coordenadora pedagógica vê vantagens na utilização de objetos não estruturados, as chamadas “sucatas”, em substituição aos brinquedos prontos, pois favorecem o poder de criação e imaginação das crianças. Ao observar crianças brincando com esse tipo de objeto, percebe-se que o principal não é o brinquedo, mas sim o que se faz dele. Isso também ajuda a refletir sobre o excesso de consumo e as reais necessidades das crianças – são estas o desejo de possuir brinquedos que acabam de ser lançados ou a possibilidade de criar, fantasiar, se relacionar, construir seus enredos?

O brincar com objetos não estruturados também possibilita algumas discussões. Será que há brinquedos para meninos e outros para meninas? Só os meninos podem brincar de carrinho? E as meninas, de boneca? Brinquedo é brinquedo, não tem gênero nem raça. Mas os conceitos da nossa sociedade mercadológica permeiam as brincadeiras, que segmentam os brinquedos por gênero e por cor: rosa para as meninas e azul para os meninos.

Os objetos não estruturados também desconstroem a questão das etnias, já que os brinquedos femininos, por exemplo, geralmente reproduzem imagens de princesas brancas”, diz Renata.

Quando um frasco de amaciante se transforma em uma nave espacial, eu, como educadora, passo a compreender a forma de a criança pensar o mundo. Eu compreendo a criança pelo brincar, compreendo cada gesto e olhar, o que qualifica minha ação como professora.”

Renata Cristina Dias Oliveira


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