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Recomposição das aprendizagens no Brasil e no mundo
Que lições podemos tirar das estratégias pedagógicas em contexto de crise aplicadas aqui e em outros países?
- Débora souza de britto
Por Stephanie Kim Abe
Recuperação, recomposição de aprendizagem. Acelerar o aprendizado, remediar os danos na aprendizagem. Esses termos têm aparecido com frequência no cenário da educação quando se trata de mitigar os impactos do ensino remoto nas(os) estudantes. Muitas vezes usadas como sinônimos, essas expressões, na verdade, podem levar a ações e planejamentos distintos. Mas, afinal, qual a diferença entre “recuperação” e “recomposição” neste contexto?
Recuperação da aprendizagem é o termo mais adequado quando estamos falando de uma situação em que a escola já ofereceu uma oportunidade real para a(o) estudante desenvolver as suas aprendizagens. Na literatura estadunidense, a “recuperação” é um processo de remediação pelo qual passa a(o) estudante que não aprendeu o que deveria ter aprendido.
Nesse sentido, fica evidente que o termo não é o mais adequado para o contexto atual, porque, com o ensino remoto que chegou de forma pouco satisfatória para muitas pessoas, a maioria das(os) estudantes não tiveram nem a primeira oportunidade de aprender. Logo, não há como recuperar algo que não se aprendeu.
Por isso, tem-se adotado o termo “recomposição”, no sentido de “restabelecer”, “restaurar” a conexão com a(o) estudante, que havia se perdido com o isolamento social. Érica Catalani, coordenadora de projetos do Cenpec, explica:
As crianças não estão recuperando algo. Elas estão restaurando, recompondo a ligação com a escola e com os seus aprendizados na perspectiva escolar. Assim como a escola também está restaurando a sua responsabilidade social de garantir o direito à aprendizagem, com qualidade e equidade.”
Érica Catalani
Mais do que uma questão conceitual, o que importa é que essa diferenciação está ligada a diferentes formas de planejar e pensar ações pedagógicas.
Enquanto as práticas pedagógicas de recuperação olham para trás, no sentido de tentar recuperar o que as(os) estudantes não aprenderam no passado, as de recomposição devem acelerar aprendizagem. Ou seja, elas devem ser planejadas para garantir a construção de conhecimentos prévios que ajudam a desenvolver competências, habilidades e atitudes relativas ao ano escolar em que estão matriculadas(os), impulsionando o aprendizado.
Isso significa que o planejamento não será feito sobre a pergunta ‘O que a(o) estudante não aprendeu ano passado?’, mas sim ‘O que você vai ensinar a ela(e) este ano?’. Com essa pergunta, pode até ser que a professora retome algum conteúdo de anos anteriores, mas ela vai fazer isso de forma a potencializar o aprendizado que a(o) aluna(o) precisa ter agora. Ela vai preparar o que chamamos de ‘andaimes ou suportes’ para que a aprendizagem aconteça.”
Érica Catalani, coordenadora de projetos do Cenpec
Uma avaliação de caráter diagnóstico será fundamental para a identificação das lacunas e o planejamento dos apoios necessários, tanto as ações pedagógicas de recuperação quanto de recomposição.
O diferencial da aceleração é também não criar estigmas nas turmas atendidas, pois muitas vezes, ao participar de uma turma de recuperação, a(o) estudante é marcada(o) pelas(os) colegas como alguém em desvantagem para a aprendizagem de novos conteúdos. Mas, nos processos guiados pela abordagem da aceleração, ela(e) receberá apoio ajustado e conseguirá, inclusive, participar da aula de forma muito mais ativa e vantajosa.
A seguir, vamos conhecer experiências, uma no Brasil e outras internacionais, no sentido de apoiar estudantes e docentes na recomposição de aprendizagens.
Uma das redes municipais que já tem realizado diversas ações e adaptações para evitar o aumento da evasão e do abandono escolar e manter o vínculo e o aprendizado das(os) estudantes desde o começo da pandemia é Londrina (PR).
Desde 2020, a equipe gestora tem adaptado programas que já tinham sido instituídos na rede para o contexto de ensino remoto. As(Os) chamadas(os) “professoras(es) mediadoras(es)”, que tinham como foco atender as crianças em situação de violência, em parceria com o Conselho Tutelar, o Ministério Público e outros órgãos da rede de proteção às crianças e adolescentes, deram sustentação às principais ações da Secretaria nesse período.
Como conta Cristiane Sola, gerente de educação especial da Secretaria Municipal de Educação de Londrina:
Foi essa equipe que realizou as visitas domiciliares e nos ajudou com a entrega de cestas básicas e do material impresso, chamado de Plano de Estudo Dirigido para Criança em Casa”.
Além da busca ativa, as ações da rede têm outros dois eixos estruturantes: o acolhimento socioemocional e a recomposição de aprendizagem. Viviane Peres, gerente de formação continuada, explica como as ações acontecem:
Temos o Programa Vida, que trabalha as questões socioemocionais desde 2019, à luz da Base Nacional Comum Curricular. Ele criou condições, com estudantes e docentes, para que a gente conseguisse fazer um trabalho tão bacana no âmbito pedagógico.”
Viviane Peres
Não houve uma única forma adotada pela rede para realizar a recomposição de aprendizagem. Pelo contrário. Ela optou por ter o mesmo foco nas 88 instituições de ensino fundamental I que administra, mas de vários formatos e possibilidades de intervenção direta no cotidiano escolar diferentes.
Em 33 unidades escolares, durante uma semana no mês, as(os) estudantes são reorganizadas(os) por níveis de aprendizagem em diferentes turmas, e não por série. “Às vezes, temos estudantes do 3º e do 5º ano na mesma sala”, relata. É a chamada “Grande Parada”.
Em 30 unidades, essa reorganização por nível acontece duas vezes por semana – daí o nome “Duas vezes”. Nas demais escolas, são realizadas também ações de “Duas vezes” eventualmente, e a recuperação paralela no contraturno e no turno escolar.
A proposta tem focado prioritariamente turmas do 3º ao 5º ano, em especial as(os) estudantes do 4º ano, o maior gargalo na rede. A meta é que, com essas ações, todas as crianças do 4º ano terminem o primeiro trimestre de 2022 alfabetizadas, ou seja, com as competências mínimas de leitura e escrita e conhecimento em matemática, para então abrir espaço para as(os) estudantes dos demais anos de ensino.
Como explica Adriana Biason, gerente de ensino fundamental da Secretaria Municipal de Londrina:
Nós pedimos para cada escola construir o seu plano de ação. Assim, o que definiu a proposta de trabalho que cada unidade adotou foram as suas condições estruturais e recursos humanos (disponibilidade de salas para comportar as diferentes turmas reagrupadas e de professoras(es) para cada grupo de estudantes).”
Adriana Biason
Para diagnosticar e acompanhar o nível de aprendizagem das(os) alunas(os), a rede tem realizado avaliações periodicamente, desde antes do retorno gradual às atividades presenciais, em agosto de 2021.
A equipe técnica da Secretaria tem disponibilizado, junto a cada instrumento avaliativo, um guia de aplicação e correção do material que já traz orientações ao trabalho a ser feito com relação a esses resultados. “Assim, as(os) professoras(es) não precisam esperar a análise geral e a nossa devolutiva da rede para pensar suas práticas pedagógicas”, explica Adriana.
Carolina Campos, fundadora e diretora executiva do Vozes da Educação, vê com bons olhos a experiência de Londrina e acredita que ela está em ressonância com muitas estratégias de recomposição de aprendizagem realizadas em diversos países e organizações mundo afora.
O Vozes realizou o estudo Recomposição de aprendizagens em contextos de crise, que traz um levantamento internacional sobre essas estratégias, com o objetivo de apoiar as redes de ensino com subsídios para pensar suas próprias ações locais de enfrentamento aos impactos da pandemia na educação de crianças e adolescentes. Como explica Carolina:
Muitos países já viveram outras emergências, como guerras, conflitos armados, epidemias de ebola, terremotos e outros desastres naturais. Buscamos saber como esses países saíram dessa situação. O que eles fizeram, nesse contexto de tragédia, de crise, para retomar a educação?”
Carolina Campos
Foram encontradas diversas ações de adaptação realizadas em diferentes países de todos os cinco continentes, como no currículo, tempo de instrução, práticas pedagógicas, formação docente específica, avaliação diagnóstica, material didático apropriado, monitoramento da evasão, ensino híbrido e mapeamento de competências socioemocionais.
Uma das experiências que parece ter mais coerência com as condições das redes brasileira e aceitação pelas secretarias é a chamada Teaching at the Right Level (batizada aqui de “Ensinar no nível certo”).
Elaborada pela ONG indiana Pratham, essa estratégia busca ajudar crianças a desenvolverem habilidades básicas de linguagem e matemática por meio da organização das(os) estudantes por nível de aprendizagem, e não por série ou idade. Foi essa experiência, inclusive, que serviu de inspiração para o aprimoramento de algumas ações da rede de Londrina, a partir do começo de 2022.
Ela já foi aplicada em alguns países da África. Na Zâmbia, por exemplo, um projeto piloto da iniciativa resultou em uma queda na proporção de crianças que não sabiam ler uma carta (de 33% para 8%), e aumento de estudantes com proficiência básica em matemática (de 34% para 52%).
O Teaching at the Right Level é uma iniciativa completa, porque parte da adaptação curricular e envolve avaliação diagnóstica constante, formação de professores e material didático. No Brasil, com a Base Nacional Comum Curricular, nós não temos como fugir desses quatro pilares. Ou seja, eu preciso de um currículo priorizado para trabalhar numa emergência; de um material didático que esteja vinculado a esse currículo; de uma avaliação pra saber como que os resultados estão acontecendo, de acordo com este currículo; e preciso de formação de professores para que sejam capazes de ministrar o que está sendo priorizado, de fazer as avaliações correspondentes e trabalhar com o material didático que oportunizamos”.
Carolina Campos, fundadora e diretora executiva do Vozes da Educação
Escolas de verão, que permite a extensão do tempo de instrução, e questionários socioemocionais (utilizados no Chile, por exemplo) foram outras estratégias utilizadas internacionalmente que Carolina acredita poderem ser aplicadas em contexto nacional.
“Eu não posso desconsiderar o componente emocional do período que estamos vivendo. Estamos retornando depois da maior tragédia coletiva do último século. Não podemos simplesmente voltar e dizer: ‘abram os livros na página 43 para falarmos sobre multiplicação’. É preciso chamar as(os) estudantes para uma roda de conversa e fazer um reconhecimento afetivo. Mesmo porque, quem consegue aprender quando está pensando no luto pelo ente familiar que faleceu ou lidando com crises de ansiedade?”, aponta a diretora executiva.
Ela lembra uma pesquisa internacional que revelou que 70% dos países de baixa e média renda precisaram fazer intervenção curricular. No caso de países ricos, apenas um em cada cinco adotou essa medida. Para Carolina:
“Isso mostra que países pobres tiveram que fazer mais intervenções curriculares, porque ficaram mais tempo com as escolas fechadas. E o Brasil se encaixa nesse grupo, já que ficamos 267 dias nessa situação. Na verdade, sabemos que essa contagem não dá conta da realidade, já que temos redes de ensino que só estão retornando agora“, detalha.
Para ajudar as(os) professoras(es) na recomposição da aprendizagem das(os) estudantes, o Programa Escrevendo o Futuro organizou, no dia 26 de maio, a live Avaliação diagnóstica da produção escrita no Ensino Fundamental II.
Com base na análise de textos produzidos por estudantes do Ensino Fundamental II, o encontro focou na importância da avaliação diagnóstica da produção escrita – estratégia essencial para que a(o) docente identifique os avanços e as lacunas nas aprendizagens das(os) alunas(os) e, assim, possa planejar as atividades que serão desenvolvidas com a turma.
Na semana passada, o governo federal lançou, por meio de um decreto, a Política Nacional de Recuperação de Aprendizagem das Aprendizagens na Educação Básica (Decreto no 11.079/2022). A Política apresenta como objetivo o combate à evasão e ao abandono escolar, a diminuição da distorção idade-série e o desenvolvimento de estratégias de ensino e aprendizagem para acelerar o avanço das(os) estudantes.
Para isso, aponta como diretrizes o incentivo ao desenvolvimento de soluções e de metodologias que promovam a recuperação das aprendizagens e estratégias de diagnóstico e acompanhamento do aprendizado discente e a promoção da inclusão digital e da inovação nas escolas.
O decreto prevê ainda o estabelecimento de metas curriculares nacionais, a aplicação de avaliação diagnóstica e formativa a docentes e gestoras(es), a elaboração de estudos, avaliações e de uma plataforma para divulgação das soluções tecnológicas relacionadas à temática.
Erica Catalani reconhece a importância de uma política pública que trata desses grandes problemas atuais, garantindo um arcabouço legal que inclusive incentiva as redes de ensino que ainda não planejaram ações nesse sentido o façam. Mas ela ressalta que essa política vem tarde:
“Estamos lidando com as dificuldades de aprendizagem das crianças, adolescentes e jovens desde 2020. O Conselho Nacional de Educação (CNE), por exemplo, já emitiu resoluções e orientações, e os estados e municípios já têm implementado ações de busca ativa e de acompanhamento das aprendizagens, de forma colaborativa com a sociedade civil organizada”, afirma.
Catalani acredita que o texto tampouco traz novidades:
Com relação ao regime de colaboração, apesar de sinalizar a sua importância, não aponta caminhos para a criação do Sistema Nacional de Educação (SNE), que o campo educacional já pleiteia há tempos. E, sobre a inovação e tecnologia, outras leis – da Constituição Federal ao Plano Nacional de Educação, passando pelo Marco Civil da Internet e, mais recentemente, a Política de Inovação da Educação Conectada – já tratam da importância da universalização da conectividade e do acesso aos recursos digitais. A meu ver, faltam elementos necessários para garantir que tudo o que está posto se concretize de fato.”
Érica Catalani, coordenadora de projetos do Cenpec
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