8M: Todos os direitos a todas as meninas e mulheres
Conheça a trajetória de três mulheres e suas lutas diárias pelo direito de estudar, ser respeitada, valorizada, trilhar o seu caminho, amar e ser amada: o direito a toda e qualquer forma de ser mulher
Por Stephanie Kim Abe
“O importante não é você ser a primeira, o importante é você abrir caminhos“.
A frase, dita por Conceição Evaristo, é lembrada por Paula Beatriz de Souza Cruz, ao falar do que significa, para ela, carregar o título de primeira diretora trans de uma escola da rede estadual do país, a de São Paulo:
“Eu sempre recordo essa fala da Conceição, porque não basta ser a primeira. Você tem que abrir caminhos. Então eu tenho, com esse reconhecimento enquanto pessoa trans, a responsabilidade de abrir caminhos para outras transexuais e travestis. E eu tenho tido esse retorno daquelas que eu encontro, que me dizem que voltaram a estudar porque conheceram a minha história”, diz.
Paula Beatriz é diretora da Escola Estadual Santa Rosa de Lima, na zona sul, há 19 anos. Antes disso, foi professora da rede estadual por cinco anos, e da rede municipal paulistana por 33 anos. Com toda essa trajetória, ela tem conhecimento de causa ao dizer que tem visto avanços na maneira como a escola trabalha a questão de gênero e sexualidade, e busca se tornar um ambiente mais acolhedor para todas e todos:
Quando eu passei pela escola pública, me chamavam de tudo. Não me viam enquanto criança trans. Hoje temos e usamos esse termo, tratamos as crianças assim, se é o caso. Além disso, a homofobia e a transfobia são crimes hoje em dia, o que também ajuda a fazer avançar esse reconhecimento e esse respeito pela diversidade. Não está ainda 100%, que é o desejável em termos de respeito e de afeto, mas estamos no caminho.”
Paula Beatriz, diretora da Escola Estadual Santa Rosa de Lima
Como diretora, ela conta que preza pela escuta, antes de tudo, para criar um ambiente acolhedor e saudável para suas(seus) estudantes, a maioria entre 6 e 11 anos. “Eu tenho visto muitas crianças pontuarem elas próprias a questão do respeito e do empoderamento, como meninas negras que mantém seus cachos e não alisam o cabelo”, conta.
Ela e toda a equipe escolar também tentam prezar pelas palavras neutras no dia a dia escolar, utilizando “estudantes” em vez de “alunos”, “docentes” etc: “Em vez de falar ‘pais’, que traz ainda uma conotação patriarcal, do homem no poder, nós falamos ‘responsáveis’. Mesmo porque sabemos que as famílias hoje têm diversas constituições: há crianças criadas pela avó, pelo padrinho, pelas tias, por duas mães”.
Além de lutar pelos direitos das pessoas trans e ser ícone e inspiração, Paula Beatriz, sempre que chamada, busca ajudar outras escolas a também trabalharem o tema, de forma que a escola continue se transformando para melhor. Para ela, a representatividade e o conhecimento são importantes nesse caminho:
Eu, como mulher trans, negra, da periferia, umbandista, filha de nordestinos, sei a importância da representatividade e quero que possamos continuar desconstruindo padrões e dizendo às(aos) estudantes que elas(es) podem sim. Para derrubarmos as barreiras e os impedimentos, a nossa maior ferramenta é o conhecimento, e este vem pela educação, que é a promotora de todo o sucesso e o progresso de um país. Temos que ouvir essas(es) jovens e crianças, porque elas(es) têm muito a dizer, e garantir que permaneçam no espaço escolar, para poderem ser tudo o que podem ser.”
Paula Beatriz, diretora da Escola Estadual Santa Rosa de Lima
Foi por perceber que a Escola Estadual Alberto Torres, na zona oeste de São Paulo, garantia um espaço de debate e de apoio às iniciativas de estudantes que a estudante Alice Conde Araújo de Oliveira, de 18 anos, resolveu cursar o seu 3o ano do ensino médio na instituição.
Foi lá que ela criou, com colegas e uma professora, uma iniciativa para trabalhar a educação antirracista, que acabou virando uma disciplina eletiva da escola.
É na sua realidade como menina preta e na realidade de outras amigas suas que Alice Conde Araújo de Oliveira, de 18 anos, encontra inspiração e força para dar forma, ritmo e cor aos diferentes tipos de arte que realiza.
Se “Medusa” era uma palavra que na época da escola lhe causava dores, hoje a palavra foi ressignificada por ela e, o que antes era fraqueza, foi potencializado para se tornar sua marca (literalmente):
Na minha infância, eu não tinha muito amor pelo meu cabelo, então eu fazia tranças. A maioria das crianças na minha escola me chamava de ‘medusa’ e falavam que não podiam e não queriam olhar nos meus olhos porque virariam pedras. Eu fiquei uns dois ou três anos sem amigos. Hoje, dei o nome da minha loja de roupas de Medusa e pretendo fazer dela um espaço colaborativo para artistas independentes amigos meus criarem e venderem suas peças.”
Alice Conde Araújo de Oliveira, estudante
Além da moda, Alice dança balé e hip-hop, desenha e faz poesia, tendo explorado essas diferentes searas artísticas desde pequena por influência do pai (professor de teatro e produtor cultural) e da mãe (professora de educação infantil e contadora de histórias).
É no slam – batalhas de poesias – que Alice tem se encontrado mais ultimamente. Uma de suas composições fala sobre essa vontade que ela e suas amigas compartilham de ter um romance clichê. “É você ter uma pessoa que realmente te ama, que possa te dar flores e outras coisas. Parecem coisas básicas, mas são coisas que muitas mulheres – principalmente pretas – não conseguem viver”, explica.
Eu aprendi a me amar mais Que eu sou a rainha do meu próprio castelo E no meu reino, profanamos amor Por isso, pretos e pretas estão se amando Então em fé a todos os meus E que possamos, como fênix, sair dessa dor.”
Para Alice, a arte é a maneira que ela pretende ainda mudar o mundo, de uma maneira diferente de como sonhou quando era pequena:
“Eu falava que queria ser prefeita ou presidente, porque eu queria mudar o mundo. Mas a realidade foi batendo na porta e comecei a ter receio disso. Então eu percebi que eu gostava muito de dançar, de cantar, de atuar, e fui começando a escrever meus sentimentos na adolescência. Quando eu vi o quanto os artistas que eu gostava e assistia mudaram a minha vida, eu falei: ‘eu quero fazer isso. Quero ser a inspiração para os outros que muitos foram para mim‘.”
Arte e educação para abrir caminhos
A macuxi Sony Ferseck também tem muita certeza do poder da arte: “a partir da força poética da palavra eu fui percebendo que tudo é possível e está conectado. Às vezes, achamos que estamos em dois caminhos diferentes, quando na verdade, ambos são vias de acesso que nos levam a um reencontro”.
Ela se refere à sua trajetória profissional, que se iniciou na graduação em Letras na Universidade Federal de Roraima (UFRR), e a levou a ser professora, ainda que o seu objetivo sempre tenha sido um só:
Eu sempre quis escrever. Era o que eu mais queria. Porém, a faculdade de Letras só oferecia a licenciatura – o que acabou me fazendo enveredar pelo caminho da docência”.
Sony Ferseck, poeta, escritora e editora
Entre as suas experiências como professora, ela destaca as aulas como professora substituta no Instituto de Formação Superior Indígena Insikiran da UFRR.
“Eu dava aula para indígenas, e isso me deixou super feliz porque foi uma maneira de reencontrar o caminho para a minha identidade e os meus conhecimentos indígenas, restabelecendo esse compromisso”, relembra.
Com o mestrado, Sony conseguiu retomar o seu sonho de ser escritora. Hoje, é poeta, escritora, palestrante, pesquisadora e co-fundadora da Wei Editora, a primeira editora independente de Roraima.
“Como editora, eu busco ter esse olhar mais atento às escritas femininas, dando mais oportunidade para as autoras e artistas visuais – oportunidades estas que eu mesma não tive muito quando tentei publicar meus primeiros livros. A Wei nasce dessa necessidade de fazer circular as obras dessas mulheres e, mais ainda, de publicar autoras indígenas, quando ninguém mais queria fazê-lo”, reforça Sony.
Para a escritora indígena, o poder da palavra é um grande aliado para as mulheres na luta por seus direitos:
A ligação com a arte e a educação permite que a gente diga que podemos protagonizar nossas próprias vidas – inclusive através da palavra. Quando escrevemos, temos força para dizer que somos possíveis para além dos papéis que os outros querem que nós façamos. Acho que essa é a grande partilha que, como escritora e leitora de outras mulheres que escrevem, a arte nos permite: dizer que é possível sim nos libertar de todas as opressões.”
Sony Ferseck, poeta, escritora e editora
Conheça um pouco da obra de Sony lendo o poema a seguir, publicado no livro Movejo (Boa Vista: Wei, 2020):
“não me nasci maria não prestei nem pra isso não cresci pra maria faltou batismo tampouco me fiz maria só desenvolvi consoantes que não dão rimas tivesse nascido antes ninguém mataria a folhas cegas aquilo que já fui demais na vida
não dei pra maria só fiz poesia & desgosto de filha um dia vou ser maria sem dúvida nem agonia vou ser pra jamais por enquanto fico no que não seria se não fosse maria se não fossem os mas…”
“Não podemos desacreditar do nosso potencial. Ser mulher, e uma mulher preta ou indígena no Brasil, já é muito desafiador, mas temos um potencial muito grande que não conhecemos e que precisamos explorar. Somos capazes de tudo o que quisermos”.
Discutindo gênero na educação
“…que saiba costurar, que saiba bordar…”?
No dia 16 de março, acontecerá o evento virtual “…que saiba costurar, que saiba bordar…”: Por que incluir a perspectiva de gênero no planejamento educacional. Promovido pela UNESCO com o título de “…que saiba costurar, terá a participação de Mariana Braga, da UNESCO Brasil, Denise Carreira, da Ação Educativa, e uma das ganhadoras do Fundo Malala.
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