Entenda como as pesquisas da psicolinguista argentina, falecida no dia 26 de agosto, mudaram a forma de pensar a alfabetização das crianças
Por Stephanie Kim Abe
No dia 26 de agosto, perdemos Emilia Beatriz María Ferreiro Schavi, importante educadora e psicolinguísta argentina, que faleceu aos 86 anos na Cidade do México, onde residia desde 1976.
Mais conhecida apenas como Emilia Ferreiro, sua marca na educação é muito perceptível nas próprias experiências e lembranças de alfabetizadoras(es) brasileiras(os) e de outros países que foram muito influenciados pelos seus estudos da psicogênese da língua escrita, realizados em parceria com Ana Teberosky.
Elisabete Monteiro é uma dessas pessoas. Ela atuou por muito tempo na rede municipal de Salvador (BA), tanto como professora alfabetizadora, como como coordenadora pedagógica e, depois, na diretoria pedagógica, e atesta que, antes de Emilia Ferreiro, a compreensão de alfabetização estava centrada basicamente no método de ensino.
Eu achava que, se eu escolhesse um bom método, eu poderia alfabetizar muito bem os meus estudantes, tanto crianças quanto adultos. Depois que eu conheci o trabalho de Emilia Ferreiro, eu comecei a perceber como professora que isso não bastava – eu precisava entender o que as minhas crianças estavam pensando sobre aqueles tracinhos, aqueles rabiscos, aquelas letras que estavam no papel. Eu mudei a minha forma de atuação enquanto professora e, depois, enquanto coordenadora“, lembra.
Elisabete Monteiro, diretora pedagógica do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP)
Para Maria Alice Junqueira, coordenadora pedagógica da Redelê, para entender como o trabalho de Emilia Ferreiro foi um divisor de águas, é preciso olhar para o contexto histórico em que ele se desenvolveu:
No começo dos anos 80, o que víamos na América Latina eram índices de evasão escolar absurdos. Esse quadro catastrófico vai impulsionar Emilia a se debruçar sobre como as crianças aprendem, e não sobre como ensinamos – que era toda a discussão de qual o melhor método de alfabetização. Naquela época, acreditávamos que as crianças entravam na escola sem saber nada, eram como um papel em branco”.
Formada pela Universidade de Buenos Aires, Emilia fez seu doutorado na Universidade de Genebra, na Suíça, sendo orientanda de Jean Piaget (1896-1980). Por isso a sua pesquisa bebe muito dos conceitos do construtivismo:
O construtivismo entende o sujeito como um ser que constrói ativamente os seus conhecimentos, protagonista de sua aprendizagem. Emilia Ferreiro trouxe essas ideias construtivistas para entender como a criança entende essa relação com a escrita – área que o próprio Piaget não tinha explorado muito”, explica.
Maria Alice Junqueira, coordenadora pedagógica da Redelê
Para fazer isso, a psicolinguista, tal como Piaget, fez entrevistas clínicas com as crianças, nas quais ela investigava o raciocínio delas. “Ela pedia para as crianças tentarem escrever palavras mesmo sem elas estarem alfabetizadas, e assim ia observando o raciocínio que elas usavam para realizar essa ação. Ela percebeu, ao longo da pesquisa, que algumas havia regularidades nas respostas das crianças, um certo padrão”, diz Alice.
As pesquisas de Emilia, em parceria com Ana Teberosky, apontaram que as crianças passam por fases (pré-silábica, silábica, silábico-alfabética, alfabética) nas quais desenvolvem algumas hipóteses sobre como a língua escrita funciona. Elas desenvolviam, assim, a psicogênese da língua escrita, ou seja, a origem do pensamento sobre o sistema alfabético.
Primeiro, elas começam achando que podem escrever de qualquer forma, por exemplo, que para escrever casa é só desenhar a casa, ou que se pode misturar letras e números na escrita. Depois, elas entendem que só se usa letras, mas não sabem muito bem como isso acontece.
Em torno dos três, quatro, cinco anos, as crianças criam a hipótese de que para escrever é preciso ter no mínimo três letras. Elas creem também que não se pode repetir a mesma série de letras dentro de uma mesma palavra. Essas são apenas algumas das etapas pelas quais as crianças vão passando antes de se alfabetizarem, sempre perseguindo a pergunta: o que a escrita representa? Elas precisam entender que a escrita, no nosso sistema alfabético, representa os sons da fala”, explica.
Maria Alice Junqueira, coordenadora pedagógica da Redelê
Ou seja, a ideia de que as crianças não sabiam nada sobre a escrita, como se acreditava anteriormente, era uma falácia.
“Por trás da mão que pega o lápis, dos olhos que olham, dos ouvidos que escutam, há uma criança que pensa.”
Inequivocadamente, passou a ser difundida a ideia de que ser construtivista é deixar a criança aprender sozinha ou não fazer boas intervenções. Elisabete Monteiro, atualmente diretora pedagógica do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP), rebate essa crença:
Esse é um grande equívoco, pois, se fosse assim, todas as crianças que não frequentam a escola se alfabetizariam sozinhas. Basear a prática pedagógica em uma abordagem construtivista psicogenética é, antes de mais nada, planejar muito as aulas, planejar boas situações didáticas em que as crianças sejam colocadas na situação de leitura e de escrita de forma inteligente”.
Elisabete Monteiro, diretora pedagógica do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP)
Segundo Elisabete, isso envolve, entre outras estratégias:
📒 Diagnosticar o que as crianças pensam e já sabem sobre a escrita (conhecer bem o grupo com o qual se está trabalhando); 📒 Gerar situações de diálogo criança-criança, criança-professora, grupo como um todo, apresentando como escrevem e comparando com a escrita do colega; 📒 Deixar, dentro da sala de aula, “boas pistas” ou “pistas confiáveis” – como o nome dos colegas, títulos de histórias que elas já conhecem de cor – para que as crianças possam pesquisar sobre como se escrevem as palavras e escrever os novos textos que querem no momento.
É o oposto, por exemplo, do que se fazia anteriormente em relação a começar o ensino pelas vogais ou priorizando a lateralidade e a coordenação motora da criança para escrever as letras corretamente.
“Começar o trabalho de alfabetização com as crianças ensinando as vogais A, E, I, O, U não faz o menor sentido, já que elas acreditam que você não pode escrever com menos do que três letras. Ou usar interjeições como UI, AI, que não querem dizer nada”, lembra Maria Alice.
“Um dos maiores danos que se pode causar a uma criança é levá-la a perder a confiança na sua própria capacidade de pensar.”
Emilia Ferreiro
Por essa lógica, as crianças não são solicitadas a escrever com autonomia.
“A escrita, nessas atividades, acontece de forma toda programada sobre o que vai ser escrito, lido, copiado. Existe uma ênfase muito grande na repetição e uma definição equivocada que você sempre tem que partir do mais simples para o mais complexo, que você tem que partir das famílias silábicas mais simples para as mais complexas”, diz Elisabete.
Ela complementa:
O que a abordagem construtivista psicogenética defende é que é preciso trazer situações comunicativas reais para a sala de aula, aproximando ao máximo o que ocorre na escola das situações reais de uso da leitura e da escrita. Assim, elas não ficam limitadas a uma sequência definida previamente pelo currículo escolar”.
Elisabete Monteiro, diretora pedagógica do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP)
Por mais que os resultados das pesquisas de Emilia Ferreiro estejam presentes há mais de quarenta anos, ainda é preciso mais investimento em formação inicial e continuada de educadoras(es), como defende Elisabete:
“A alfabetização não é um luxo nem uma obrigação: é um direito.”
A instabilidade política, que faz com que políticas públicas mudem a cada gestão, fragiliza uma mudança de concepção da prática docente. Mas se desejamos realmente que as nossas crianças das escolas públicas tenham o direito de se alfabetizarem dentro de uma concepção crítica, em que elas possam ser sujeitos da sua aprendizagem, precisamos de um programa de formação robusto, de maior durabilidade“.
Elisabete Monteiro, diretora pedagógica do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa (ICEP)
📒
Uma geração de alfabetizadoras influenciadas por Emilia Ferreiro
Com a chegada dos resultados das pesquisas de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky ao Brasil, floresceram estudos que possibilitaram mudanças profundas no terreno da alfabetização. Entre importantes autoras(es) e pesquisadoras(es) contemporâneas(os) à psicolinguísta argentina que contribuíram muito para esses avanços é relevante mencionar Magda Soares, Luiz Carlos Cagliari, Terezinha Nunes Carraher, Ana Luiza Bustamante Smolka, Artur Gomes de Morais, Mary Aizawa Kato e Lúcia Lins Bronwne.
Alice Junqueira conta que essas(es) pesquisadoras(es) influenciaram muito a sua prática pedagógica. Ela e Elisabete Monteiro fazem parte de uma geração de professoras alfabetizadoras que estavam em sala de aula nos anos 80 e foram profundamente impactadas pela psicogênese da língua escrita e seus desdobramentos.
A seguir, veja a homenagem de algumas professoras, que contam como os ensinamentos de Emilia Ferreiro contribuíram para suas práticas em sala de aula:
Aline Nascimento, professora da rede pública municipal de Salvador (BA), e Claudia Vóvio, professora do curso de pedagogia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), dialogam sobre prioridades que uma política pública nacional de alfabetização precisa ter, os desafios da alfabetização no pós-pandemia e dicas para professoras e professores sobre como trabalhar esse processo em sala de aula.
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