Reconhecer de fato a importância do descanso para a saúde mental de profissionais da educação é garantir condições de trabalho, valorização docente e muito mais.
Por Stephanie Kim Abe
Sara* (nome fictício) tem mais de 15 anos de experiência como professora do ensino fundamental, tendo trabalhado na rede estadual de São Paulo e em escolas particulares antes de se tornar professora de uma rede municipal de educação da Baixada Santista (SP).
Há dois anos, ela quase desistiu da carreira docente, por conta de um episódio estressante que teve com o pai de um de seus estudantes.
Ela conta:
“O filho, que era meu aluno, era complicado, batia nas outras crianças e tinha diversos conflitos. Uma vez, agrediu verbalmente uma criança, e ela apertou o seu pescoço. Nessa ocasião, o pai veio me questionar sobre o que eu tinha feito. Esse aluno também vivia tendo acidentes na escola. Em outro episódio, ele machucou o joelho porque caiu. O setor de alunos colocou gelo, fez o atendimento necessário, mas, na saída do colégio, o pai veio me questionar mais uma vez sobre não ter agido. O pai chegou a levantar o dedo e apontar no meu nariz. Eu me exaltei assim como ele e gritei, porque já estava cansada de toda aquela situação em sala de aula”.
A professora pediu alguns dias de folga, teve apoio da gestão escolar e chegou a ser encaminhada para o atendimento psicológico do município. “Não pude dar continuidade ao atendimento porque a psicóloga da rede ia entrar em licença maternidade e depois de férias, e não havia profissional para substituí-la nesse período”, diz. Por conta disso, ela não conseguiu o afastamento que precisava.
“Eu não suportava falar da escola, queria fazer outra coisa da vida. Não queria mais voltar para a sala de aula, porque fiquei com medo que algo pior dessa interação com o pai pudesse acontecer”, explica.
Em 2023, com a troca das turmas, ela deixou de dar aula para esse aluno. Com o apoio da família, ela acabou se mantendo na profissão. “Não tenho mais essa dúvida. Ao longo de todos meus anos lecionando, essa foi a única vez que tive problemas com os pais de estudantes. Sempre lidei com pais e crianças amistosos”, diz.
Anos bastante complicados
Desde a pandemia, a questão da saúde mental tem estado em alta, dada a forma como essa calamidade global afetou todos e todas. Pesquisas mostraram como a pandemia agravou a saúde emocional de educadoras(es), assim como influenciou na forma como as crianças e adolescentes se comportam na escola e lidam com os conflitos e relações sociais.
Lembro que as crianças chegaram, em 2022, de certa forma um pouco desequilibradas, outras sem controle, achando que podiam fazer o que quisessem na escola, pois não sabiam mais como era conviver nesse espaço. E os pais, que durante a pandemia foram parceiros, hoje são os primeiros a nos agredir”, conta Sara.
Marilda Gonçalves Dias Facci, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá e presidente da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrapee), acredita que mesmo em 2023 ainda foi possível sentir os efeitos do período de escolas fechadas por conta da pandemia.
Eu acho que este ano foi um ano bastante complicado, porque a gente está sofrendo ainda os efeitos da pandemia. Em relação ao processo de ensino e aprendizagem, estamos vendo crianças com defasagem, porque ficaram dois anos sem acesso ao conhecimento, o que gerou grandes dificuldades na escola”, diz.
Marilda Gonçalves Dias Facci, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá e presidente da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrapee)
A psicóloga escolar Roberta Maria Federico, que trabalha na Escola Municipalizada de Tempo Integral Joaquim Pedro de Andrade CIEP Bz. 452, em Itaboraí (RJ), traz ainda um outro elemento que marcou o cenário educacional este ano e afetou a saúde mental e emocional de todos e todas da comunidade escolar: os ataques violentos contra as escolas. De janeiro a outubro, foram contabilizados 16 ataques extremos a instituições de ensino, segundo dados do governo federal.
Ela percebeu muitos adoecimentos e faltas entre as(os) professoras(es) de sua escola. E, não à toa, ela define o ano de 2023 como “vários anos em um só”:
Foram muitos acontecimentos do começo até o final do ano. Eu senti a escola amedrontada por ameaças que nem recebeu de fato, porque eram informações ou boatos que viralizaram nas redes sociais sobre outras regiões ou redes de ensino. Então eu vi esse fenômeno da potência das redes sociais e das fake news para a disseminação do pânico. Tivemos crianças querendo levar canivete para a escola, para poderem se proteger por conta própria. Além disso, perdemos dois alunos no final do ano para a violência urbana. Ou seja, começamos o ano com medo dos atentados e terminamos enlutados”, lamenta.
Violência como reflexo da sociedade e de condições precárias
Tanto Roberta quanto Marilda ressaltam que os episódios de violência extrema contra as escolas devem ser analisados dentro do contexto maior do que acontece na sociedade.
“Os ataques que aconteceram no começo do ano refletem uma sociedade que vinha numa escalada de intolerância, de violência, de acesso a armas e a discursos de intolerância. E isso chega nas escolas, já que ela é o reflexo da sociedade”, explica Roberta.
“Embora a mídia tenha essa tendência a culpabilizar o sujeito que praticou o ato, o que percebemos é que esses episódios são reflexo de uma violência estrutural. Não podemos aceitar esse tipo de ataques, mas eles não são isolados da sociedade. Para isso, temos que saber que essa violência é fruto também da exploração do trabalhador”, pontua Marilda.
A “exploração do trabalhador” que Marilda menciona tem a ver com as condições de trabalho das(os) professoras(es) e como isso afeta não só o seu desempenho profissional como o seu emocional.
A história da professora Sara da Baixada Santista retrata um pouco essa questão, já que diversos empecilhos acabaram por tornar a situação em que se encontrava mais estressante:
“Eu tinha uma sala de aula com uns 25 alunos, o que é uma sala cheia. Eu não pude ter o acompanhamento psicológico que precisava porque não tinha profissional. Não consegui ficar muito tempo afastada porque tampouco tínhamos professores substitutos para entrar no meu lugar”, conta.
Segundo a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), essa média de 25 alunos por turma encontrada no ensino fundamental II é maior que a média da encontrada nos países membros da OCDE – que é de cerca de 14 estudantes. Além disso, eles também constatam que o salário dos professores é um dos mais baixos do mundo.
A pesquisadora Marilda lembra dos resultados da Pesquisa Violência e Preconceitos na Escola, realizada entre 2013 e 2015 pelo Conselho Federal de Psicologia envolvendo diferentes instituições parceiras e universidades, que mostraram as diferentes percepções da comunidade escolar sobre esses fenômenos.
Os professores identificaram constrangimento físico e psicológico, agressão verbal, humilhação como violências, tanto de aluno contra aluno, como aluno contra professor. Mas um ponto que colocavam muito, e que as pessoas não comentam, é a violência que existe quando há o descaso do trabalho do professor, quando há pouco investimento na educação ou uma desvalorização do seu trabalho. E, se pensarmos que desde a pandemia tivemos uma sobrecarga dos professores, com o ensino on-line, é compreensível que a saúde mental deles esteja cada vez mais afetada”.
Marilda Gonçalves Dias Facci, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá e presidente da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrapee)
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A importância das desejadas e merecidas férias
Sara conta que foi importante ter as férias de julho para poder descansar e espairecer, durante o seu período de estresse e incertezas com relação à carreira docente em 2022.
“Ter as duas semanas do meio do ano em casa foi ótimo, pois eu não tinha preocupação com a escola. O problema foi a volta. Foi muito sofrido até o final do ano, porque todo dia eu ia para a escola pensando: o que será que vai acontecer hoje?”, relembra.
Na escola onde a psicóloga Roberta trabalha, ela conta que o corpo docente e demais funcionárias(os) se organizam direitinho para encerrar as atividades no final do ano letivo, assim como as documentações, para não precisar ser acionadas nem para responder pequenas demandas durante as férias, que costuma durar até o final de janeiro.
As férias são fundamentais. Elas são um momento de entender que o trabalho não é a centralidade da vida das pessoas. Trabalhamos para viver, não vivemos para trabalhar. E a escola tem uma especificidade de ser um tipo de trabalho que envolve muito emocionalmente as pessoas – e por isso é também um espaço onde há muito adoecimento. Em um ano como o de 2023, de muito estresse, medo, autocobrança pela aprendizagem dos estudantes, ter esse momento de descanso é fundamental”, diz.
Roberta Maria Federico, psicóloga escolar
Mas ela também ressalta a importância de ter condições efetivas para realizar um bom trabalho, como o projeto sobre cultura de paz que foi realizado em todas as escolas ao longo de 2023 – que incluiu rodas de conversa, eleição de representantes de sala e incentivo ao protagonismo juvenil.
“Aqui, nós temos um psicólogo por escola que oferta ensino fundamental II. Também tenho o apoio da gestão para realizar meus projetos”, conta.
Marilda elenca outros fatores que, hoje em dia, acabam por contribuir para a “corda no pescoço” das(os) professoras(es): uma cultura por produtividade e resultados, a formação precária, as diversas jornadas de trabalho para compor um salário digno etc.
A precarização do trabalho é um dos principais motivos de adoecimento dos professores. Muitas vezes, o próprio professor começa a achar que ele está culpado por estar doente, quando na verdade foram as condições objetivas e subjetivas do ambiente de trabalho que não proporcionaram a ele uma saúde mental tranquila e saudável. Quando sai um novo resultado de avaliação, muitas pessoas acabam por culpar o professor, mas ninguém pergunta como ele foi formado, quais as suas condições de trabalho etc. Isso tudo é violência”, explica.
Marilda Gonçalves Dias Facci, professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá e presidente da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (Abrapee)
Enquanto ela também recomenda que profissionais da educação aproveitem as férias para se desligar do trabalho, estar com a família e os amigos, se dedicar a outros hobbies e atividades que lhes dão prazer, ela também apela para que as autoridades garantam as condições necessárias para que isso seja possível:
“Os tomadores de decisão precisam entender que a legislação tem que garantir esse tempo para o professor. Para isso, ele precisa ser valorizado. Ele precisa ter tempo de lazer, e condições financeiras para ter acesso ao lazer. Logo, estamos falando de salários justos, melhorar a infraestrutura das escolas, investir na educação como um todo”.
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