- Tamara Castro
Elba Siqueira de Sá Barreto
Somos um país de escolarização tardia. Apenas na virada deste século é que toda a população em idade escolar passou a frequentar o ensino obrigatório. À medida que os países avançados e, posteriormente, os da América Latina, lograram incluir toda a população escolar no ensino compulsório, outro grande desafio foi posto para as políticas públicas: o de melhorar a qualidade da educação. Desafio tanto maior quando se considera que a expansão universal da escolaridade veio acompanhada da depreciação da certificação que ela oferece e do esmaecimento do seu papel diferenciador no que se refere à inserção dos indivíduos na sociedade contemporânea.
As reformas educativas do final dos anos de 1990 no Brasil procuraram entrar no compasso das grandes mudanças operadas nos sistemas escolares do Hemisfério Norte.
Em um cenário de profundas alterações nos esquemas de poder no mundo globalizado, de reestruturação produtiva, de crise dos paradigmas de verdade e de embates nos processos de construção de identidades, era preciso dar respostas às novas demandas sociais também no campo da educação.”
Na perspectiva de ampliação do direito à educação, assegurado pela Constituição Federal de 1988, a educação infantil passa a constituir uma etapa da educação básica e a extensão da obrigatoriedade escolar é prevista até os 17 anos de idade, que correspondem ao término do ensino médio.
Com o propósito de melhorar a educação básica, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/96 ) que se seguiu adota premissas explícitas de valorização dos docentes, começando por elevar a exigência de formação em nível superior para os professores de todas as etapas da escolaridade. Ao mesmo tempo, aumenta o número de dias letivos do ensino fundamental de 180 para 200 – equivalente, aproximadamente, à quantidade de dias adotada pelos países da Comunidade Europeia (MAURÍCIO, 2014). Propõe ainda, no art. 34, o aumento da carga horária diária dessa etapa da escolaridade, de modo que os alunos cumpram, pelo menos, quatro horas diárias na escola e que o período de permanência seja progressivamente ampliado.
A aposta na melhoria das condições de formação, remuneração e trabalho docente como parte das estratégias voltadas para assegurar uma educação básica de melhor qualidade, ganha concretude por meio de muitos dispositivos legais e instrumentos de política de âmbito nacional, criados nos anos posteriores com desdobramentos nas esferas estaduais e municipais.
No que se refere às medidas de expansão da educação básica, são criados vários dispositivos legais e instrumentos de política: o aumento da duração do ensino fundamental de oito para nove anos, nele incluindo as crianças de 6 anos (Lei 11.274/2006); a extensão da obrigatoriedade escolar dos 4 aos 17 anos (Emenda Constitucional 49/2009); e medidas voltadas para a ampliação progressiva da jornada escolar e oferta da educação em tempo integral (ETI).
O Plano Nacional de Educação (PNE) 2001/2011, como um desses dispositivos, circunscreve o aumento progressivo da jornada escolar às coordenadas que configurarão as políticas subsequentes. Ele sinaliza a duração de, pelo menos, sete horas diárias para o atendimento de tempo integral nas escolas, a previsão de professores e funcionários em número suficiente e anuncia que as escolas de tempo integral devem atender, preferencialmente, as crianças das famílias de menor renda e oferecer, duas refeições diárias, no mínimo; apoio às tarefas escolares; prática de esportes e atividades artísticas (PNE: metas 21 e 22. BRASIL, 2001).
Entre os dispositivos dessa expansão, os de menor alcance e abrangência são os referentes à ETI, seja porque os demais possuem um caráter universal, seja pelo paradigma de expansão da permanência na escola que têm prevalecido nas políticas públicas.
A carga horária reduzida de muitas escolas é um impeditivo para elevar o desempenho dos alunos de forma condizente com as expectativas de melhoria da educação no longo prazo.”
Obviamente, o aumento puro e simples dos dias letivos e da carga horária diária das aulas não garante uma educação básica de melhor qualidade (CAVALIERI, 2002). Não obstante, a carga horária reduzida de muitas escolas é um fator impeditivo quando se trata de assegurar, de modo sustentável, a progressiva elevação do nível de desempenho dos alunos condizente com as expectativas de melhoria da educação no longo prazo.
Para dar cumprimento ao proposto no PNE 2001-2011, o governo federal cria em 2007, por meio de Portaria Interministerial, o Programa Mais Educação (PME). O objetivo é contribuir para a educação integral de crianças, adolescentes e jovens, mediante a articulação de ações, projetos e programas da União com propostas e práticas curriculares das redes públicas de ensino básico. Propõe-se a apoiar a ampliação dos tempos e espaços educativos e a extensão do ambiente escolar mediante realização de atividades nas unidades escolares ou em outros ambientes socioculturais no contraturno.
As ações socioeducativas desenvolvidas pelo programa incluem os campos da educação, da arte, da cultura, do esporte e do lazer, mobilizando-os para a melhoria do desempenho educacional, o cultivo das relações entre professores, alunos e suas comunidades, a garantia de proteção da assistência social e a formação para a cidadania. Devem também contemplar a abordagem dos temas: direitos humanos, consciência ambiental, novas tecnologias, comunicação social, saúde e consciência corporal, segurança alimentar e nutricional, convivência e democracia, compartilhamento comunitário e dinâmicas de redes (BRASIL, 2007).
O suporte legal, que permite a sustentação do PME no ensino fundamental e sua extensão para o ensino médio, é oferecido pelo Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) com recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE). O Fundeb, também instituído em 2007, estipula que os recursos repassados pelo governo federal aos sistemas estaduais e municipais de acordo com o respectivo número de alunos matriculados passam a ser diferenciados para a educação de tempo integral. Isso significa que os sistemas que ampliarem a jornada escolar receberão recursos extras.
O próprio nome – Educação em Tempo Integral – requer um esclarecimento: o que se entende por educação integral nas políticas brasileiras? A Constituição Federal/89 (art. 205) e a LDB (art. 2) vêm em nosso apoio, ao determinar que o propósito da educação é “o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho”, de sorte que se pode pensar a educação integral como aquela que contempla os diversos aspectos do desenvolvimento humano na esfera individual e na vida em sociedade, abrangendo as dimensões cognitiva, afetiva, social, política, cultural, física, ética e estética.
O PME tem por objetivo proporcionar a formação plena dos sujeitos abrangendo as suas múltiplas dimensões, com vistas a constituir uma educação cidadã e a construção de sujeitos autônomos e comprometidos com as transformações da sociedade. Mas ele confere características específicas às ações propostas. Em primeiro lugar, trata-se de um programa de caráter intersetorial, que deve promover a articulação e a convivência entre diferentes ações e serviços públicos voltados às áreas sociais, e do qual devem participar além do Ministério da Educação (MEC), os ministérios da Cultura, do Esporte e do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, da Ciência e Tecnologia, do Meio Ambiente e outros, cujas ações tenham afinidade com os propósitos explicitados. Nessa perspectiva, o programa pareia a contribuição da educação escolar e não escolar na consecução dos objetivos propostos. Ademais, a ampliação dos tempos e espaços da educação integral assume um modelo focal, de tipo compensatório, dirigindo suas ações para populações em situação de risco e a escolas e territórios com vulnerabilidade social (BRASIL, 2007).
O PME foi concebido pela Secretaria da Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade e Inclusão (Secad), novo órgão do MEC com status político idêntico ao da Secretaria de Educação Básica (SEB). A Secad é incumbida de formular e contribuir para disseminar, em regime de colaboração, as políticas referentes à oferta de ensino que contempla especificidades em razão da diversidade das populações atendidas. Entre elas, encontram-se a educação no campo, de adultos, indígena, das pessoas com deficiência, dos quilombolas, bem como a abordagem das questões de gênero e orientação sexual. O modo preferencial de atuação do órgão no âmbito do MEC é o de estabelecer articulação intensa com entidades e movimentos sociais com experiência no trabalho de resgate de culturas autóctones e nas lutas contra os processos de exclusão social em vários desses campos, e que têm como desafio constituir-se em espaços de diálogo e de negociação de sentidos para as novas propostas.
Operando com várias lógicas, que atendem a interesses diversos – e, por vezes, conflituosos, mesmo no interior das instâncias de formulação –, o MEC busca conciliar as políticas universais, dirigidas a todos indistintamente (como as do aumento da duração do ensino fundamental e de extensão da faixa de escolaridade obrigatória, identificadas como políticas da igualdade), com as políticas compensatórias, de inclusão ou de ação afirmativa, focalizadas em grupos sociais com desvantagem. Essas são identificadas como políticas de atenção às diferenças, ou da equidade.
O Programa Mais Educação recupera características próprias de experiências históricas de educação integral congêneres no país: a da Escola Parque (…) e conserva traços da experiência dos Cieps.”
Além da colaboração entre setores e esferas de governo, o programa prevê a realização de parcerias com entidades públicas e privadas para o desenvolvimento das atividades no contraturno das escolas. É também essa separação das atividades – realizadas por pessoal com diferentes pertencimentos institucionais e formado em tradições profissionais diversas, fora do âmbito restrito da formação para a docência – que contribui para esboçar o paradigma projetado para a expansão da educação em tempo integral que se deseja adotar.
O PME recupera características próprias de experiências históricas de educação integral congêneres no país, entre as quais a da Escola Parque do Centro Educacional Carneiro de Campos, em Salvador, criada pelo educador Anísio Teixeira (1900-1971) nos anos de 1950, cujo formato era também o de uma escola de turnos com atividades diferenciadas. Igualmente, conserva traços da experiência dos Centros Integrados de Educação Pública (Cieps), concebidos pelo antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997) no Rio de Janeiro, nas décadas de 1980/1990. Assim, agrega novos significados à maneira de conceber a educação integral e a articulação das ações que ela deve compreender.
Os documentos de referência do PME dão ênfase ao papel central que deve ter a escola no projeto de educação integral, mas ressaltam a necessidade de articulação com outras políticas que contribuam para a diversidade de vivências formadoras e tornem a experiência inovadora e sustentável (BRASIL, 2009 a, 2009 b). Um dos diferenciais é que o foco das diversas ações intersetoriais passa a ser a população escolar – o que evoca a condicionalidade de frequência à escola adotada pelo Programa Bolsa Família. Na perspectiva dos esforços contra a erradicação da pobreza e dos processos de exclusão social, o pressuposto do programa no que se refere ao caráter compensatório que ele assume, é que a escola pública precisa incorporar responsabilidades não escolares, porque se algumas delas não estiverem asseguradas, o projeto educativo fica prejudicado e a viabilização comprometida.
Tal como concebido, seus formuladores admitem que o programa requer: a elaboração de um projeto pedagógico próprio, a formação dos diferentes agentes que nele atuam, infraestrutura adequada e meios para ser implantado (BRASIL, 2009a).
Princípios passíveis de orientar as ações do PME nas redes públicas e o desenvolvimento do currículo nos projetos pedagógicos de educação integral das escolas são divulgados com o propósito de incentivar o debate sobre a construção de um paradigma contemporâneo de educação em novos moldes (BRASIL, 2009b). Espera-se que o projeto de educação integral intensifique os processos de territorialização das várias políticas sociais a partir dos espaços escolares, com o propósito de aproximar-se mais das populações usuárias, e seja construído de modo participativo, por meio da gestão democrática e do diálogo entre os saberes escolares e das comunidades. Para tanto, conta-se com a colaboração entre os setores governamentais e as diferentes esferas de governo, com a articulação da sociedade civil.
A ideia é que não haja um modelo propriamente dito de educação integral. Advoga-se antes uma proposta aberta, passível de adquirir vários contornos, que estimule a iniciativa dos diferentes atores e instâncias envolvidos, possibilitando experiências capazes de constituir um novo legado, qualificado e sustentável, para a educação.
Na concepção de educação integral veiculada, a dimensão tempo é retomada em relação às possibilidades diversificadas de ampliação da jornada escolar e a dimensão espaço, em relação aos territórios educativos. Embora a escola seja o polo catalizador dos territórios educativos, eles compreendem também outros espaços físicos e equipamentos socioculturais da comunidade ou da cidade. Nesses termos, a organização da escola em turno e contraturno, fixada em alguns dos documentos instituintes do programa, é minimizada em favor de um projeto educativo de currículo integrado, que tem também a pretensão de superar a fragmentação das práticas assistencialistas das políticas públicas brasileiras (BRASIL,2009b).
O documento que subsidia a elaboração do projeto pedagógico das escolas, mencionando Torres (2003), acena também para a construção de “comunidades de aprendizagem”, em que a escola e demais instituições constroem um projeto educativo e cultural próprio mediante esforço endógeno, cooperativo e solidário. O projeto reúne diversas áreas, experiências e saberes, possibilitando o intercâmbio de influências recíprocas e a produção de um saber diferenciado. Não se trata, portanto, de simplesmente aprender os conteúdos escolares em outros espaços, mas de criar possibilidades para que os assuntos que interessam a crianças e jovens e preocupam a comunidade sejam objeto do trabalho sistemático da escola.
Após apontar campos dos saberes comunitários que podem ser considerados no currículo, são apresentados sete macrocampos que representam dimensões a ser desenvolvidas no PME e dialogam com as ações e programas intersetoriais do governo federal. São eles: acompanhamento pedagógico; meio ambiente; esporte e lazer; direitos humanos e cidadania; cultura e artes, inclusão digital e comunicação; e saúde, alimentação e prevenção. As unidades escolares podem optar pela atuação em três ou quatro macrocampos, sendo que o único que deve ser obrigatoriamente trabalhado por todas é o do “acompanhamento pedagógico”. Ele inclui o reforço e o aprofundamento das aprendizagens e está intimamente relacionado aos objetivos explícitos de melhoria do rendimento, de combate à evasão e repetência e de correção do fluxo de matrículas com os quais o MEC está comprometido. Esse pode ser interpretado como um esforço de priorização da dimensão escolar propriamente dita em meio às disputas internas pelo domínio do escolar e não escolar no contexto de formulação da educação integral.
A construção do currículo (…) deve ir além dos saberes sistematizados nos diversos campos do conhecimento. Precisa incorporar, a exemplo do que propõem Freire (1996) e Boaventura Santos (2002), as práticas, habilidades, costumes e valores que estão na base da vida cotidiana.”
Não se espera, contudo, que as escolas de tempo integral repliquem o conteúdo das práticas escolares, mas ampliem tempos, espaços e conteúdos por meio da contribuição de outras áreas sociais e das organizações da sociedade civil. Admite-se que a concepção de educação integral não pode perder a sua especificidade em relação às políticas educacionais.
A construção do currículo que traduz a sua proposta educativa, feita sob a coordenação da escola, deve ir além dos saberes sistematizados nos diversos campos do conhecimento. Precisa incorporar, a exemplo do que propõem Freire (1996) e Boaventura Santos (2002), as práticas, habilidades, costumes e valores que estão na base da vida cotidiana. As dimensões locais estão impregnadas de significados globais que, articulados aos conhecimentos escolares, constituem o currículo necessário à vida contemporânea, de modo a ensejar a melhoria da qualidade das aprendizagens e da convivência social e dirimir as diferenças de acesso ao conhecimento e aos bens culturais (BRASIL, 2009 b).
Em 2010, o Decreto Presidencial 7.083 (BRASIL, 2010a) reitera as finalidades e a abrangência do Programa Mais Educação, determinando que a oferta de educação básica em tempo integral deverá ter jornada igual ou superior a sete horas diárias. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental de nove anos, divulgadas nesse mesmo ano (BRASIL, 2010b), ao contemplarem a educação em tempo integral nos artigos 36 e 37, dão um passo decisivo para a transformação do PME, que é um programa de governo, em política que transcende os propósitos de uma gestão específica. Elas reforçam os princípios e as características da escola de educação integral veiculados pelos documentos congêneres, e explicitam a necessidade de avaliação das suas ações (art. 37, § 4º).
É esse o paradigma que será posteriormente consolidado como política de Estado no Plano Nacional de Educação 2014-2024 (BRASIL, 2014), cuja meta 6 preconiza a oferta de educação em tempo integral em, no mínimo, 50% das escolas públicas, de forma a atender, pelo menos, 25% dos alunos da educação básica. Alarga-se também a possibilidade de aumento de parcerias com organizações sociais de natureza diversa.
Por solicitação da Secad/MEC, universidades federais realizaram um mapeamento das experiências de ampliação da jornada escolar no ensino fundamental, fornecendo informações sobre a sua abrangência e identificando as práticas utilizadas e as concepções em que se apoiavam. Em dois estudos, um quantitativo e outro qualitativo, apurou-se que as iniciativas se distribuíam de modo muito diferenciado pelo país e a jornada ampliada compreendia múltiplas formas de atendimento. Elas variavam de turmas com funcionamento em tempo integral a combinações da oferta de atividades complementares em tempos diversos, sendo que mais de uma modalidade podia coexistir em um mesmo estabelecimento. Constatou-se que a maioria das atividades era desenvolvida no contraturno das escolas e no próprio ambiente escolar, sobretudo nas salas de aula (BRASIL, 2009/ 2011).
Pelos Censos da Educação Básica, é possível obter uma ideia mais precisa sobre o crescimento desse tipo de oferta no país. Há dados sobre o número de estabelecimentos e de matrículas dos ensinos Fundamental e Médio que possuem alunos em tempo integral ou com jornada ampliada, considerando aqueles que estão em turmas presenciais com sete ou mais horas de duração, e aqueles com carga horária menor, que somada ao tempo de atividades complementares, atinge sete horas ou mais (BRASIL, 2017).
Em 2011, a educação em tempo integral era oferecida nos anos iniciais do ensino fundamental por 16,6% das escolas públicas e contemplava 7,7% das suas matrículas; e nos anos finais por 23,3% das escolas, atendendo 4,9% dos alunos. No ensino médio público, eram 13,8% dos estabelecimentos e 2,8% de matrículas com esse atendimento. Já em 2014, o censo registrava um aumento considerável da oferta de estabelecimentos e matrículas em tempo integral no setor público. Subiam para 34,4% as escolas com anos iniciais do ensino fundamental nessa categoria e para 20,5% os alunos nela matriculados. Nos anos finais eram 45,4% das escolas e 15,5% das matrículas. E no ensino médio, 17,5% estabelecimentos e 5,7% alunos matriculados em tempo integral.
As mudanças políticas na condução do país e a recessão econômica que vêm afetando o rumo e as prioridades das políticas públicas também se fazem notar nas estratégias de expansão da ETI.”
No entanto, as mudanças políticas na condução do país e a recessão econômica que vêm afetando o rumo e as prioridades das políticas públicas também se fazem notar nas estratégias de expansão da ETI. Os dados do Censo da Educação Básica de 2016 indicam um recuo significativo da oferta desse tipo de atendimento, sugerindo a fragilidade de sustentação de programas ou ações dessa natureza pelos diferentes entes federados.
A proporção de escolas públicas com anos iniciais com oferta ETI baixa da casa dos 35% para 21,3% e a de alunos matriculados também é reduzida para 11,8%. Nos anos finais do ensino fundamental, a proporção de escolas decresce para 26,7% e a de matrículas mal alcança os 9% de alunos. Apenas no ensino médio a oferta de estabelecimentos e de matrículas não segue claramente a mesma tendência; embora se observe um ligeiro decréscimo na proporção de escolas com ETI (de 17.5% em 2014 para 16,5% em 2016), constata-se um pequeno aumento na proporção de matrículas nessa modalidade, que salta de 5,7% em 2014 para 6,7% em 2016.
Vários estudiosos têm se ocupado do tema e, em especial, algumas pesquisadoras do estado do Rio de Janeiro como Lucia Velloso Maurício, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj/FFP), Ana Maria Cavalieri, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e Ligia Martha Coelho, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Balanços periódicos das publicações acadêmicas sobre a educação de tempo integral veem sendo feitos e já é possível traçar um panorama da implantação das escolas com jornada ampliada no Brasil nos anos recentes. Embora sejam diversas as experiências e distintos os contextos em que se desenvolvem, as pesquisas têm nos brindado com a análise das características que as singularizam ou que nelas são recorrentes, bem como refletido sobre seus significados e modos de funcionar e suas implicações no âmbito das políticas que lhes dão sustentação.
Alguns estudos têm estendido a reflexão sobre iniciativas congêneres em outros países, alargando as referências teóricas e empíricas mediante as quais a apreciação da experiência brasileira pode ficar mais rica (CASTANHO, MANCINI, 2016; CAVALIERE, 2002, 2006, 2014; COELHO, 2009, 2012; GALIAN, SAMPAIO, 2012; MAURÍCIO, 2014; SAMPAIO, GALIAN; 2015; MOLL, 2012; RIBETTO, MAURÍCIO, 2009; BARRETTO, SÁ, 2016, entre outros).
O CENPEC e a Fundação Itaú Social também são entidades empenhadas na divulgação e discussão dessas experiências, e têm como parceiro privilegiado o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Suas publicações expressam preocupações que vão além daquelas das universidades ou de órgãos de governo incumbidos de por em prática as políticas de educação em tempo integral, sendo também objeto de interesse de organizações supranacionais, organizações não governamentais e outras instituições, como assinalam Castanho e Mancini (2016).
Como resultado de pesquisas, seminários e encontros, os textos exploram diferentes dimensões das experiências contemporâneas de ETI, destacando iniciativas com potencial inovador e trazem depoimentos de atores envolvidos e de gestores escolares comprometidos com a sua construção. Recorrem à contribuição de pesquisadores que discutem pressupostos, possibilidades e limites do modelo (CENPEC, 2006, 2011, 2013; PORTO ALEGRE, Itaú Social, CENPEC, 2016).
Ainda que o PME tenha sido formulado originalmente como um programa intersetorial, os estudos sobre ele provêm basicamente do campo da educação. As reflexões suscitadas giram em torno das problemáticas que emergem desse campo – a saber, a aspiração à melhoria da qualidade da educação, o enfrentamento do baixo rendimento escolar e a garantia de acesso aos bens culturais para todos os alunos. Ainda que a tônica do programa seja assistencialista, nada foi encontrado com foco específico nas medidas de proteção social que eventualmente interatuam com as escolas, ou das ações voltadas para a saúde dos educandos atendidos.
O número de estudos e experiências analisadas é pequeno em relação à proporção de escolas que desenvolveram projetos de educação integral nas duas últimas décadas. As experiências são bastante heterogêneas e há propostas mais exitosas que outras. Não obstante, o fato de serem muitas as iniciativas pode contribuir para que os erros e acertos das experiências e os recortes novos que têm emergido delas venham a alimentar políticas mais encorpadas de educação integral.
Os estudos convergem quanto à constatação de que o contexto de realização da política de educação integral está muito distante do contexto de formulação no que concerne às suas finalidades.”
Os estudos convergem quanto à constatação de que o contexto de realização da política de educação integral está muito distante do contexto de formulação no que concerne às suas finalidades (BARRETTO, SÁ, 2016). O contorno desenhado pela esfera federal para a expansão da ETI nas duas últimas décadas tem demonstrado forte poder indutor. Ainda que possam ser encontradas experiências mantidas pelos governos municipais ou estaduais que fogem ao seu modus operandi, a maioria das iniciativas das redes públicas adere às institucionalidades postas pelo PME. Essa convergência tem assegurado às gestões encarregadas de implantar a política de ETI certa zona de conforto em relação às mudanças esperadas, mesmo quando ela pode gerar tensões de natureza diversa.
A adesão aos programas do Plano de Ações Articuladas do governo federal criou, durante certo período, facilidades de implantação da ETI pelo aporte de recursos repassados às redes, correspondente às matrículas de alunos que cumprem a jornada escolar de sete horas diárias ou mais. Recentemente esses repasses tenderam a se restringir, o que reflete na diminuição das escolas e das matrículas com educação em tempo integral, também agravada pelo acréscimo das dificuldades fiscais dos estados e municípios.
Os estudos empíricos, tais como os analisados por Katia Sá, têm demonstrado que a política de educação integral vem sendo posta em prática de modo precipitado e com recursos insuficientes. Não é raro encontrar escolas pressionadas a implantar a ETI sem diálogo nem orientação e em um ambiente de incertezas e desconfianças.
Do ponto de vista das demandas externas da população usuária, o paradigma favorece a conciliação com interesses políticos locais, no que se refere à guarda e aos cuidados das crianças e adolescentes e à proteção social conjugada à escola de atendimento integral. Isso tem tensionado as escolas diante de constrangimentos de caráter eleitoreiro. Porém as apreensões são geradas também pelas dificuldades de implantação ou mesmo de aceitação do programa até no interior da própria escola, seja em face da resistência de professores e funcionários, seja pela falta de interesse de alunos mais velhos pelo tempo integral. Acrescentem-se ainda as incertezas sobre a falta de continuidade das ações diante das alternâncias de governo, ou porque elas não se mostram sustentáveis no longo prazo (BARRETTO, SÁ 2016).
O atendimento concomitante de alunos em jornada ampliada sem que o horário dos turnos regulares seja alterado leva a escola a recorrer a espaços improvisados nas próprias dependências e a restringir as suas opções por falta de materiais.”
As deficiências de infraestrutura, bastante usuais no conjunto das escolas públicas, tendem a se agravar nas escolas com ETI à medida que seus serviços se tornam mais complexos. O atendimento concomitante de alunos em jornada ampliada sem que o horário dos turnos regulares seja alterado leva a escola a recorrer, com frequência, a espaços improvisados nas próprias dependências e a restringir as suas opções por falta de materiais para assistir aos estudantes-alvo dessas ações.
Tal como concebida, a oferta de ETI contribui para postergar a necessidade de repensar o currículo de tempo integral em uma perspectiva integrada, que requer maior envolvimento e compromisso dos atores educacionais. Ela favorece uma visão conservadora do currículo e dualista da escola, sobre a qual as publicações insistentemente têm chamado a atenção. É a escola que centra um turno no esforço e na disciplina demandados para aprender os conteúdos escolares e na transmissão do conhecimento, e que incide, no contraturno, sobre o lazer e a fruição promovidos pelas atividades complementares, sem que haja integração entre os dois turnos e sem discutir a que se quer chegar com o processo de escolarização nesse formato.
São poucas as instituições que conseguem formular coletivamente e a desenvolver um projeto pedagógico consistente. Quando isso ocorre, as próprias escolas é que desempenham um papel central na condução do processo. Em regra, não são encontradas concepções claras sobre o currículo da ETI, embora seja preciso reconhecer que a reflexão minimamente aprofundada dos sentidos do currículo também costuma estar ausente no conjunto das redes de ensino. A revisão dos estudos sobre avaliação institucional das escolas em diferentes regiões e localidades evidencia a dificuldade que as equipes docentes possuem de se pronunciar sobre aspectos do currículo e das práticas pedagógicas que adotam na elaboração do projeto pedagógico e no seu desenvolvimento. Isso nos autoriza a afirmar que a dimensão político-pedagógica ainda constitui a “caixa preta” das escolas (BARRETTO, NOVAES, 2016).
Nas instituições que oferecem ETI, a questão se agrava porque o modo como elas são concebidas e organizadas implica pensar o aprofundamento da formação dos professores, a integração de novos atores na equipe de trabalho e mudanças estruturais no seu funcionamento (CASTANHO, MANCINI, 2016).
É frequente que tais escolas não consigam transformar as suas atividades regulares. E, uma vez que a atuação dos docentes compete com atividades orientadas por outras lógicas, elas podem ser fragilizadas no que há de mais central no trabalho que se espera que desenvolvam: o de garantir aos educandos a aquisição de abordagens que, tomando a realidade como objeto de análise, permitem alcançar níveis de conhecimento com mais amplos poderes explicativos. Não obstante, como advertem Gallian e Sampaio (2012), essa é a sua função específica e é ela que tem pautado, historicamente, a luta hegemônica pela democratização da educação básica.
Do ponto de vista dos resultados da escola de educação integral, as referências positivas apontadas em várias experiências incidem, preferentemente, sobre a esfera das atitudes. São, portanto, difíceis de aquilatar pela régua das avaliações de sistema, cujo caráter restrito tem sido sobejamente apontado.”
Do ponto de vista dos resultados da escola de educação integral, as referências positivas apontadas em várias experiências incidem, preferentemente, sobre a esfera das atitudes. São, portanto, difíceis de aquilatar pela régua das avaliações de sistema, cujo caráter restrito tem sido sobejamente apontado. Elas dizem respeito à melhoria das relações entre os sujeitos e da relação que eles mantêm com a escola; à motivação para aprender que, por vezes, estende-se também às atividades regulares de ensino; à expressão do protagonismo estudantil e à participação cidadã dos alunos. Referem-se ainda à transferência de práticas mais lúdicas para as atividades do currículo ordinário, ao aumento da frequência à escola e à diminuição da evasão escolar.
O horário prolongado da jornada escolar, que tenta corresponder aproximadamente à de trabalho dos pais, sugere que as necessidades da vida adulta têm grande peso no processo de definição do tempo de escola das crianças e constituem o maior motivo de adesão à ETI.”
Não obstante, os indícios de que as experiências de educação integral não têm atingido os padrões de qualidade esperados no que toca aos indicadores de rendimento escolar têm dado ocasião a questionamentos sobre a relação entre a função social da escola e o caráter compensatório de proteção social do modelo. Esse parece mais empenhado em tirar as crianças e os adolescentes das ruas e protegê-los de ambientes degradados do que em proporcionar uma formação integral dos educandos. O horário prolongado da jornada escolar, que tenta corresponder aproximadamente à de trabalho dos pais, sugere que as necessidades da vida adulta têm grande peso no processo de definição do tempo de escola das crianças e constituem o maior motivo de adesão à ETI.
Entre os autores que expressam sérias reservas à feição assistencialista das propostas de educação, Libâneo (2012) é o que faz uma das críticas mais contundentes às políticas compensatórias. Diferentemente da “escola do conhecimento para os ricos”, ao reportar-se à “escola do acolhimento para os pobres” ele afirma que o que tem sido oferecido a estes é “uma escola sem conteúdo e com um arremedo de acolhimento social e socialização, inclusive na escola de tempo integral” (p. 24). O novo padrão de qualidade anunciado terminaria por ocultar mecanismos internos de exclusão que antecipam a exclusão na vida social.
As críticas à escola em tempo integral, tal como vem sendo concebida e implantada de modo majoritário no país, não significam abdicar desse projeto. Já são muitas as contribuições existentes no sentido de tornar realidade uma escola efetivamente empenhada na formação dos educandos em sua dimensão plena.
Antes de nos determos nessas contribuições, propomos o exercício de retomar a determinação da LDB de 1996, de aumento progressivo da jornada diária do ensino fundamental, deixando de lado as condicionalidades que, ao longo do tempo, foram restringindo em demasia o seu propósito, a despeito de terem estendido o atendimento em tempo integral ao ensino médio.
O tempo integral foi posto como perspectiva institucional para as políticas públicas na virada do século também porque, com a estabilização do ritmo de crescimento demográfico e o seu posterior declínio, o perfil etário da população transformou-se drasticamente no Brasil em meio século e as demandas da população pelos serviços públicos mudaram de natureza. Os argumentos em favor do investimento na melhoria da qualidade da formação de crianças e jovens que veem por esse veio têm conotações de teor econômico.
Senão vejamos. Na publicação Brasil em números, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2016 b), há uma síntese de informações bastante conhecidas sobre o envelhecimento da população e são reiteradas considerações sobre suas decorrências nas políticas públicas. Entre 1940 e 1960, a população brasileira crescia a uma taxa de 3% ao ano. Nas décadas posteriores, o crescimento se manteve positivo mas apresentou declínio sucessivo. Entre os censos demográficos de 2000 e 2010, a taxa de crescimento anual foi de 1,17% e, desde então, o país deixou de crescer. As taxas negativas de crescimento da população, inferiores ao nível de reposição da população desde 2011 (0,97%), estão estimadas em 0,77% para 2017 e em 0,67% para 2020 (IBGE, 2016a).
Esse fenômeno se deve, fundamentalmente, à redução da mortalidade e, sobretudo, da fecundidade, e varia em intensidade nas regiões e nos estados, sendo que as diferenças nas taxas crescimento são também influenciadas de modo significativo pelas migrações internas. Todos esses fatores tiveram forte impacto na estrutura etária da população. Reduziu-se a participação relativa das crianças e aumentou a proporção das demais idades na pirâmide etária. Quando a proporção de crianças e jovens na população era alta, as demandas sociais de maior vulto se concentravam nas áreas da educação e saúde. Atualmente, os grupos majoritários são os de jovens e adultos e as demandas estão relacionadas à habitação, capacitação para o mercado e trabalho e oferta de emprego. Estima-se que no ano 2050 cerca de 30% da população brasileira terá mais de 60 anos e as demandas por serviços se concentrarão nas áreas da saúde e previdência.
A maior proporção de pessoas em idade economicamente ativa em relação às crianças e aos idosos produz o que os demógrafos denominam um “bônus demográfico”, que tem curta duração e se extinguirá quando a população entre 15 e 64 anos de idade começar a reduzir, o que está previsto para 2020. Esse bônus pode favorecer a elevação da produtividade e das riquezas da nação se as políticas públicas forem bem direcionadas. Segundo argumento da própria publicação oficial, esse seria o momento de investir na qualidade da educação das gerações futuras e garantir um capital humano qualificado, capaz de contribuir para a produtividade do país, o que não tem acontecido a contento (IBGE, 2016b).
O diagnóstico que faltou ao PNE 2014/2024, e que deveria conter a projeção das demandas de escolaridade de cada etapa da educação, certamente teria oferecido subsídios para a adoção de uma política menos restritiva do que a que prevaleceu no Brasil no que se refere à educação em tempo integral, em razão das motivações sociais, políticas, econômicas ou educacionais propriamente ditas que existem para disseminá-la.
No início dos anos 2000 ainda eram necessários esforços para suprimir o terceiro turno diário de muitas escolas de ensino fundamental, tal como sinalizado no PNE 2001/2011, embora os estabelecimentos de ensino de todas as regiões do país, sem exceção, já oferecessem, em média, mais de quatro horas diárias de aula nos ensinos Fundamental e Médio. Passados 15 anos, mesmo com a extensão da obrigatoriedade escolar de 4 aos 17 anos de idade, a média de horas diárias de aula no país continua a aumentar, embora apresente um crescimento relativamente pequeno, particularmente nos anos iniciais do ensino fundamental. De 4,3 horas nessa faixa de escolaridade em 2001, passa a 4,5 horas em 2016; de 4,4 horas nos anos finais sobe para 4,7 horas; e somente no ensino médio dá um salto mais significativo, que vai de 4,3 para 4,9 horas. (TODOS PELA EDUCAÇÃ0, 2017/Censo da Educação Básica, 2016).
Esse aumento gradativo deve ter sido, em grande parte, possibilitado pela diminuição do número de matrículas em razão da queda de crescimento da população; pelas políticas de correção do fluxo escolar, que têm reduzido o atraso na escolaridade e a proporção de repetências; e por uma intencionalidade política que tem priorizado o ensino médio.
Não há como ignorar a pluralidade de demandas educacionais e as dificuldades com que devem lidar os gestores da educação para contemplá-las, como a procura não atendida por creches a cargo dos municípios. As vicissitudes que emperram a colaboração entre as redes públicas quanto à utilização de prédios escolares com capacidade ociosa, particularmente quando as gestões são de partidos políticos que competem entre si, são algumas delas. E, também, as graves restrições orçamentárias que enfrenta o setor público nas diferentes instâncias para fazer frente a essas e outras requisições.
Por que não começar a amadurecer uma proposta de escola de tempo integral na perspectiva de uma política universal e não apenas focalizada em grupos específicos, como já veem sinalizando estudiosos do tema?”
Independentemente das amarras legais, por que não começar a amadurecer uma proposta de escola de tempo integral na perspectiva de uma política universal e não apenas focalizada em grupos específicos, como já veem sinalizando estudiosos do tema? Um grande número de escolas tem condições de estender os turnos diurnos para cinco horas ou mais, o que já acontece em algumas redes, particularmente na Região Sudeste. O divisor de águas da escola em tempo integral não precisa, portanto, ser necessariamente a exigência da permanência dos alunos por no mínimo sete horas sob a tutela da escola. Assim sendo, uma proporção muito maior de estudantes, inclusive aqueles dos segmentos majoritários da população, tem condições de ser beneficiada.
O desenho da jornada contínua aumenta a probabilidade de os professores serem alocados em apenas uma escola, condição muito importante para a melhoria da qualidade do trabalho escolar. ”
A expansão da jornada diária dos alunos que tem como horizonte a sua universalização, mesmo reconhecendo a necessidade de manter dois turnos diurnos nas escolas, requer um caminho mais complexo e difícil de ser percorrido, ainda que a sua implantação seja progressiva. O desenho da jornada contínua aumenta a probabilidade de os professores serem alocados em apenas uma escola, condição muito importante para a melhoria da qualidade do trabalho escolar. No entanto, envolve a negociação, por vezes difícil, com os docentes e suas entidades de classe, uma vez que a jornada completa para os professores nem sempre permite conciliar com outros interesses, particularmente no caso das mulheres, que constituem a maioria dos profissionais.
Precisam ser revistas também as formas de financiamento da ETI. O montante requerido para a passagem, mesmo que gradativa, das políticas de foco para as de caráter universal, é consideravelmente maior. Há ainda a considerar as dificuldades de adoção de jornadas mais extensas em escolas de uma mesma rede em localidades densamente habitadas e com maior demanda escolar. São os segmentos mais empobrecidos da população, residentes nessas áreas, os que proporcionalmente têm menos se beneficiado da extensão da jornada escolar diária, mesmo tendo em conta as políticas de ETI em curso. Essas escolas teriam de ser contempladas com outras formas de atendimento.
O currículo de uma escola de educação integral é, fundamentalmente, o mesmo das escolas regulares. Como currículo em ação, pode ser equacionado em quatro, seis ou sete horas ou mais. O que muda é que ele será mais ou menos desenvolvido, mas nada impede que seja pleno, mesmo quando as jornadas escolares giram em torno das habituais quatro horas e meia de aula.
É necessário desmistificar o sentido do “novo” que vem alimentado pelas antinomias: conhecimento disciplinar x conhecimento da experiência; formal x não formal; escolar x popular, como se o segundo elemento de cada par fosse o responsável pelo caráter inovador. O grande desafio da escola, seja ela de tempo parcial ou integral, é ter um currículo vivo. Esse é um trabalho que é, fundamentalmente, da instituição e de seus profissionais, juntamente com os alunos e a comunidade. As entidades parceiras podem contribuir, mas cabe à escola o papel principal nessa transformação. Por isso, ela necessita de incentivos e apoio dos órgãos gestores dos sistemas educativos nessa tarefa. Sem eles, tende a prevalecer o “mais do mesmo”.
O grande desafio da escola, seja ela de tempo parcial ou integral, é ter um currículo vivo. Esse é um trabalho que é, fundamentalmente, da instituição e de seus profissionais, juntamente com os alunos e a comunidade. ”
A seleção de elementos da cultura que compõem o currículo dos ensinos Fundamental e Médio abarca áreas provenientes de um amplo espectro de conhecimentos e saberes, cujo potencial é o de proporcionar às novas gerações um desenvolvimento pleno. Eles se referem às múltiplas linguagens que se traduzem nas formas de expressão e comunicação por meio da língua portuguesa, de línguas estrangeiras, pelas diferentes manifestações da arte e pela educação física. Dizem respeito a conteúdos que proveem da matemática, das ciências naturais e das ciências humanas, bem como do campo da saúde, do trabalho, do direito e das tecnologias. Ou seja, nada do que é proposto como atividade complementar no paradigma de ETI vigente escapa aos domínios mais amplos do currículo da escola básica, ainda que os novos enfoques e eventuais aprofundamentos trazidos por outros agentes formadores tenham aportes distintos daqueles que a escola costuma oferecer aos processos educativos e colaborem para enriquecer a formação geral das crianças e dos jovens.
A escola que tem um currículo vivo não se limita à transmissão passiva de um saber acabado, produzido por outros, distante dos alunos e da instituição. Ela é capaz de contribuir para a recriação do conhecimento com a participação ativa de crianças, adolescentes e jovens na sua elaboração, incorporando as experiências de que são portadores. É assim que, por exemplo, pela aprendizagem das abordagens específicas da História e da Geografia, os estudantes adquirem condições de apreender novas dimensões das suas próprias tradições culturais, o que lhes possibilita estabelecer conexões com outras formas de conhecer o mundo e de nele atuar com responsabilidade e compromisso cidadãos.
A centralidade da escola no trabalho com o currículo é facilitada quando os professores concentram as suas atividades em um só estabelecimento e dispõem do tempo necessário não só para formular com a comunidade escolar o seu projeto educativo, mas para desenvolvê-lo preparando as aulas, empregando ora abordagens que aprofundem aspectos específicos das disciplinas escolares, ora integrando-as em enfoques inter/transdisciplinares com a colaboração dos colegas. A maior duração do período de aulas oferece melhores condições de organizar os tempos e os espaços de aprender, de modo que se alternem, ao longo do período escolar, as atividades que requerem maior concentração e esforço intelectual e aquelas que demandam habilidades de outra natureza, sem que haja necessidade de cindi-las em dois turnos específicos.
A despeito da contribuição de entidades da sociedade civil, o caráter dessas parcerias –tornado praticamente indispensável nas escolas que delas dependem pela falta de espaço para configurar a jornada de sete horas de ETI – pode ser revisto nos ambientes em que os alunos são atendidos em um turno contínuo. Algumas dessas contribuições são valiosas, mas outras são passíveis de questionamento.
Evidentemente, prevalecem as recomendações do MEC no que se refere à necessidade de estreitar a colaboração entre a escola e as entidades locais, seus profissionais e produtores de cultura e demais agentes sociais. Essa alternativa favorece um diálogo mais profícuo e a troca de influências entre saberes de natureza diversa. Permite levar em conta as formas de expressão das culturas juvenis e da infância, as reivindicações das populações usuárias da escola por uma distribuição mais equitativa de bens e serviços e as lutas identitárias. Assim, abre-se caminho para que questões que afetam a vida dos estudantes e da comunidade façam parte do trabalho regular do currículo na escola.
Porém é preciso ter em conta, como adverte Lucia Velloso Maurício (2014), que não temos uma tradição forte de associativismo como a encontrada em outros países. ONGs com atividades que se afinam com os objetivos de formação da Educação Básica e que têm sido parceiras dos projetos de ETI costumam depender substancialmente de subsídios do próprio poder público para fazer seu trabalho. Além do que, alcançam um número muito pequeno de escolas que acolhem as populações majoritárias da população.
A colaboração com cursos superiores – e, em especial, com os cursos de formação em iniciativas como o Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), do governo federal – tem se mostrado propícia à realização de intercâmbios enriquecedores de saberes com as escolas de ETI. Entretanto, as instituições superiores concentram-se, em regra, nos centros urbanos mais adensados do ponto de vista populacional. Não estão presentes na maioria dos municípios.
A adoção da perspectiva das Cidades Educadoras pactuada com alguns municípios tem possibilitado, em certas redes escolares, a ampliação dos espaços e das oportunidades educativas em projetos bem articulados de ETI.”
Também tem havido um esforço de integrar as proposições da Carta das Cidades Educadoras, firmada em Barcelona em 1990, à oferta de educação em tempo integral no Brasil. Os recursos e os equipamentos socioculturais da cidade passam a ser concebidos como parte do ambiente de aprendizagem que deve contribuir para melhorar a qualidade de vida de todos os seus habitantes e, consequentemente, dos alunos da educação básica.
A adoção da perspectiva das Cidades Educadoras pactuada com alguns municípios tem possibilitado, em certas redes escolares, a ampliação dos espaços e das oportunidades educativas em projetos bem articulados de ETI. Importa no caso, como admitem Sampaio e Gallian (2015), garantir a confluência das finalidades básicas das entidades envolvidas, uma vez que não cabe submeter a sua atuação à lógica da escola. Porém, diante da pobreza de equipamentos socioculturais na maior parte dos municípios brasileiros, o mais sensato é pensar na utilização de outros espaços da cidade ou do território como uma possibilidade e não como um imperativo.
Hoje, pensar no currículo da educação integral para formulá-lo e transformá-lo em prática significa estabelecer uma forte interlocução com a Base Nacional Curricular Comum (BNCC), que está em vias de ser aprovada pelo Conselho Nacional de Educação. Como cabe aos sistemas educacionais e às unidades escolares elaborarem seus próprios currículos a partir da BNCC, vale a pena ter em mente as funções sociais da escola que informam as finalidades primeiras da educação, das quais decorrem os direitos de aprender dos alunos e, consequentemente, os objetivos de aprendizagem do currículo. São elas as funções de socialização, de qualificação e de subjetivação.
Ao refletir sobre os significados dessas funções, Biesta (2012) refere-se à função de socialização como a que se traduz nas formas pelas quais nos tornamos parte das diferentes esferas da vida em sociedade – como as sociais, políticas, culturais e econômicas, por exemplo. Tem a ver com as maneiras pelas quais os indivíduos são inseridos nos diferentes processos que asseguram a continuidade da tradição e da cultura e que permitem também questioná-las e transformá-las.
A função de qualificação está relacionada com o mundo do trabalho, mas não exclusivamente com ele, uma vez que proporciona também conhecimentos, habilidades e competências para o exercício da cidadania e o desenvolvimento cultural mais amplo. Ela permite aos indivíduos “fazer” alguma coisa, atuar de certas maneiras.
Se a função técnico-instrumental de qualificação é a que merece maior atenção da BNCC, convém, no entanto, que as escolas e os sistemas de ensino não percam de vista as demais funções sociais da escola, imprescindíveis para a formação humana no seu sentido integral.”
Finalmente, a função de subjetivação desenvolve processos de individuação, mediante os quais o indivíduo constrói a sua identidade no convívio escolar. Esse processo abarca formas de ser em que o indivíduo não é considerado apenas um espécime em relação a uma ordem mais abrangente. Antes, aspira à formação de sujeitos que mantenham autonomia e independência em seus pensamentos e ações em relação a essa ordem, sejam mais plurais em relação às formas de pertencimento social, étnico-cultural, de gênero; respeitosos e respeitados na sua dignidade humana. Se a função técnico-instrumental de qualificação é a que merece maior atenção da BNCC, convém, no entanto, que as escolas e os sistemas de ensino não percam de vista as demais funções sociais da escola, imprescindíveis para a formação humana no seu sentido integral.
Outro aspecto da BNCC que precisa ser ponderado é o da progressão dos conteúdos curriculares demarcada ano a ano. Embora a base curricular esteja de acordo com as prescrições do PNE 2014-2024, o ritmo imprimido às aprendizagens em intervalos relativamente curtos de tempo deixa de levar em conta as informações fornecidas pelas próprias avaliações de sistema sobre o rendimento dos alunos. Essas indicam a necessidade de assegurar intervalos mais largos a fim de que certas aprendizagens se consolidem entre o conjunto da população escolar, uma vez que, como se sabe, o processo de aprendizagem não é linear. Ele ocorre por meio de estilos muito variados e em ritmos muito diferentes e está profundamente imbricado com as experiências sociais e culturais dos educandos.
A determinação externa do ritmo de aprendizagem dos alunos, interpretada como uma imposição e não como referência, pode agravar os processos de repetência ou incentivar modos velados de exclusão do conhecimento gerados pelas formas de organização da escola e de gestão do currículo. Diante desse quadro, cumpre às redes e às escolas evitar a fragmentação dos processos de ensino, assegurando a continuidade do acompanhamento da trajetória escolar dos alunos durante todo o processo escolar. Cabe assistir aos alunos de acordo com as suas necessidades específicas em diferentes tempos e espaços, seja no seu grupo-classe, seja em grupos de interesse ou de acompanhamento específico, no decorrer do ano letivo ou ao longo de períodos mais extensos de ensino-aprendizagem, cujos limites não venham a ser pautados exclusivamente pela periodicidade das avaliações externas.
Nessas circunstâncias, a escola de formação integral com jornada estendida tem um leque maior de possibilidades de atendimento com vistas a assegurar a todos os estudantes o direito às aprendizagens fundamentais.
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Pedagoga, mestre e doutora em Sociologia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas pela Universidade de São Paulo (USP). Professora da Faculdade de Educação da mesma instituição.
Foi pesquisadora sênior e editora de Cadernos de Pesquisa e Superintende de Educação e Pesquisa da Fundação Carlos Chagas (FCC). Tem experiência na área de educação, com foco em: políticas públicas, ensino fundamental, currículo e formação docente.
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