Articulação com o território e intersetorialidade na educação integral
Confira como foram as mesas sobre currículo e a conferência de Bernardo Toro no 5º Seminário Internacional de Educação Integral
A educação integral pressupõe que o currículo coloque o pleno desenvolvimento do estudante como foco. Isso exige práticas de gestão e pedagógicas contextualizadas e inovadoras, que permitam que crianças, adolescentes e jovens sejam sujeitos ativos no seu processo de aprendizagem.
Nesse contexto, o objetivo da terceira mesa de debates do 5º Seminário Internacional de Educação Integral (SIEI), realizada na última terça-feira (24) com o tema “Currículo na educação integral“, foi debater experiências concretas de escolas brasileiras que adotam a educação integral nas diferentes etapas da educação básica.
Profanar os espaços educativos
Mediada por Pilar Lacerda, diretora da Fundação SM Brasil , a mesa teve a participação de Cássia Dias, da EMEF José Inocêncio Monteiro (São Paulo, SP); Karla Fornari de Souza, da escola Serta (Glória do Goitá, PE); Keit Cristina Anteguera Lira, do CEFAI (São Paulo, SP); Roger Vital de França Andrade, da rede de ensino do município da Serra (ES); e Valcenir Karai, professor da escola guarani Guirá Pepo, da terra indígena Tenodé Porã, extremo sul de São Paulo (SP).
Roger Vital França abriu a mesa com seu relato sobre a EMEF Prof.ª Eulália Falquetto Gusmann, que vivencia sua primeira experiência de educação integral e jornada ampliada, com aproximadamente mil alunos e carga horária de nove horas.
A ação da escola pautou-se principalmente na formação de professores e na integração com o território em que vivem os estudantes. Uma das primeiras atividades, por exemplo, foi propiciar passeios das crianças para explorar o território e fazer com que se reconhecessem como parte da comunidade.
Numa jornada de nove horas, existe todo um questionamento sobre como fazer da escola atrativa, tomando cuidado para que a aprendizagem em sala de aula também seja significativa.
Tivemos a possibilidade de entender que é no movimento com o corpo, com a música, com a dança, enfim, com o ainda não vivido que as crianças têm vontade de retornar à escola no outro dia.”
Roger Vital França
Em Serra (ES), essa ocupação educativa de diferentes espaços do território recebeu o nome de “profanação”. “Profanar a didática é fazer uma movimentação em que os sujeitos se apropriam de objetos e situações e os ‘profanam’, fazendo com que funcionem em sentidos diversos daqueles que oficialmente lhes são atribuídos, ou seja, territórios ‘profanados’ são os brincados e pensados”, explicou França.
A própria cozinha da escola, que funciona praticamente 24 horas, é um desses espaços: “Entendemos que o alimento não é apenas comida, mas um processo curricular, na medida em que há um diálogo entre a professora, a nutricionista, a produção da horta e o pessoal da merenda”.
Educação integral e
agroecológica
Karla Fornari de Souza apresentou a escola Serta (Serviço de Tecnologia Alternativa), iniciativa que começou como organização da sociedade civil e se tornou unidades escolares, em uma das quais a própria educadora faz curso técnico em agroecologia.
O trabalho desenvolvido pelo Serta é voltado à promoção do desenvolvimento sustentável e ao fortalecimento da agricultura de milhares de famílias pernambucanas, em duas localidades: Glória do Goitá, na Zona da Mata; e Ibimirim, localizada em uma área de cana de açúcar que estava devastada.
Há mais de 20 anos, os gestores da escola e os alunos têm trabalhado com sistemas agroflorestais com árvores nativas, plantas que podem ser consumidas e frutos, o que compõe a formação técnica dos estudantes.
O currículo e as práticas pedagógicas incluem ainda rodas de conversa, estudo coletivo e a metodologia da alternância: ao longo de uma semana por mês, os alunos residem na escola e dividem as tarefas e os cuidados com o espaço.
No Serta, o curso técnico de nível médio em agroecologia profissionaliza estudantes para se tornarem empreendedores do e no campo, em atividades agrícolas, agropecuárias, ambientais, de agregação de valor, logística, comercialização da produção, gestão de negócios, desenvolvimento de tecnologias de baixo custo, além de conhecimento da legislação e políticas públicas para agricultura familiar. Assista ao vídeo, apresentado durante o SIEI.
Inclusão, integração e intersetorialidade
Valcenir Karai trouxe como
contribuição a experiência indígena da relação entre professores, alunos e lideranças
locais, pautada pelo respeito na escola e em toda a aldeia.
Exercemos a educação integral na escola desde o início, quando assumimos a responsabilidade de ensinar.”
Valcenir Karai
“Como vivemos numa comunidade, nosso comportamento é sempre observado (…), mas não existe uma rigidez: damos liberdade para que os estudantes expressem suas opiniões e façam experiências. Trabalhamos para que não tenham medo de errar”, contou Karai.
Na aldeia, o reforço à cultura local e ao território é evidenciado pela aprendizagem em guarani, além de práticas pedagógicas dentro e fora da sala de aula, junto à natureza, integradas ano a ano no currículo.
Cássia Dias, coordenadora pedagógica da EMEF José Inocêncio Monteiro, também relatou a integração à comunidade como essencial na experiência escolar: “Quando a equipe gestora da qual faço parte assumiu a escola, o objetivo foi mudar a mentalidade em relação a educação – e integrar a escola à comunidade”.
Os anos finais do Ensino Fundamental na José Inocêncio ainda não têm jornada ampliada, mas os professores, segundo Dias, trabalham de forma integrada com os primeiros anos e participam voluntariamente de atividades fora da sala de aula, como um projeto de jogo de xadrez que passou a integrar o currículo. Como resultado, quatro dos 10 maiores enxadristas reconhecidos no Brasil são da José Inocêncio.
Nós mudamos a matriz curricular e criamos novas disciplinas: os alunos de tempo expandido têm duas aulas de xadrez e duas de inglês, duas aulas de experiências artísticas culturais e práticas esportivas, tudo isso organizado ao longo do dia.
De forma lúdica e gostosa, organizamos as aulas, ressignificando os espaços dentro da escola e fora dela.”
Cássia Dias
Keit Cristina Lira, por sua vez, trouxe o contexto da educação especial com foco no trabalho realizado pelo Centro de Formação e Acompanhamento a Inclusão (Cefai), na Diretoria Regional de Educação de Itaquera, em São Paulo (SP), voltado ao Atendimento Educacional Especializado (AEE). “A função do AEE é identificar e derrubar barreiras de acesso ao currículo escolar”, explicou.
Professora e coordenadora do Cefai, Keit contou que o AEE, embora não descolado do currículo, tem atividades próprias, como ensino de braile, estratégias para o desenvolvimento da autonomia e independência e ensino da Comunicação Alternativa e Aumentativa (CAA).
Sobre o AEE na educação integral, a educadora comentou que, quando pensamos no estudante inserido nesse contexto, é preciso lembrar que ele não é fragmentado – e, por isso, é importante articular as redes de ensino com outras redes, como as da cultura, lazer e saúde, em uma proposta intersetorial, o que estimulou comentários da mediadora, Pilar Lacerda, para quem “o território está presente como prática efetiva nessas cinco experiências”.
É importante verificar como a questão da intersetorialidade é forte, pois não existe um trabalho de inclusão ou de educação integral sem que outros agentes e políticas públicas estejam envolvidas.
É preciso que haja uma perspectiva intersetorial, ou seja, um projeto de política pública que envolva todos os setores.
Se existe um descrédito ou uma reação não republicana, a educação não consegue estabelecer esses laços – e a educação integral somente funciona em rede. Para funcionar em rede, é preciso envolver os demais setores.”
Maria do Pilar Lacerda
Bernardo Toro: a educação
integral e a importância do cuidar
O primeiro dia do 5º SIEI foi encerrado com a conferência magna “O paradigma do cuidado”, com o filósofo e educador colombiano Bernardo Toro.
A partir de um alerta para a situação climática do planeta – que, para Toro, é atualmente a principal questão para a qual todos os países deveriam se voltar –, o educador apresentou uma explanação que aponta para a necessidade de se adotar em todo o mundo, mas especialmente na América Latina, o paradigma do cuidado em substituição ao da acumulação.
A crise climática, para Toro,
será determinante nas temáticas educacionais, políticas e econômicas da espécie
humana em um futuro próximo e até mesmo já no presente.
Se não transformarmos nossa forma de encarar a vida, não haverá futuro.”
Bernardo Toro
Para Toro, o aprender a cuidar é um paradigma importante porque “saber cuidar, conceito nascido no Brasil com Leonardo Boff, é questão de sobrevivência da espécie humana – e a educação tem importância muito grande nisso”.
Ainda segundo o filósofo, a busca por poder, sucesso e acumulação tem guiado a vida humana até o momento, incluindo a educação. Houve até avanços graças a essa busca, como na comunicação e na tecnologia. No entanto, “também ocorreu o aquecimento global”.
Cuidar do planeta passa, portanto, a ser agora a prioridade de todas as nações, em especial das que pertencem à América Latina, “continente verde do planeta, para onde todos os outros continentes olham como reserva, a fim de superar os desafios futuros”.
O paradigma do cuidado também pressupõe uma visão mais igualitária de direitos e o combate às desigualdades. “Aceitamos com muita facilidade que haja dois sistemas de ensino, um de qualidade para nossos filhos e outro para os filhos dos outros. Mudar isso é um grande desafio para a América Latina”, provocou o filósofo.
“São os bens públicos que tornam equitativa uma sociedade” , concluiu Bernardo Toro, para quem aprender a cuidar das instituições é passo fundamental para a conquista de uma educação de qualidade – e integral.
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