Entenda por que a Secretaria Estadual de Educação de São Paulo tem sido criticada por não aderir ao PNLD e como essa decisão afeta estudantes e docentes
Por Stephanie Kim Abe
Desde que passou a ser de conhecimento público que a Secretaria Estadual da Educação de São Paulo (Seduc-SP) decidiu não aderir ao Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) para o ensino fundamental II e médio, há duas semanas, especialistas e toda a comunidade escolar têm estado em alerta e criticado a decisão. A própria Secretaria não tem fornecido justificativas plausíveis e tem mudado de postura dadas as críticas recebidas.
O secretário Renato Feder já voltou atrás na decisão de fornecer apenas material 100% digital para as(os) estudantes do 6o ano do ensino fundamental ao 3o ano do ensino médio, dizendo que esse material, criado pela equipe técnica da Secretaria e alinhado ao currículo paulista, será também impresso. Mas manteve a decisão de abrir mão dos livros didáticos do PNLD para essas duas etapas de ensino, que tem cerca de 2,4 milhões de estudantes. Para os livros literários, a Secretaria manteve a adesão ao Programa.
Ontem, 16/8, o governo estadual de São Paulo recuou e pediu ao MEC o envio dos livros do PNLD. O recuo só foi anunciado à imprensa após a Justiça conceder uma liminar que suspendeu a decisão da Secretaria da Educação de não aderir ao PNLD.
Entre as justificativas para o abandono dos livros didáticos do Programa, estão o fato de que perderam a qualidade e estariam superficiais, uma suposta padronização do material utilizado em toda a rede e a não utilização do material didático atualmente pelas(os) estudantes. Questionada sobre os dados que indicariam essa não utilização, a Secretaria ainda não dispôs a íntegra dessa pesquisa.
Para Célia Cristina de Figueiredo Cassiano, doutora e mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e articulista da Revista Contemporartes, da Universidade Federal do ABC (UFABC), a não adesão ao PNLD é prejudicial em vários sentidos, e nenhuma das justificativas dadas pela Secretaria são suficientes para respaldar essa decisão.
O alcance e a importância do PNLD
Célia trabalhou por mais de 20 anos como professora e gestora na rede municipal de educação de São Paulo e escreveu o livro O mercado do livro didático no Brasil do século XXI (2014), pela Editora Unesp. Ela sabe a importância do PNLD, criado em 1985, para garantir o acesso a materiais de qualidade para todas e todas as(os) estudantes brasileiras(os):
O PNLD foi se consolidando e, em 1996, começou a atingir gradativamente todo o Brasil. O Programa garante que os livros didáticos cheguem na hora certa, com alcance e regularidade, nos lugares mais inimagináveis do país.”
A cada ano, é aberto o edital para uma etapa de ensino.
As editoras inscrevem suas obras no edital para aprovação, que devem seguir os critérios estabelecidos no edital público do PNLD, que tem como norte leis como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Diretrizes Curriculares Nacionais e a Base Nacional Curricular Comum.
As obras são então avaliadas por uma banca avaliadora composta por pesquisadoras(es) das principais universidades brasileiras e professoras(es) da educação básica.
Giselle Rocha, técnica de projetos no Cenpec, explica alguns dos critérios que aparecem nos editais do PNLD, que buscam garantir rigor técnico e olhar para a diversidade do território, entre outros pontos:
Nós, do Cenpec, já tivemos livros aprovados no PNLD, então sabemos que o edital contempla critérios de conteúdo, mas também os diferentes olhares que existem no território brasileiro. Assim, é preciso compor o seu material didático, em qualquer área do conhecimento, com diversos modos da cultura desse Brasil”, diz.
O PNLD prevê que cada escola realize o seu processo de escolha das obras aprovadas, de forma conjunta com todas(os) as(os) educadoras(es) da instituição. Os livros escolhidos são adquiridos pelo MEC, distribuídos às escolas via FNDE e usados pelas(os) estudantes por quatro anos.
De acordo com o FNDE, em 2023 foram investidos R$ 78 milhões para a aquisição de 5,5 milhões de livros distribuídos às(aos) estudantes e professoras(es) de todas as etapas do ensino básico das escolas estaduais de São Paulo.
A possibilidade de escolha pelas(os) professoras(es) e equipe pedagógica das escolas de quais materiais utilizar é uma das grandes conquistas do PNLD, tanto por garantir um processo democrático e a autonomia das(os) professoras(es) na sala de aula, como por permitir o respeito às diferenças territoriais.
Geralmente, as professoras de uma determinada disciplina, por exemplo, língua portuguesa, se reúnem e definem, a partir do guia dos livros do PNLD, quais materiais disponíveis para a sua área são mais adequados de se trabalhar naquela escola, com aqueles estudantes. Esse processo de escolha costuma ser colaborativo e democrático, o que é muito legal. O livro didático é o grande fio condutor para muitos professores, que montam o seu plano anual por meio deles. Então é importante que eles possam escolher esse material.”
Giselle Rocha, técnica de projetos no Cenpec
Ao padronizar o uso de apenas um único material em toda a rede paulista, a Secretaria desrespeita esses princípios:
Se pensarmos só na capital paulista, já conseguimos visualizar que a zona norte é diferente da zona sul; que a zona sul central é diferente da zona sul periférica. Agora imagina o estado todo, que tem 645 municípios. A diversidade é gritante, e impor o mesmo material a todos os professores é quebrar a autonomia do professor e a autonomia de trabalhar com o material didático mais adequado a cada comunidade”, explica.
Célia Cristina de Figueiredo Cassiano, doutora e mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP) e articulista da Revista Contemporartes da Universidade Federal do ABC (UFABC)
Outro ponto bastante criticado pelas especialistas é a tentativa de adaptação do material digital para um material físico pela mera impressão do mesmo.
Além do custo adicional que a Secretaria terá que dispender para realizar essa impressão, “um material on-line é feito para ser trabalhado on-line. Ele não tem a linearidade do livro impresso”, ressalta Célia.
“Os estudos comprovam que o uso excessivo das telas e o conhecimento só consumido pelas telas nos tornam mais dispersos. Retém-se menos informação, compromete-se o desenvolvimento da função leitora e a aprendizagem não é tão significativa. Além, claro, da falta de acesso às tecnologias necessárias para trabalhar com um material 100% digital, como vimos durante a pandemia“, explica Giselle.
Essa comum confusão entre os diferentes tipos de meio ajudam a propagar um uso da tecnologia na educação que acaba por não explorar as melhores práticas pedagógicas. Segundo Célia, para potencializar esse uso, é preciso trabalhar de forma híbrida:
“As novas tecnologias têm que entrar na sala de aula, mas o livro tem que permanecer, pelo menos nesse momento histórico. Hoje em dia, os próprios livros didáticos já indiciam para o trabalho com outros recursos, como projetos, para recursos digitais, para acervos culturais. O que não podemos fazer é substituir um pelo outro, como impor um material digital em detrimento do impresso”, alerta.
Célia Cristina de Figueiredo Cassiano
Para a pesquisadora, a maneira como a decisão foi tomada pela Secretaria, sem consultar educadoras(es) e gestoras(es), também acaba por precarizar o trabalho pedagógico que será realizado nas escolas, uma vez que o material disponibilizado não será aquele escolhido por quem vão de fato utilizá-lo.
“Um bom livro didático é aquele que o professor se sente mais confortável em trabalhar, cujo conteúdo contempla a sua disciplina e atenda as especificidades da sua docência, da sua comunidade, dos seus pares, dos seus projetos, do projeto político pedagógico da escola, do território”, diz Célia.
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