Continuum curricular: possibilidades para a flexibilização

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Continuum curricular: possibilidades para a flexibilização

Desafio das redes de ensino, a flexibilização curricular visa garantir o direito de aprendizagem de todos(as) os(as) estudantes, durante e depois da pandemia

Por Stephanie Kim Abe

Uma das muitas adaptações que as redes e as unidades de ensino têm enfrentado durante a pandemia é a que tange o currículo escolar. Em meio a condições precárias de acesso à internet e falta de planejamento em diversas redes, como atender as competências e os objetivos de aprendizagem previstos na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e nos currículos escolares?

Além do desafio de garantir a aprendizagem de conteúdo, as redes precisam minimizar as sequelas causadas pela falta de socialização e de desenvolvimento socioemocional, que também fazem parte do ambiente de convívio escolar. 

Desde os seus primeiros pareceres sobre a Educação no contexto da pandemia, o Conselho Nacional de Educação (CNE) traz como possibilidade para tratar da questão a flexibilização curricular e acadêmica, definida como uma “revisão do currículo proposto e seleção dos objetivos ou marcos de aprendizagem essenciais previstos para o calendário escolar de 2020-2021” (Parecer 19/2020). 

Como explica Érica Maria Toledo Catalani, coordenadora técnica no Cenpec Educação:

Foto: arquivo pessoal

O CNE já tinha vislumbrado que as condições das escolas eram muito diferentes para a oferta do ensino remoto. Algumas teriam condições de oferecer propostas pedagógicas com o auxílio da tecnologia, mas diversos municípios só conseguiram enviar o material impresso para as crianças, sem mediação. Outros nem isso conseguiram proporcionar. Então o currículo continuum foi uma proposta do CNE para garantir que um dos objetivos principais da educação seja conquistado: o direito à aprendizagem dos objetivos educacionais que estão dispostos na BNCC.”

Érica Catalani

Informação e formação pelo direito à educação

O Portal Cenpec tem trabalhado diversos aspectos que envolvem a Educação na Pandemia ao longo do último ano. No debate sobre o retorno às aulas presenciais, dedicamos matérias especiais a etapas importantes dessa volta, como a necessidade de planejamento e a participação e de um olhar prioritário ao acolhimento de estudantes e comunidade escolar em geral

Para apoiar educadores(as), gestores(as) e redes de ensino neste momento complexo, sistematizamos nossas produções sobre essa temática desde o início da pandemia no Brasil. Confira #EducacaoNaPandemia


Cuidados

Para a professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) Inês Barbosa de Oliveira, quando falamos sobre currículo, a ideia da continuidade é a única possibilidade de evitar que nossos(as) alunos(as) não percam para a pandemia. Ex-presidente da Associação Brasileira de Currículo (ABdC) e membro do GT Currículo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), ela é categórica em distinguir o conceito que acredita ser o ideal desse continuum curricular e o que ela tem visto acontecer em algumas redes de ensino, municipais e estaduais:

Foto: arquivo pessoal

Essas propostas que tenho visto estão mais próximas de uma listagem de conteúdo, um documento pré-definido que trai a própria ideia de continuidade. Ela não é recomeçar de onde parou, ela é ver o que se perdeu no caminho, andar pra trás. Esse processo de adaptação curricular tem que ser focal e local, realizado a partir de uma diagnose global que permita ao professor constatar que a sua turma está apta a lidar com determinado conteúdo. Assim, respeitando os diferentes estágios onde os alunos se encontram, contemplar esses objetivos mínimos da BNCC, no menor espaço de tempo possível.” 

Inês Barbosa de Oliveira

Para realizar essa seleção, é primordial que as redes de ensino promovam a escuta e a participação de professores(as) e estudantes, para construir um currículo que faça sentido ao cenário, às adversidades e às condições da comunidade escolar. 

A professora Inês defende: 

É de responsabilidade das autoridades e das redes assumir o protagonismo da ajuda às unidades escolares para que elas possam fazer o melhor para assegurar o direito de aprendizagem dos seus estudantes, sejam eles quem forem, em um processo que garanta diálogo, avaliação diagnóstica e trabalho pedagógico permanente.”

Inês Barbosa de Oliveira

Priorização curricular

Nas formação realizadas pelo Programa Apoio Pedagógico Complementar, com equipes técnicas de sete municípios do Baixo Paraíba, um dos primeiros passos adotados para essa adaptação, já em 2020, foi o de priorização curricular. Para isso, utilizaram como base os Mapas de Focos da BNCC do Instituto Reúna, a fim de repensar o currículo a ser trabalhado no ano letivo e direcionar o material escrito que ia ser enviado aos estudantes em ensino remoto. 

Essa priorização foi feita com base em um conjunto de critérios, como explica Érica Catalani, coordenadora do programa:

No caso de Matemática e Língua Portuguesa, um dos critérios foi priorizar as competências mais básicas e essenciais dos primeiros anos iniciais do Ensino Fundamental, como alfabetização, letramento, resolução de problema e competência leitora. Ao mesmo tempo, nós fomos identificando as habilidades que são abordadas em diferentes momentos da trajetória escolar. Ainda que a complexidade da abordagem seja diferente, isso nos permite deixar para que elas sejam abordadas e desenvolvidas nesses anos subsequentes”. 

Érica Catalani

Outro critério essencial que deve ser utilizado nesse processo é o trabalho dialogado com os professores. Considerando que cada território tem as suas especificidades e que o currículo precisa levar em conta essa realidade local, a decisão do que priorizar deve ser coletiva e diferente tanto entre municípios quanto dentro de uma mesma rede municipal, entre as escolas. 

Na visão de Érica, as secretarias de educação têm um papel indutor nesse processo, que acontece em “cascata”:

A Secretaria inicia o processo, marcando reuniões e garantindo condições e participação para que aconteçam. Desse processo de diálogo com a rede, o órgão vai estabelecer um documento, que é uma priorização em nível regional. Ao adentrar nos espaços escolares, ele vai passar por um outro processo, porque cada escola vai olhar para o seu território e fazer suas próprias seleções.”

Érica Catalani

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Avaliação antes ou depois da priorização curricular?

Para Érica Catalani, é válida a avaliação da Secretaria para dispor de um diagnóstico da aprendizagem dos(as) estudantes durante a priorização curricular. Mas traz ressalvas:

Essa avaliação organizada pela gestão pode ajudar a definir o que de fato será priorizado, quando a Secretaria já tem algumas perspectivas do que ela pretende desenvolver. Traz um diagnóstico mais geral, que serve ao gestor. Mas essa avaliação tem limitações, porque tem como base uma priorização mais geral e que não atende às especificidades da escolas.”

Érica Catalani

Uma vez realizada essa seleção de prioridades em diálogo com a comunidade escolar, os(as) professores(as) precisam analisar os conhecimentos prévios que são necessários para que essas habilidades e competências sejam aprendidas. Se, por exemplo, entendemos que resolver problemas do campo aditivo é uma das habilidades priorizadas em Matemática para estudantes do 1º ano do ensino fundamental, então eles(as) precisam conhecer os números e saber elementos de contagem – que se tornam, então, conhecimentos prévios. 

Aqui, torna-se necessário um diagnóstico mais específico sobre esses pré-requisitos, que constitui o processo de ensino-aprendizagem, alimentado pela avaliação. Para a professora Inês, é importante entender o objetivo da avaliação nesse contexto, para não fazer mau uso dessa ferramenta:

A avaliação e o ensino têm que caminhar de mãos dadas, para que os(as) professores(as) possam ver o quanto se conseguiu avançar, nas condições que eles(as) e os(as) estudantes estão trabalhando hoje. Não estou falando de verificação de aprendizagem, para dar nota, mas de avaliação do trabalho. Precisamos apurar o que estão aprendendo, para sempre trabalhar um passo à frente de onde estavam ou estão, mas sem querer dar um passo maior do que as pernas. Lembrando sempre que acelerar demais pode ampliar as sequelas, e que ficar numa convencionalidade excessiva não irá contemplar as desigualdades adquiridas durante a pandemia.” 

Inês Barbosa de Oliveira

Esse diagnóstico vai trazer um panorama dos níveis que os(as) estudantes estão em relação a esses conhecimentos prévios, agrupando-os(as) em diferentes grupos. Haverá alunos(as) que já os aprenderam (e assim podem partir para a aprendizagem da habilidade priorizada), outros(as) que os dominam razoavelmente (talvez precisem de uma revisão), e aqueles(as) que desconhecem completamente esses pré-requisitos. 

Com esse mapeamento em mãos, os(as) professores(as) e gestores(as) podem se planejar, buscar metas de aprendizagem a serem alcançadas em determinado período, que devem ser usadas como guias para nortear o trabalho a ser feito. A professora Inês ressalta que o planejamento nunca é 100% contemplado (nem nas melhores condições), e destaca a necessidade de considerar as variáveis que interferem no rendimento escolar na hora de repensar as atividades e o progresso da turma, em um ciclo contínuo de ensino-aprendizagem-avaliação.

É preciso fazer esse diagnóstico, e repeti-lo à medida que vamos avançando, para não perder tempo depois ensinando algo que ninguém tinha os pré-requisitos para aprender.  Esse vai e vem permanente é necessário, sempre a partir de um planejamento base, que traz a expectativa do que queremos. Não podemos achar que qualquer coisa está bom, mas também temos que respeitar os limites de aprendizagem, agora mais do que nunca. É um compromisso entre o que é desejado e o que é possível.”

Inês Barbosa de Oliveira

As diferentes ações a serem realizadas para garantir o direito de aprendizagem estão a nível de Secretaria e gestão escolar, como comenta Érica:

Dependendo da lacuna que existe entre esses diversos grupos de alunos, em relação ao alcance do conhecimento prévio, será preciso um complemento para além da sala de aula: recuperação paralela, atendimento mais individualizado, carga horária a mais etc. Fornecer esses espaços adicionais é uma responsabilidade que cabe à rede e à escola. Se eu preciso de um(a) professor(a) com mais carga horária, será preciso contratar ou remanejar os(as) docentes, ou ampliar o salário. São decisões que envolvem dimensões mais institucionais, e que mostram que o professor não está sozinho nessa recuperação de aprendizagem.”

Érica Catalani

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Dificuldades e inseguranças

No seu trabalho de formação com os municípios do Baixo Paraíba, Érica sentiu muita insegurança e indecisão das equipes técnicas sobre a priorização curricular. De fato, a decisão sobre quais conhecimentos devem ser desenvolvidos não é fácil, mesmo quando apoiada em um conjunto de critérios e realizada coletivamente. Ela lembra, porém, que não é algo novo – pelo contrário, é uma decisão que tanto gestão quanto professores(as) tomam a todo momento: 

Quando a escola define o seu projeto político pedagógico, a rede seleciona um livro didático ou o professor realiza o seu percurso, estão todos fazendo escolhas curriculares. Ou seja, nós já priorizávamos antes. Assim como o processo de recuperação contínua já fazia parte do trabalho pedagógico. O inédito talvez seja que, com o impeditivo que temos hoje causado pela pandemia, esses processos estejam no centro.”

Érica Catalani

A educadora ressalta também que a priorização curricular não é o continuum como um todo. Ela é apenas um passo, um caminho para que ele aconteça. O mais importante é entendê-lo como uma maneira de garantir que, mesmo com as dificuldades impostas pela pandemia no contexto educacional, os(as) estudantes não percam o ano em relação à aprendizagem.

A constituição de currículo continuum envolve entender que a ideia de priorização não significa retirada de direitos de aprendizagem. Por isso, se eu não tiver a equipe técnica e os professores como parceiros nesse processo, construindo juntos, essa priorização pode ser entendida como redução curricular. Isso é um grande problema – ao mesmo tempo que é um desafio e uma aprendizagem.”

Érica Catalani

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