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Frutos da fome na educação
Quais os riscos da desnutrição em crianças e adolescentes, e como a escolarização pode ser uma saída para a situação de insegurança alimentar?
- Tamara Castro
Por Stephanie Kim Abe
Quando Claudio A. Serfaty publicou o seu primeiro trabalho sobre desnutrição e desenvolvimento do cérebro, em 2008, o Brasil caminhava a passos largos no sentido de erradicar a fome. “Tanto que o nosso mote era pesquisar alterações nutricionais em crianças com aporte energético normal, ou seja, em crianças que comem bem, engordam, mas cuja dieta pode carecer de nutrientes específicos importantes para o desenvolvimento do cérebro”, relembra o professor.
Os números decrescentes da população em situação de insegurança alimentar – que acontece quando a pessoa não tem acesso regular e permanente a alimentos – resultaram na saída do Brasil do Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) em 2014. Isso ocorre quando o país apresenta menos de 5% da sua população em situação de subalimentação.
Não é de se espantar, portanto, a indignação do professor doutor – e de toda a sociedade – quando se depara com a situação que vive o país hoje: temos 33 milhões de pessoas passando fome. O número corresponde a 15,5% dos domicílios brasileiros e é maior do que o constatado no final de 2020, quando 9% deles encontravam-se nessa situação. Em pouco mais de um ano, 14 milhões de novas(os) brasileiras(os) não têm o que comer. E, como se não bastasse, mais da metade da população do país – 125,2 milhões de pessoas – vive com algum grau de insegurança alimentar.
Os dados alarmantes foram trazidos à tona pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssam) há cerca de um mês, quando foi divulgado o II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (II Vigisan). A pesquisa ocorreu entre novembro de 2021 e abril de 2022 com 12.745 domicílios nas 27 unidades da federação representativos da população brasileira.
Essa situação atinge em cheio as crianças e adolescentes. Nos lares de famílias com crianças menores de 10 anos, a fome dobrou: foi de 9,4% em 2020 para 18,1%.
Ela também é maior nos domicílios que têm três ou mais pessoas com até 18 anos de idade, chegando a 25,7%, frente a 13,5% nos lares cujas famílias são compostas apenas por adultos.
Para o professor doutor Claudio Serfaty, não há outra maneira de definir esse quadro a não ser “devastador e grotesco”:
Se a má nutrição de alguns nutrientes específicos já causa um atraso muito grande e, possivelmente, danos permanentes ao cérebro – no sentido de dificuldade de aquisição de habilidades específicas que podem ser permanentes –, imagine um quadro de fome, com crianças desmaiando na escola ou super mal nutridas? Elas não têm nem o básico, que é a energia. O que esperar de uma criança que passa fome?”
Claudio Serfaty
Quando Claudio fala de alguns nutrientes, ele se refere aos estudos que fez relacionados a dietas com restrição de triptofano (aminoácido essencial, ou seja, que a gente não produz e precisa ser adquirido pela alimentação) e ácidos graxos ômega-3, e o seu impacto no desenvolvimento do cérebro.
Já é muito documentado o quanto os primeiros anos de vida são importantes para o desenvolvimento do cérebro, já que é durante a primeira infância que as conexões neurais estão se formando. Essa capacidade do cérebro de reorganizar os circuitos e as sinapses é chamada de plasticidade neural – e ela está em sua maior potência até os sete anos de idade.
Ao longo do tempo, a criança perde um monte de sinapses – e isso é benéfico. No cérebro, menos é mais. É um refinamento do cérebro, sendo que as que ficam são as sinapses mais funcionais, que permitem a aquisição das habilidades que temos: de perceber os sentidos, de movimento finos, de linguagem, de pensamento abstrato. No bebezinho, estamos falando de habilidades sensoriais e motoras (ficar em pé, caminhar, começar a falar). No adolescente, são habilidades cognitivas e emocionais, entre outras. Mas esse processo de eliminação das sinapses é muito regulado e preciso – se passa do ponto, temos deficiências, como déficits intelectuais”.
Claudio A. Serfaty
Em experiências com roedores, o professor, que é coordenador do Laboratório de Plasticidade Neural e titular do Programa de Pós-Graduação em Neurociências do Instituto de Biologia da Universidade Federal Fluminense (UFF), encontrou que dietas pobres em triptofano atrasam a formação de conexões do sistema visual. Sem esse aminoácido, o cérebro produz pouca serotonina e, nessas condições, as conexões são pouco plásticas.
Já no caso da falta de ácidos graxos ômega-3, que são muito importantes para o metabolismo energético, para a formação de sinapses e para a manutenção dos neurônios, os estudos mostraram um atraso enorme no processo de eliminação das sinapses, além de um fenômeno de células inflamatórias no cérebro – um problema sério para a cognição.
“Ou seja, uma criança má nutrida em ácidos graxos ômega-3 e em triptofano tem baixa plasticidade e neuroinflamação, o que afeta diretamente o desenvolvimento cognitivo do cérebro – consequentemente, causa prejuízos ao aprendizado. No caso de uma criança que passa fome, não temos nem como estudar isso. Seria um absurdo privar de alimentação o animal experimental no laboratório, mas, infelizmente, vemos isso acontecendo de verdade no país com a nossa população”, explica Claudio.
É por meio de proteínas de alto valor biológico que conseguimos o triptofano: frango, carne, ovos, leite, chocolate amargo, queijo etc. Os ácidos graxos ômega-3 são encontrados em frutos do mar, peixes (salmão e sardinha), nozes, castanhas, algas.
“São fontes proteicas caras e precisamos nos esforçar para comê-las em quantidades certas. Mesmo em famílias de boa renda, essa nutrição adequada não é garantida. Em um país em que as pessoas mal estão conseguindo comer pé de galinha e ficam na fila do osso, isso vira claramente um problema de saúde pública”, alerta o professor.
Segundo os dados da Rede Penssam, houve também alteração na compra dos alimentos básicos para o consumo das famílias, principalmente naquelas em situação de insegurança alimentar moderada ou grave. Elas compõem a maior porcentagem dentre as que deixaram de comprar, nos últimos três meses anteriores à pesquisa, carne (70,4%), vegetais (63,6%) e frutas (64%).
Foram também essas famílias que se apresentaram em maior porcentagem na redução da compra de alimentos que constituem a cesta básica brasileira, como feijão, arroz, carnes, vegetais e frutas.
Não há dúvidas que a pandemia de Covid-19 contribuiu muito para a atual situação de insegurança alimentar que temos no Brasil. Mas ela não é a única causa, já que desde 2018 vemos os números de pessoas com fome crescendo.
Maitê Gauto, gerente de Programas da Oxfam Brasil, explica que esse “cenário de tempestade perfeita” já está sendo construído há anos e se agravou com a falta de ação do governo federal durante a pandemia, somada à inflação e ao desemprego:
Em 2018, já tínhamos 10 milhões de pessoas passando fome no país – mais do que o dobro do número de 2014, quando saímos do mapa da fome (cerca de 4,2 milhões). A situação foi piorando com as medidas de austeridade fiscal implementadas desde o Teto de Gastos, em 2016, que promoveu um desinvestimento em políticas sociais fundamentais. Quando a pandemia nos atinge, o estado brasileiro já está fragilizado. Ficamos sem o Auxílio Emergencial nos primeiros meses de 2021, que foi o período da segunda onda de Covid, o seu valor diminuiu muito e o seu alcance também foi menor – beneficiando cerca de 18 milhões de pessoas.”
Maitê Gauto
Segundo o relatório da Rede PENSSAN, a fome foi mais grave nos domicílios que solicitaram o Auxílio Emergencial e não o receberam.
Outro dado importante que o estudo traz é que a segurança alimentar, comparada ao grau de escolaridade do familiar responsável, é um fator importante.
Em 42,5% dos domicílios onde as(os) responsáveis têm menos de quatro anos de estudo, a situação era de insegurança alimentar moderada ou grave. Na outra ponta, metade daquelas famílias que têm responsáveis com mais de 8 anos de estudo, encontram-se em situação de segurança alimentar.
A escolaridade está diretamente relacionada à questão de melhores oportunidades e condições de trabalho, que também impactam na situação alimentar.
Quanto mais anos de estudo, mais qualificada a pessoa está para o trabalho, mais ela tem condições de trabalhar, gerar renda, ter autonomia financeira. Enquanto que os grupos com menor escolaridade ficam muito mais dependentes, por exemplo, de políticas de proteção social, de transferência de renda.”
Maitê Gauto
A fome é maior nos domicílios em que a pessoa responsável está desempregada (36,1%), é agricultora familiar ou produtora rural (22,4%) ou tem emprego informal (21,1%). Nos lares em que a responsável tem emprego formal, a fome está presente em apenas 7,4% deles – sendo que mais da metade (53,8%) se encontram em situação de segurança alimentar.
Além disso, em 55,2% dos domicílios em situação de insegurança alimentar grave ou moderada houve a pausa nos estudos de pelo menos um dos membros familiares para ajudar a família a complementar a renda. “Esse é um dado que vai trazer impacto no futuro, porque são as(os) adolescentes e jovens que pararam de estudar e sofrerão nos próximos anos”, lembra Maitê.
Considerando que as desigualdades se sobrepõem, Maitê lembra que o investimento em educação é importante como uma saída para a situação precária que as famílias de mais baixa renda se encontram:
Se a pessoa está desempregada, em um emprego informal ou mais precário, ela sempre vai estar com algum nível de insegurança alimentar (do mais leve ao mais grave). Investir em educação é dar mais condição para que as famílias possam trabalhar, prosperar, ter autonomia financeira e quebrar o ciclo que as perpetua em sua condição de vulnerabilidade social, reduzindo a pobreza e, consequentemente, a situação de fome.”
Maitê Gauto
Diante dessa situação, a escola tem um caráter mais emergencial de ser o local onde as crianças de famílias mais vulneráveis conseguem a principal – se a não única, muitas vezes – refeição do dia, por meio da merenda escolar.
É por isso que fortalecer o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae) é tão importante. Instituído em 2009 pela Lei n° 11.947, o Pnae é o principal responsável por garantir a segurança alimentar e nutricional das(os) estudantes brasileiras(os). Ele repassa cerca de R$ 4 bilhões aos 27 estados e 5.570 municípios brasileiros (que devem complementar esse valor com seus próprios recursos), permitindo o atendimento de cerca de 41 milhões de estudantes.
O Pnae também estipula que 30% do valor repassado seja destinado à compra de alimentos vindos da agricultura familiar, trazendo geração de renda e desenvolvimento econômico e sustentável para as comunidades locais.
Para Maitê, é preciso garantir condições imediatas para as pessoas que estão atualmente passando fome. Isso significa o fortalecimento do sistema nacional de assistência social e dos programas de transferência de renda. “Quem tem fome tem pressa, e é preciso manter o poder de compra das famílias”, destaca.
Mas, em longo prazo, ela acredita que é preciso pensar em estratégias para impedir o retrocesso e o desinvestimento, retomando investimentos públicos e se inspirando em políticas públicas realizadas na primeira década dos anos 2000 que fizeram com que o Brasil reduzisse a fome a menos de 4% em 2014:
Precisamos impedir que haja redução da disponibilidade orçamentária para o Pnae, que já faz um repasse pequeno por aluno. No geral, é menos de 1 real por aluno por ano letivo. Que tipo de merenda escolar os estudantes vão ter acesso com um orçamento desse? Além disso, é preciso um processo mais amplo e intenso de reconstrução da Política Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que vai passar pela reconstituição do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – arbitrariamente extinto em 2019 – e o fortalecimento do Programa Nacional de Aquisição de Alimentos e os programas de apoio à agricultura familiar.”
Maitê Gauto
A articulação entre entre diversos setores da sociedade é um fundamental para apoiar as famílias mais vulneráveis.
A parceria do Instituto Federal do Pará com a Associação Paraense de Apoio às Comunidades Carentes (APACC) para distribuição de alimentos a estudantes durante a pandemia é um exemplo dessa potência.
Clique sobre o título abaixo para conhecer a experiência.
Às(aos) diretoras(es), educadoras(es) e coordenadoras(es) que estão lidando com estudantes passando fome, o professor Claudio Serfaty pede paciência e compreensão com os comportamentos das crianças e adolescentes.
“Crianças desnutridas têm baixo interesse, baixa concentração, baixo engajamento. Não é que elas não querem aprender, mas elas não conseguem, por uma questão de desenvolvimento do cérebro. É uma questão biológica”, explica.
Ele também acredita que é preciso debater o tema com toda a comunidade escolar, já que não são apenas as(os) estudantes que podem estar passando fome, mas suas famílias, as(os) funcionárias(os) da escola etc.
Fome é emergência, e as pessoas precisam ter noção de que estamos vivendo nessa situação. As escolas têm esse papel de ventilar informações, desde sobre as políticas públicas para combater esse cenário até falar sobre desnutrição e propor às famílias alternativas que garantam uma nutrição adequada sem necessariamente mudar os itens da cesta básica.”
Claudio A. Serfaty
Por fim, o pesquisador acredita no potencial das(os) professoras(es) em pensar alternativas nas práticas pedagógicas que possam tornar as aulas e os conteúdos mais atrativos para as(os) estudantes.
“Considerando o fator fisiológico da falta de alimentação, as crianças vão precisar de muito mais estímulos para ter interesse em uma aula de português ou matemática. Então a busca de estratégias lúdicas e de outras maneiras de despertar esse gosto pelo estudo é urgente. Sei que é difícil, mas tenho certeza que as(os) professoras(es) saberão pensar em novas formas de engajamento.”
Claudio A. Serfaty
A publicação da FAO analisa o impacto da Covid-19 na região e oferece soluções para problemas urgentes, como o aumento da fome e os efeitos da pandemia sobre a oferta e demanda de alimentos. Download aqui (em espanhol).
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