Prioridade do governo federal em discutir o tema vai na contramão das necessidades e urgências da educação pública
Por Stephanie Kim Abe
Em meio a tantos desafios educacionais que o Brasil tem enfrentado, o governo federal elegeu a educação domiciliar como uma das suas prioridades. Também chamada de homeschooling, essa modalidade não é permitida no Brasil, mas o Projeto de Lei 3.197/2012, do deputado Lincoln Portela (PL-MG), traz a possibilidade de que a educação básica seja oferecida em casa sob responsabilidade dos pais ou tutores legais.
Para discutir essa regulamentação da educação domiciliar, diversas audiências públicas têm acontecido na Câmara dos Deputados nas últimas semanas – o que, para muitos especialistas e entidades, é um equívoco. Maria Alice Junqueira, coordenadora de projetos no CENPEC Educação, concorda:
Estamos gastando muita energia e tempo com algo que atinge uma porção muito baixa da população, quando, na verdade, deveríamos estar preocupados em não aumentar as desigualdades, principalmente considerando esse momento de pandemia. Deveríamos estar discutindo a garantia do acesso à internet, a distribuição de celulares e tablet às crianças das escolas públicas, como alcançar os estudantes em territórios mais vulneráveis, como garantir um ensino remoto de qualidade, como monitorar a aprendizagem dos alunos nessas condições etc.”
Maria Alice Junqueira
“Passando a boiada no MEC: educação domiciliar”: confira a live da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd), com a participação de Romualdo Portela, diretor de pesquisa e avaliação do CENPEC.
Os riscos da educação domiciliar
Não é a primeira vez que o tema volta à pauta dos debates educacionais. Desde o começo do governo de Jair Bolsonaro, a educação domiciliar é defendida pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, sob o comando da ministra Damares Alves.
Há quase um ano, mais de 30 entidades da sociedade civil, entre elas o CENPEC Educação, divulgaram nota técnica reforçando a inconstitucionalidade da educação domiciliar e destacando os riscos para a proteção de crianças e adolescentes dessa modalidade de ensino.
A escola faz parte da rede de proteção da criança e do adolescente, e é reconhecido como um espaço importante de identificação de casos de violência, abuso sexual e trabalho infantil. De acordo com dados do Ministério da Saúde, 68% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes acontecem em ambiente doméstico, sendo a maioria das vítimas de violência sexual crianças e adolescentes (de 0 a 17 anos de idade), e do sexo feminino.
Em audiência pública no dia 9/4, que teve como foco o ensino domiciliar na primeira infância, Beatriz Abuchaim, gerente de Conhecimento Aplicado da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, apontou que, do universo de 20 milhões de crianças de 0 a 6 anos no Brasil, 1 em cada 3 vive na pobreza ou extrema pobreza. Também citou as mais de 5 milhões de crianças e adolescentes privadas do direito à Educação em 2020, com a pandemia. Para ela, a elaboração e a implementação de políticas públicas deveria priorizar essa população.
A seu ver, com a regulamentação da educação domiciliar e a desobrigação das famílias à matrícula na escola, há riscos de aumentar o número de crianças fora da escola:
Temos mais de 300 mil crianças fora da pré-escola, sendo que é muito difícil para o estado e para as secretarias de educação, com a capacidade que elas têm, conseguir chegar e saber onde elas estão. Então esse processo de fiscalização nos preocupa, e tirando a obrigatoriedade da matrícula, a gente entende que sim, teremos famílias que vão investir no ensino domiciliar, mas teremos famílias que também não farão nada com essas crianças, e talvez esse número seja maior.”
Beatriz Abuchaim
Andressa Pellanda, coordenado geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, trouxe alguns aspectos não discutidos sobre a regulamentação da educação domiciliar durante sua participação na audiência pública de ontem (12/4) na Câmara dos Deputados. Entre eles, a necessidade de formação no ensino superior, a utilização de tutores, os custos da criação e da manutenção de um portal do Ministério da Educação para acompanhar as menos de 7 mil famílias que praticam a educação domiciliar, os critérios e avaliações dos planos pedagógicos apresentados pelos responsáveis etc.
A questão da formação dos pais e a necessidade ou não de tutores evidencia as características elitistas e de viés de privatização da educação domiciliar. Maria Alice Junqueira reforça o papel essencial do(a) educador(a) na garantia a uma educação de qualidade:
Na educação familiar, a família precisa ser letrada, ter no mínimo o ensino médio. Ainda assim, ficou muito claro, na pandemia, que não basta você ser letrado para conseguir alfabetizar as crianças. Além disso, para que ocorra a aprendizagem, é preciso haver uma mediação entre a criança e o conhecimento – e quem faz isso é o professor, que também tem conhecimentos de didática.”
Maria Alice Junqueira
Veja abaixo a apresentação completa da Campanha contra a educação domiciliar:
Em contraposição, Rick Dias, presidente da Associação Nacional de Educação Domiciliar (Aned), disse que não há necessidade de os pais serem pedagogos ou profissionais educação, pois há famílias que realizam a educação domiciliar cujos pais tem apenas o ensino médio, e defendeu que a supervisão e fiscalização das famílias seja feita pelo Conselho Tutelar.
Para Maria Alice, a discussão do tema evidencia o descompasso do governo com todas as políticas educacionais construídas nos últimos 30 anos:
Vínhamos na direção das metas do Plano Nacional de Educação, de acompanhar e pensar soluções para a dificuldade de aprendizagem das crianças, de colher dados atualizados e consolidar avaliações externas pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) etc. Tínhamos conseguido construir consensos importantes na educação, ainda que tenhamos muito a melhorar. O governo vem na contramão de tudo isso, colocando na agenda outras prioridades – que nem deveriam ser assim chamadas.”
O tema da educação domiciliar tem sido discutido em diversas matérias publicadas no Portal Cenpec. Listamos abaixo as principais delas, para quem quer mergulhar melhor no assunto:
Ensino escolar ou domiciliar: onde mora a educação? – Reportagem da revista Educação n. 257, de maio de 2019, dá voz aos dois lados da moeda, com a participação, entre outros, de Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do Cenpec.
Bernardo Toro: educação e paradigma do cuidado – Em entrevista ao Portal Cenpec Educação, o filósofo colombiano trata de temas que vão da educação e economia e passam pela crise climática e homeschooling.
SP: carta aberta com críticas a homeschooling e jornada docente – Traz críticas da Frente em Defesa da Educação Infantil da Cidade de São Paulo aoProjeto de Lei (PL) nº 68/2017, apresentado na Câmara Municipal de São Paulo pelo vereador Claudio Fonseca (Cidadania), e ao Projetos de Lei nº 84/2019, do vereador Gilberto Nascimento (PSC-SP), que autoriza a educação domiciliar (homeschooling) no município.
Educação domiciliar avaliada por educadores – Evento realizado pela OAB SP, com a participação de especialistas para falar sobre o tema, entre eles Cesar Callegari e Anna Helena Altenfelder, presidente do Conselho de Administração do CENPEC Educação.
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