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Por uma educação (no) plural
Professor doutor Valter Silvério, referência internacional sobre relações raciais, fala sobre a importância da escola trabalhar a diversidade e a diferença cultural
- Caia Amoroso
Nos anos 1980, ele integrou um grupo que se preocupava em denunciar o racismo na sociedade e nas escolas. Eram todos negros e negras, estudantes de graduação, que faziam palestras em escolas públicas questionando o significado do 13 de Maio, dia da Abolição da Escravatura no Brasil, como data representativa para a população negra. Nesta época, o mesmo grupo atuava no Conselho da Comunidade Negra do Estado de São Paulo para criar políticas públicas de educação e trabalho para os negros.
Sua primeira formação foi na área de exatas, em química. Mas de lá pra cá, Silvério se encontrou nas ciências sociais e nunca mais a deixou. Fez mestrado e doutorado na área, e atualmente é docente do Departamento e Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos. Tornou-se um intelectual de referência internacional sobre o tema relações raciais.
Na semana passada, o professor doutor esteve no CENPEC Educação a convite do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, para a apresentação da palestra Currículo escolar e relações raciais na educação básica e concedeu entrevista para o portal. Aqui Silvério fala sobre a importância da pluralidade no currículo e na formação de professores que atendam à diversidade cultural da escola brasileira. O professor comenta também sobre a adaptação para o português da Coleção História Geral da África, disponível para download nesta página. Leia a seguir:
Portal CENPEC Educação: Em 1964, por iniciativa da UNESCO, surgia a coleção História Geral da África contada pelos próprios africanos. Trinta anos depois, a mesma coleção chegou a dez mil páginas, com oito volumes em inglês, francês e árabe. Você participou da edição brasileira. Conte para nós como foi isso.
Valter Silvério: A história da África era uma tentativa de colocar à disposição das instituições educacionais, bibliotecas, professores e escolas um conjunto de materiais de referência sobre a África. O material foi escrito por 2/3 de cientistas africanos e 1/3 de europeus e vem de um projeto que está associado ao que a gente chama na literatura de “reinvenção da África”. Por que existe uma África inventada pelos europeus e pelo colonialismo europeu e é preciso lembrar que entre 1945 e 1968, no bojo da luta de libertação do continente africano, 66 países africanos se transformaram em países, deixando de ser colônia. Como lidar com esses novos países?
Este é o momento em que a UNESCO percebe que não dá pra pensar o mundo a partir da historia europeia. Então você tem história da África, história da China, história da Ásia, tem até uma história da America Latina, que é muito posterior e que ainda não está concluída, pois é mais complicado chegar a um consenso do que seja a America Latina (risos).
Portal CENPEC Educação: Uma coleção fundamental para a formação dos professores, materiais de pesquisa para trabalhar conteúdos obrigatórios aprovados pela Lei 10.639/2003.
Valter Silvério: Sim, o segundo objetivo da edição brasileira era esse, o de atender a uma demanda de professores frente à aprovação da Lei 10.639/2003.
Ainda mais importante do que a lei são as diretrizes que a acompanham. Porque as diretrizes estão falando sobre a importância do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Esse material nós desdobramos da História Geral da África para professores brasileiros. Fizemos dois volumes sintetizando os 8 volumes, com uma linguagem mais acessível e menos preocupada com referência histórica para pesquisador e mais adequado ao cotidiano do professor.
Estes materiais estão disponíveis na internet, gratuitamente. São materiais muito caros e a única língua gratuita é o português. Nas outras línguas é caríssimo.
Em relação aos materiais eu acho que são um grande feito da história do movimento negro do qual eu sou ligado. É uma tradição do pensamento negro transnacional, a questão educacional é sempre central.”
Acesse os dois volumes em português:
>> Síntese da Coleção História Geral da Africa, I: pré-história ao século XVI
>> Síntese da coleção história geral da África, II: século XVI ao século XX
Portal CENPEC Educação: Como você vê a questão da construção da identidade negra brasileira?
Valter Silvério: Uma das questões que diferenciam os intelectuais negros, pensando do ponto de vista nacional e transnacional, é que, se a questão não está centrada na liberdade, a emancipação passa pela condição de formação e da experiência do sujeito. Eu não sei se isso está presente para a maior parte dos intelectuais, mas sei que, na questão colonial, por exemplo, existiam intelectuais negros que achavam que a via da ruptura era revolucionária. Mas outros achavam que a questão educacional era central. Não é à toa que a gente tem um conjunto de intelectuais negros que foram extremamente importantes na luta e libertação do continente africano. E ali a questão era de liberdade, pois eles não queriam que seus países seguissem o modelo mundo ocidental. Eles queriam ter espaço para que as culturas africanas se desenvolvessem de outra maneira. O resultado é mais complexo por que eles tiveram de se associar a grupos de orientação política da chamada Guerra Fria.
Mas eu continuo ligado à tradição de pensamento que vê o equacionamento do conflito mais pela formação e menos pela ruptura revolucionária. Nesse sentido, a minha leitura desses autores está associada ao que eles pensaram do ponto de vista da constituição da sua própria identidade, da identidade do grupo, e de como esse grupo negociou historicamente a ampliação de sua participação.
Há alguns termos que eu não utilizo, por exemplo, o termo inclusão. Eu também não emprego o termo democratização, porque são termos de jargão político que dizem muito pouco sobre o processo. Incluir no quê? Democratizar o quê?”
Portal CENPEC Educação: E mesmo o termo “cidadania”…
Valter Silvério: E mesmo cidadania, cidadania é um termo que eu evito o uso. Porque essa cidadania está associada a um mundo determinado, modo de pensar e experiência humana que é central na Europa. Eu não sei se é possível você falar de cidadania em estados nacionais de segunda onda, que são estados nacionais onde há pluralidade de culturas, pluralidade de experiências, pluralidade de línguas num mesmo território. E tem esta tentativa de imposição de uma mesma língua e de uma mesma cultura para todas as outras.
É muito complexo isso do ponto de vista de pensar, por exemplo, educação. Quer dizer, quando você impõe uma determinada cultura, você tem o apagamento de outras e portanto, crianças e jovens associadas a outra cultura não se reconhecem, não se identificam naquele projeto.”
Portal CENPEC Educação: Qual o grande desafio a ser enfrentado na formação de professor quando se pensa em culturas e línguas afro-brasileira e africana?
Valter Silvério: Do meu ponto de vista, o professor precisa estar atualizado com o conjunto de mudanças tecnológicas que atravessa a experiência das sociedades contemporâneas, em especial as crianças e jovens, alguns fenômenos quase independentemente da classes ou da cultura a que pertencem, como é o caso do acesso à internet. São crianças e jovens que têm um outro tipo de relação com as tecnologias e o professor precisa estar preparado para o uso delas. Essa é uma dimensão do desafio.
A outra dimensão do problema é a formação de um professor que tenha um olhar mais carinhoso para a diversidade cultural. Este é um termo que recobre uma variedade de experiências de diferentes culturas que compartilham de um mesmo território. Se eu fosse dar um exemplo, na cidade de São Paulo, temos toda a complexidade da formação social brasileira: italianos, africanos, libaneses, sírios, e, mais recentemente, a imigração boliviana, venezuelana, haitiana, coreana, chinesa. Essa complexidade exige que o professor se preocupe em pesquisar as mudanças que estão ocorrendo no próprio espaço em que ele opera, que é a escola. O olhar carinhoso é necessário para tratar criança como criança, independentemente da sua origem.
Portal CENPEC Educação: Bastaria o olhar carinhoso?
Valter Silvério: Este é o primeiro passo. Mas o professor precisa de uma formação que ainda não está dada. Ela precisa ser pensada, construída considerando esta nova realidade.
Na minha opinião, enfrentamos todos os problemas na formação de professor porque ela está preocupada com a constituição do Estado nacional. Esta formação pensa um povo, um território, uma língua e uma cultura, enquanto que este professor vive exatamente o oposto: são vários povos, várias línguas, várias culturas num único território.
Se eu substituo a ideia de território pela escola, isto está dentro da escola. Então, o professor precisa ter uma formação que é muito mais culturalmente diversa, para além dos conteúdos que ele tem que dominar. Se ele é professor de matemática ou de história, ele tem lá um domínio de conteúdo. Mas ele precisa ter uma formação em termos de diversidade e diferença cultural.”
Portal CENPEC Educação: Sobre a democratização que se deu a partir da Constituição de 1988, você tem uma visão diferente com relação ao currículo escolar. Qual seria?
Valter Silvério: Eu tenho uma visão bastante diferente, acho que não se mexeu no currículo. A Constituição de 1988 identifica as mudanças em curso na sociedade e procura atualizar em algum nível a ideia de direitos em termos de diversidade cultural. Mas quando se trata do reconhecimento imaterial da cultura indígena e da cultura negra, isso não é considerado no cotidiano. Quando são materializadas no nosso cotidiano, já não dá mais para fugir do reconhecimento da presença dessas culturas na sala de aula, na sociedade de maneira geral.
Então me parece que a questão curricular precisa ser atualizada em diferentes níveis. No nível dos conteúdos, quais nós estamos utilizando nas várias disciplinas? Na educação infantil, que brincadeiras, por exemplo, estamos propondo? No ensino fundamental, quais são as noções básicas de história e ciências empregadas? E no ensino médio, que visão de cidadania esses jovens estão recebendo? Minhas respostas estão associadas a uma visão de um currículo fechado, estreitado numa visão de cidadania homogênea, de um padrão de sujeito vinculado a determinada forma de pensar a si mesmo, não necessariamente na relação dialógica com o outro.
Portal CENPEC Educação: Para terminar, existe alguma reação da periferia a esta educação formal?
Valter Silvério: Eu acho que há uma reação das periferias, que são formadas por uma pluralidade de culturas juvenis muito mais ricas do que a gente imagina, há uma reação dessas periferias a um tipo de escola que não lhes interessa.
Pode ser um chavão, mas essa escola interessa a setores que não percebem a pluralidade da experiência de vida social. Para que eu preciso aprender cálculos matemáticos e a língua portuguesa, por exemplo? Eu preciso aprender porque são ferramentas para o cotidiano.Mas isso me exime de conhecer a história? A minha própria historia? Talvez a periferia esteja criando uma versão da sua própria história, na medida em que ela não se vê representada na história que a as instituições ensinam e estão contando.
Portal CENPEC Educação: Como isso se manifesta?
Valter Silvério: Isso se manifesta de várias maneiras. Por exemplo, na presença de núcleos religiosos de diferentes crenças. Eles contam uma história que parte da periferia se vê representada. O Slam das Minas, por exemplo, traz uma outra maneira de contar a história da periferia. A presença dos saraus é outra forma que está sendo construída.
A periferia está se autoeducando na sua diversidade, na sua pluralidade. Eu tenho a impressão de que a escola tem dificuldade – pela estrutura e orientação que ela tem – de incorporar esses grupos. A escola passa a não reconhecer, como outrora ocorria, a escola enquanto espaço importante de constituição do ser social que vai na direção de qualquer coisa próxima da cidadania.
Eu vejo que há uma violência da instituição escolar e não o contrário. Qual é a violência na instituição escolar? É levar certa forma de conhecer o mundo que despreza a maneira como uma periferia conhece o mundo. Essa incompatibilidade está presente.
Síntese da Coleção História Geral da África Pré História ao Século XVI (2013)
Síntese da Coleção História Geral da Àfrica – Século XVI ao Século XX (2013)
Cotas para Negros no Tribunal as a Audiência Pública do Stf (2012)
Relações Raciais no Brasil Pesquisas Contemporâneas (2011)
Educação, Diferença e Desenvolvimento Nacional – Coleção Uab-ufscar (2010)
Ações Afirmativas Nas Políticas Educacionais: um Contexto Pos-durban (2009)
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